Carlos Aguedo Nagel Paiva* Na crise em que vivemos hoje, muitos se perguntam se ainda faz sentido ter “orgulho de ser gaúcho”. Venho, provocativamente, afirmar que os motivos do tradicional e justificado orgulho são, de certa forma, os mesmos da crise e se encontram lá atrás, na transição republicana. Com o fim do Império, cada estado federado ganhou ampla autonomia. A partir de uma das guerras civis mais sanguinárias da história da humanidade — a Revolução Federalista —, criamos um estado moderno muito antes das demais unidades da Federação. O estado positivista de Júlio de Castilhos foi desenvolvimentista e redistributivo e deu as bases do programa industrialista de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitschek e dos próprios militares entre 1964 e 1980. A precocidade do RS, contudo, teve um preço alto: a burocracia gaúcha, constituída da década de 10 à de 30 do século ado, ampliada e consolidada entre os anos 40 e 60 do mesmo século, acabou por se aposentar e onerar, também precocemente, o nosso Tesouro. Esse peso não seria opressivo se a arrecadação pública crescesse a uma taxa superior à do ivo representado pelos inativos, mas a economia gaúcha apresentou uma discreta perda de dinamismo na segunda metade do século XX. Parte dessa perda se deveu à dificuldade em definir uma estratégia clara de desenvolvimento. O RS nunca curou plenamente as feridas da Revolução Federalista, e os custos disso são uma estrutural falta de unidade de ação. O potencial de desenvolvimento do RS é enorme. O Estado é uma espécie de “Nova Zelândia latino-americana”. Tem o mesmo tamanho, as mesmas características edafoclimáticas, produtivas, científico-tecnológicas e de inserção na divisão internacional do trabalho. Há, contudo, uma diferença importante: não temos unidade política! Aqui, a cada mudança de governo, tudo começa de novo. Não nos falta apenas projeto, mas, acima de tudo, confiança na possibilidade de um projeto baseado: (a) na nossa matriz produtiva; e (b) na continuidade de ações, construções e planos dos governos (usualmente opositores) anteriores. O resultado é que fizemos apostas erradas e abandonamos projetos pela metade. Esses projetos acabaram sendo adotados por catarinenses e paranaenses, cujas economias, de bases similares, vêm apresentando taxas de crescimento muito superiores às nossas nas últimas décadas. Entre 1986 e 2012, enquanto a economia gaúcha cresceu 80% em termos reais, Santa Catarina cresceu 142%, e o Paraná cresceu 160%. Isso, acima de tudo, porque eles fizeram a reconversão agroindustrial que nós ficamos devendo e se articularam à economia mundial, vendendo proteína animal. Enquanto isso, nós perseguíamos o sonho da reconversão industrial radical, pela atração de empresas de média tecnologia (petroquímica, automobilística) ou de alta tecnologia (microeletrônica, indústria bélica). No entanto, tudo o que obtivemos foi o fracasso previsível da guerra fiscal: menos arrecadação, serviços públicos de pior qualidade e crescente conversão em fornecedores de matérias-primas de baixo valor agregado. Como se isso não bastasse, o Plano Real atingiu o coração do dinamismo gaúcho. Porque o RS é um estado fronteiriço, nossa economia sempre apresentou uma abertura para o exterior (relação “exportações/PIB”) superior à média nacional. Ora, a principal âncora inflacionária do Plano Real é a cambial, de forma que, malgrado exceções, a nossa moeda tem estado sobrevalorizada ao longo dos últimos 20 anos, desestimulando as exportações. A expressão mais crua desse desestímulo foi a evolução da indústria calçadista do Vale do Rio dos Sinos. No entanto, ela também se expressou no baixo dinamismo exportador das nossas tradicionais indústrias de máquinas e implementos agrícolas e de material de transporte (ônibus e caminhões), que vêm privilegiando os investimentos fora do RS. Ao longo do tempo, o tabaco e a soja em grão ganharam expressão relativa na nossa pauta de exportações, traduzindo a desindustrialização do Estado. Até 2003, o RS respondia por quase 10% do Valor Adicionado Bruto (VAB) da indústria de transformação do País e ocupava o segundo lugar da produção nacional, após São Paulo. Em 2004, Minas Gerais nos ultraou, e nossa perda de participação tem sido contínua. É dentro dessa perspectiva mais geral que tem de ser pensada a crise das finanças estaduais. Tentar enfrentar esse quadro estrutural e de raízes seculares com corte de funcionários em atividade é, no mínimo, irresponsável, até porque isso já foi feito: o decréscimo do número de ativos nos últimos 20 anos é mais do que expressivo — é abusivo. Se tomarmos o conjunto dos serviços públicos básicos (educação, saúde e segurança), veremos que o número de profissionais em atividade caiu 12,91%, enquanto a população cresceu 18,27% nos últimos 19 anos. Isso ocorreu a despeito das insuficiências de qualidade e pessoal no início do período. Nesse quadro, pretender enfrentar a crise fiscal com cortes de pessoal em atividade e, por extensão, com piora da qualidade dos serviços públicos é puro diversionismo. O Governo parece haver acordado para esse fato e vem abandonando o discurso dos cortes em prol do questionamento do acordo da dívida de 1996, que comprometeu as finanças estaduais com amortizações pesadas e com um sistema de indexação e de juros escorchantes. Mais do que nunca, precisamos de unidade política para enfrentar a crise econômico-fiscal em que nos encontramos, e essa unidade só pode ser conquistada pelo abandono da ideia simplista e rasteira de que basta “fazer o dever de casa” e cortar salários e postos de trabalho para resolver o problema do RS. Quem afirma e divulga simploriedades como essa presta um enorme desserviço ao povo gaúcho. *Carta de Conjuntura FEE, 2015 1k1g1a