A fé e os negócios: viajando de avião com executivos e etnografando o cotidiano d1b5p

Marília veríssimo Veronese Cenário: voo de São Paulo para Porto Alegre, cedo da manhã. Entro no avião, sento e me recosto na poltrona, sonolenta. Três executivos de terno, conversando em forte sotaque paulistano, estão sentados atrás de mim. A princípio, penso que espero que se calem, porque quero descansar e o ‘conversê’ me incomoda. Mas a um ponto do assunto deles, a conversa chama a atenção da pesquisadora – que nunca dorme e sempre tem caneta e papel na bolsa. Começo a achar de tanto interesse sociológico que anoto algumas partes para não esquecer, pensando em registrar aquela curiosa confabulação. O registro que segue é proto-etnográfico e do cotidiano, mas achei-o deveras espantoso. Porque as gentes são mesmo espantosas, não é mesmo? Segue abaixo um registro empírico ainda sem análise. Aceitam-se contribuições e dicas de análises do discurso, pois ando sem tempo para abrir novas frentes. Vou enumerar os 3 sujeitos falantes pela sua posição nas 3 poltronas que ocupavam no avião da LATAM, contando do corredor para a janelinha. Dilemas éticos não me parecem existir com esta publicização, pois eles não são identificados; não sei seus nomes e sequer gravei a imagem de seus rostos. Em 1 hora e 15 min de viagem isso nem seria possível. Chamavam-se pelos primeiros nomes que, obviamente, não repetirei. Espiei-os ao levantar da poltrona, eles que nem desconfiavam que eu anotara algumas das suas frases e expressões, e enxerguei três homens de negócios de terno e gravata, com smartphones e notebooks modernosos em punho. Vamos a alguns fragmentos interessantes da conversa: 1-Em Porto Alegre não vai ter heliporto… (muxoxo). Cara, estou gastando quarentão por mês só pra ir e voltar do escritório. 2-Mas agora acabou o stress… 1-Sim, com isso acabou o stress. [Nota da pesquisadora: Fico pensando se “quarentão” é 40 mil reais, sem ter certeza disso. Desperto e fico escutando, os tons de voz se elevam acima do barulho do avião.] Tagarelam sobre vários tópicos dos negócios e das empresas, até que chegam no tema da “religiosidade” como parte da vida de um empresário. A controvérsia se estabelece entre eles: “Universal” ou “Assembleia de Deus”? O participante 2 prefere a Assembleia, ao que o 3 lhe responde: 3-Vc pode julgar a Universal, mas eu só te peço que vá na segunda-feira ao templo de Salomão… é um congresso, tem toda a segunda-feira as 10:30h. Segundo andar. É um congresso para o sucesso, claro que baseado na Palavra. Busca a sabedoria para os negócios. Vc sai de lá pronto pra batalha! Trabalha na mente, não no coração. Age direto na mente e ela desperta: Isso é revelação. Faz sentido, é racional, uma fé racional. Abre a visão, é voltado à mente, à racionalidade do fiel. Isso liberta a mente. 2-Mas eu acho umas coisas lá meio exageradas… assim, no meu entender, não fecham com racionalidade! 3-É que na quarta-feira já e outra coisa, voltado a baixar o espirito santo, aí pode parecer exagerado. Pra vc tem de ser o da segunda-feira. Vai, vc não vai se arrepender. Deus responde, leva poucos dias. Revelação que vem da palavra, da pregação, mas voltada à pratica e aplicada aos negócios. É como nós falamos nas empresas: quem está dentro, não vê a realidade com clareza, quem vem de fora, vê. O gerente está imerso nos problemas, não identifica; a gente vem de fora e aponta, verifica com mais facilidade o problema e a solução. É assim com o seu problema, no congresso; o pastor enxerga e mostra, através da Palavra. 2-Mas e a coisa do dinheiro, não é meio exagerada? 3-Tem fiel que vai todo dia e pega desafio todo dia. Aí claro que gasta muito; não dá pra fazer na emoção, tem de calcular. Eu pego um desafio e espero uns 20 dias, espero ser respondido – e sempre sou, Jesus e o Espírito Santo não falham nunca! -, aí pego outro… vou dosando [deduzo que “pegar desafio” é dar dinheiro por alguma realização]. O próprio pastor critica a ideia de “barganha”. Até o bispo Edir já criticou. Isso não é uma barganha, é para a obra do SENHOR e ele te responde. Eu penso assim, a cada desafio: “Senhor, É para a sua obra e serei recompensado”. E sou, e volto. É questão de despertar, orar…! Mas tem de se controlar, não pode dar assim na emoção, que depois pode fazer falta se o fiel é humilde. 2-[meio em dúvida] é, respeito seu ponto de vista. Aquilo lá eu acho que é uma empresa, e com disciplina militar. Tem muita hierarquia, “sim sr., não sr.”; Todo mundo uniformizado… ainda acho meio exagerado… 3-E só iração, só respeito, só devoção, o que te parece militarismo. 2-Mas essa parte dos desafios, a graça… a gente vai receber a graça assim, automático? Não seria uma espécie de barganha? 3-Quando Salomão pega o reinado ‘quebrado’ de Davi, o que ele faz? Um desafio! No mesmo instante Deus apareceu para Salomão. Tá na bíblia, cara, claro como água! Só não vê quem não quer! Quem está estragado pelas empulhações… Satanás mata a fé, as pessoas estão enfermas na fé… Hoje não é morte real, como nos tempos bíblicos, mas morte espiritual. Morrem espiritualmente. Veja bem, a bíblia mostra que é de Deus “dar para as obras”. E o que é o altar? Lugar de doação! Mas hoje quem doa no altar é criticado, quase apedrejado! Quem pede doação no altar é chamado de desonesto! Tanta champanhe pra Iemanjá e ninguém fala nada… Já vi pai de santo dando 15.000 reais de champanhe pra Iemanjá e ninguém falando nada dele! Tem certas coisas que são satânicas! Mas a gente entende…, sabe como é… emoção, fundo de poço, inferno, quando a gente não vê o espirito santo? O templo tá lá pra isso, cara! É transformador! Qualquer um pode ir e se descobrir. Redirecionar a mente e a vida. 1-Eu sou judeu e fico fora dessa conversa aí! (rindo). 3-Nós vamos levar o F. lá! (bem humorado). 2-Uma coisa é negócio, outra coisa… (inaudível). Mas tem lugar que eu não piso nem morto. Na igreja católica eu não piso! Nem pra assistir casamento! 3-Olha, eu piso e não me contamino. Depende do que tá dentro de vc. Fui convidado pra padrinho de casamento de uma parente, eu fui. É a fé dela, eu respeito. Eu tenho tudo muito firme e certo dentro de mim, posso ir sem ter problemas por isso. Mas enfim, cara, se vc for no congresso e obedecer, tudo vai fazer sentido, você vai ver. Como eu falo pra alguns irmãos que têm lá, pra despertar sua racionalidade, digo: “Irmão, isso não é racional. A fé tem de ser racional”. Depois voltam a falar de negócios, programa das visitas às empresas, onde o carro os buscaria etc. Resumindo a ópera matinal, era isso. Aguardo os psicólogos, sociólogos e antropólogos da religião para comentários elucidativos sobre a conversa. Eu ainda estou meio zonza.       451d6k

3 comentários em “A fé e os negócios: viajando de avião com executivos e etnografando o cotidiano” 7fw

  1. Não são “Relatos selvagens”, mas são relatos incríveis. Confesso que foi uma novidade para mim conhecer essa face de Cristo mercantilista… Deus nos livre dos falsos profetas! Parabéns, Marília Veronese, não só pela coleta de tais pérolas, mas também pela postura sempre ética diante dos fatos sociais.

  2. Pensei que ia revelar um escandalo como metodos para predicadores abusar dos fieis, mas este tipo de conversa é normal e corriqueira nos meios evangelicos. Pesquisador(a) não pode se mofar dos pesquisados. Uma interpretação é que estos homens (ou um deles) acredita que o sucesso comercial (e outros) tem uma explicação sobrenatural ( o que não é tão fora da razão quando se pensa nas coisas absurdas que tem sucesso no mundo dos negocios) – então ele procura conjurar essas forças sobrenaturais. Pode dar certo ou pode não, mas pelos menos ele tentou – e faz sempre um investimento moderado. Tem outros ( a vezes muito humildes) que investem tudo o que eles tem, e ali acaba mal. Acreditar na causalidade subrenatural é … ‘natural’. Agora vai frecuentar uma igreja para fazer etnografia durante seis meses ou um ano e veja… poucos o fazem porque é verdade que a gente sente vergonha ao pensar que tem tantas igrejas no nosso bairro.

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