Luiz Carlos Maciel O advento de um novo inverno em nossa civilização – para lembrar a metáfora que usei em meu livro As Quatro Estações – se apresenta como, no mínimo, desconcertante. Todos os avanços que vivemos, por várias décadas, em termos de liberdade existencial, percepção social e política, aprofundamento da vida espiritual e, numa palavra, expansão da consciência, parecem abandonados como se simplesmente nunca tivessem acontecido. O progresso do espírito parece ter estancado, num mundo sanguinário, dividido entre Bush e Bin Laden, no qual o único instinto ativo para ser o da morte. Parou por que? Por que parou? Uma das idéias mais interessantes surgidas na reflexão de Jean Baudrillard sobre o nosso tempo é a de que assistimos a uma reversão da própria História que tendo imperceptivelmente ultraado o próprio fim inverte o seu sentido para o ado. Ele cita um texto de Elias Caneti, publicado em 1978, época em que se definiria a precipitação de nosso mundo no virtual. A partir de um certo ponto, a História não era mais real. Sem que se percebesse, toda a humanidade subitamente abandonou a realidade; tudo o que aconteceu desde então supostamente não foi verdadeiro; mas nós supostamente não percebemos. Nossa tarefa agora seria encontrar esse ponto e enquanto não o localizarmos, estaremos condenados a mergulhar em nossa destruição presente. A História ocultou de nós o seu fim e começou o caminho de volta, na direção oposta. Por disso, o tempo não é mais contado progressivamente, por adição, a partir da origem mas por subtração, a partir do fim. Não temos mais o futuro a nossa frente mas uma dimensão anoréxica na qual se estende uma realidade virtual. Nela, o simulacro precede o real, a informação precede o acontecimento. Estamos imobilizados entre nossos fósseis e nossos clones. Ou seja: estamos diante do desaparecimento da História real, dominada por uma memorização fanática. Em vez de nascerem e morrerem, os seres surgem já como fósseis virtuais. A História teria sido infectada por um retrovirus e seu novo movimento privilegia a retaguarda. Isso explica, segundo Baudrillard, o fenômeno do desaparecimento das vanguardas e o ressurgimento de formas adas e arcaicas, utopias retrospectivas que engendram uma História espectral, feita de acontecimentos-fantasmas. Foi o advento da chamada era da mediocridade. De repente, algum dejá-vu qualquer ressurge como uma assombração imprevista. Como isso foi possível? Ele não pertencia ao ado? Só o retrovirus explica. Nos tempos atuais, a humanidade anda de marcha ré. Os sinais desse inesperado movimento, considerado simplesmente impossível ou absurdo pelo pensamento estratificado durante séculos de especulação racionai, podem ser percebidos hoje pelo olhar atento. Essa inversão é apenas disfarçada, mas não desmentida, pelo progresso científico e tecnológico, que não cessa de inventar novos brinquedos, muitos deles mortíferos. Não é de irar, por exemplo, que a dialética da História humana tenha sido substituída por um estruturalismo petrificador, num movimento de recuo do pensamento, de acordo com a metáfora de Sartre, da imagem dinâmica do cinema para a fotografia parada. Ou que as perspectivas de uma nova organização econômica, política e social tenha sido abandonadas em favor de um neoliberalismo selvagem que, como contrapartida, precipitou nossa civilização num terrorismo fundamentalista. Ou que a ética seja fundamentada na restauração de valores iluministas, pré-marxistas. Ou que a experiência espiritual genuína tenha sido sepultada por igrejas e seitas igualmente fundamentalistas. Os sinais de inversão da dinâmica coletiva estão por toda parte. Assistimos, por toda parte, a um triunfo deprimente da caretice – ou seja, do formalismo sobre a espontaneidade, da aparência sobre a essência, dos títulos, comendas e medalhas sobre o mérito legítimo, da hipocrisia burguesa num ápice surpreendente sobre a vida natural e autêntica. A reversão da História permitiu às classes médias assegurar a sobrevivência de seus deuses ao mesmo tempo que condena seus saudáveis demônios ao esquecimento. Essas tarefas foram confiadas às armas com que ainda conta, em especial, na mídia e na academia. Essas duas instituições alavancaram o processo de reversão. Primeiro exemplo: a moral tradicional, baseada na hierarquia indiscutível, na prepotência e na submissão, na obediência e no conformismo – ou seja, numa palavra, na repressão – teve de enfrentar a emergência de uma moral libertária que cresceu durante a maior parte do século ado, de uma maneira aparentemente irresistível. Com raízes na psicanálise de Freud, que desmascarou essa moral repressiva como origem da neurose, ou na subversão de valores de Nietzsche, que a denunciou como contrária aos interesses da própria vida, a nova perspectiva moral ganhou uma enunciação aguda no pensamento de Sartre, que viu claramente seu fundamento na liberdade. O auge desse processo de manifestação da nova moral libertária foi alcançado, na prática, pelo movimento que se convencionou chamar de contracultura. Sua reversão restaurou alguns dos mais renitentes preconceitos da moral tradicional. Mas a situação atual, segundo Baudrillard, não é simplesmente contraditória ou irracional – ela é paradoxal. Há uma ironia objetiva no processo recente: quanto mais os sistemas políticos, sociais e econômicos progridem mais geram a própria descontrução, a realização deflagra a reversão automática, pura e simples. Essa reversão provocou euforia na cidadela da classe média, o que enfatizou paradoxos simplesmente escandalosos. Com a reversão da História, o mais recente é o mais remoto; o mais distante é o mais avançado. Assim, apesar dos avanços de Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Norman O. Brown, ou contra eles, a psicanálise acomodou-se em sua missão de promover a adaptação iva e portanto o conformismo. A pretexto de contestar a dependência de Sartre ao cogito cartesiano, o estruturalismo o declarou superado, numa manobra logo abençoada pelas universidades. O Sistema cujo poder fora denunciado é, então, consagrado como insuperável, uma estrutura inabalável. Com tal fundamento teórico, as novas gerações são facilmente convencidas da verdade suprema do realismo cínico. Ao mesmo tempo, a mídia encarregou-se da diluição da contracultura, apressando sua retração. Substituiu-a, no espírito das novas gerações, pelo culto ao aparecimento incessante de novas maravilhas do entretenimento, graças à nova tecnologia digital. Um computador e um celular de última geração são apresentados – e o que é pior: acreditados – como suficientes para assegurar a felicidade final. O estado de consciência vigente foi reforçado por meios mais sutis, subliminais. Assegurou-se, assim, nas novas gerações a auto-hipnose e o emparedamento mental que inibe a liberdade original da consciência e tende a congelá-la, como diria Sartre, na rigidez do ser em-si. O panorama atual provoca espanto. Como compreendê-lo? Baudrillard sustenta que uma História virtual, na qual a informação substitui o acontecimento, está ocupando, hoje, o lugar da História real, e que isso resulta em nossa falta de responsabilidade, tanto individual quanto coletiva. Assim, por exemplo, o apelo de Sartre pela liberdade e conseqüente responsabilidade, é considerado, para todos os efeitos da reversão, uma mera ilusão do ado. No plano econômico, político e social, a reversão foi ainda mais espetacular. O desaparecimento da União Soviética e o triunfo do capitalismo selvagem, na nova encarnação neoliberal, serviu de pretexto para a desconsideração do pensamento teórico marxista. O objetivo, naturalmente, é a supressão radical da rica tradição do pensamento crítico, mais uma vez beneficiando a aceitação iva e o conformismo. O deus da classe média, ao qual ela deve sua existência, o fundamento metafísico do capitalismo, é o dinheiro. Nos dias que vivemos, experimenta sua promoção a uma espécie de deus, glorificado em prosa, verso e uma enxurrada incessante de tratados de economia, organizações econômicas e seus templos máximos que são os bancos. Esse fetiche abstrato, o vil metal, a culpa materializada da Humanidade, segundo Norman O. Brown, a por obra de Deus ou da Natureza – e parece existir como o céu e o mar, o Sol e a Lua, as montanhas e as árvores existem. A mera existência do dinheiro, portanto, é a verdadeira origem da alienação, segundo Marx, da reificação, segundo Lukacs, ou da serialização, segundo Sartre. Estes três conceitos descrevem, de diferentes ângulos, o mesmo fenômeno mórbido que caracteriza nossa vida em comum – o endeusamento do vil metal. Mas Baudrillard vai, hoje, mais longe. Ele considera termos como alienação,. reificação e serialização, obsoletos demais para indicar o que acontece hoje – e descreve nosso mundo em termos de excrescência tecnológica, obscenidade e obesidade proliferantes e virtualidade desenfreada. Com um humor e um sarcasmo necessários à filosofia de hoje, Baudrillard é implacável. A nossa situação, já se encontra além da física e da metafísica, é totalmente patafísica – uma paródia que, segundo seu criador Alfred Jarry, é “a ciência das soluções imaginárias”. A contestação mais enérgica, no século ado, foi feita, além do marxismo e do existencialismo, por este outro demônio que assombrou a classe média – a contracultura. Foi preciso exorcizá-lo de todas as maneiras. Ele acenava com uma liberação sexual natural, saudável, uma emancipação das falsas necessidades materiais, uma libertação do espírito. Retomava a inspiração anarquista no que ela tinha de mais positivo e mais fértil. Seus arroubos juvenis pareciam anunciar, de fato, uma nova era. A reversão se manifesta nesse ponto em que a ameaça da contracultura começava a parecer irresistível. Foi o ponto de mutação para a degeneração presente. A mudança qualitativa inverte então seus vetores, uma inversão diabólica. A liberdade sexual torna-se permissividade e obscenidade; as necessidades materiais são absolutizadas, numa distorção maligna que deifica o mercado capitalista; o crescimento espiritual regride para as formas petrificadas das igrejas tradicionais e das novas seitas. E por aí vai. A “nova era” caminha para trás. Tudo tem a ver com tudo, na paisagem sombria da reversão. Só é preciso, em cada caso, encontrar o ponto em que a conexão maligna se faz. O recuo deliberado que estamos vivendo hoje apresenta suas justificativas e desculpas em nome da ciência e da tecnologia e de seus progressos aparentemente maravilhosos. Os alertas de Heidegger são solenemente ignorados, como devaneios místicos. A ciência não pensa e a tecnologia é o estágio final do esquecimento do ser. A metáfora da primeira parte dos filmes sobre a Matrix, a que interessa, ilustra artisticamente esse abismo Beaudrillard chama ao processo de “Assassinato do Real”; trata-se de um “Crime Perfeito” um extermínio do qual nada resta, nenhum traço, “nem mesmo um cadáver”. Neste ponto cego da reversão da História, nada mais é verdadeiro ou falso, e tudo perambula indiferentemente entre a causa e o efeito, entre a origem e sua finalidade, uma mutação crucial de um estado crítico para um estado catastrófico. Hoje, toda reflexão sobre a realidade é, no máximo, uma precária hipótese de trabalho, justificada apenas por tentar satisfazer nosso misterioso instinto especulativo – ou, no máximo, uma criação de índole artística, uma edificação imaginária. Como isso aconteceu? O engenho da feitiçaria científica e tecnológica acabou por criar essa tal de realidade virtual – e quando suas características e sua própria essência foram comparadas com as da suposta verdadeira realidade, as diferenças efetivas não podiam mais ser detectadas. Eram tão similares que se confundiam. Uma espantosa equação entre o real e o virtual, foi inevitável. A realidade na qual a Matrix, do filme, existe e opera é, em tudo, similar à realidade virtual que ela cria. As categorias de tempo e espaço, matéria e energia são rigorosamente as mesmas. Não há “realidade” substancial em nenhum dos casos. Eis o que Baudrillard chama de Crime Perfeito. Quando se fala em História, não se trata da História vivida no modo do ser para-si, no sentido de Sartre, mas a História registrada no modo do em-si. Esta “História”, objeto de filósofos e historiadores, é uma criação mais ou menos arbitrária, largamente subjetiva – e, como tal, mais próxima da obra de arte do que da medição científica. Seu carácter numinoso, sempre envolto em mistério, contudo, não impede que, à sua maneira, também se apresente como um desvelamento do ser pois, como sustenta Heidegger, o próprio ser é histórico, a aletheia é tempo.. Entretanto, tal fábula – a pretensa História – , embora reveladora como os antigos mitos, não pode ser contemplada com uma crença factual, ingênua. A alegada “reversão da História” é uma metáfora para um declínio evidente que macula, hoje, o instante. Da mesma maneira, pode-se falar de um Assassinato do Real, ou de um Crime Perfeito, como uma metáfora relevante para a consciência de nosso tempo. Baudrillard chega ao âmago da questão quando percebe que o Assassinato do Real significa, no fundo, o Assassinato da Ilusão, o extermínio dessa “ilusão radical e objetiva do mundo”. A situação descrita por Baudrillard, uma visão que muitos julgam pessimista, é uma oportunidade para o despertar espiritual. Sua compreensão simplesmente exige o desvanecimento dos véus de Maya. Diz Baudrillard: Afinal de contas, pode ser que a humanidade, por intermédio de uma compulsão enigmática, esteja envolvida intimamente nesse processo catastrófico e portanto esteja condenada a desaparecer. :Se for este o caso, seria muito melhor tratarmos nosso desaparecimento como uma forma de arte –exercitá-lo, representá-lo, criar uma arte do desaparecimento. É melhor que a alternativa, que seria desaparecer sem deixar traços, sem sequer o espetáculo de nossa destruição. 334w19