Por Demétrio Rocha Pereira No ano ado, mais da metade dos pacientes que aram pelo ambulatório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre vieram do interior e do anel metropolitano. Foram 248.220 consultas – um número que excede em quase dois mil a quantia referente aos atendimentos a porto-alegrenses. Esses índices vêm aumentando a cada ano pela prática da ambulancioterapia – termo criado para designar o transporte de pacientes do interior para os grandes centros. O fenômeno não é exclusividade de um ou outro hospital. Em 2006, a Capital recebia, apenas do Vale do Taquari, cerca de 250 pacientes por dia, que eram distribuídos pelos diversos estabelecimentos hospitalares da cidade. Na época, críticas já apareciam, denunciando os gastos com ambulâncias, o transtorno para os pacientes e o abarrotamento dos hospitais. Sem frear ante as repreensões, a política das ambulâncias chega a 2009 fazendo parte da rotina de ainda mais pessoas. Uma das tantas ambulâncias de outras cidades que chega aos hospitais de Porto Alegre | Foto: Guilherme Herz Reclamações e dribles Manhã no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Ambulâncias, vans, Kombis e microônibus se revezam na entrada principal, povoando os corredores externos do prédio com pessoas das mais diversas procedências. Esteio, Capivari do Sul, São Pedro da Serra, Camaquã. Dez minutos de observação é o bastante para que sejam catalogados os brasões de municípios gaúchos de todos os cantos, gravados na lataria dos automóveis. É a ambulancioterapia acontecendo. Mara Regina, 41 anos, e o filho, Henrique dos Santos Machado, 20 anos, contemplam o pátio ensolarado à frente da entrada do ambulatório. Uma vez por mês, eles saem cedo de Capão da Canoa, rumo à Capital. Chegaram às 6h30min, serão atendidos às 13h e voltarão às 21h, com uma consulta devidamente marcada para o próximo mês. Toda essa espera é o tempo necessário para que todos os ageiros da van da Prefeitura de Capão da Canoa sejam atendidos nos seus respectivos hospitais e horários. O veículo chega antes do primeiro compromisso médico e só regressa ao município de origem após o último paciente ter sido liberado. “Não pode ir embora enquanto tiver alguém faltando”, explica Mara. É diferente com quem vem na van de Parobé. De acordo com três parobenses que aguardavam a hora de entrar no ambulatório, o carro segue seu rumo se o ageiro não estiver esperando para ir embora na entrada do hospital. Os veículos saem do município três vezes por semana e voltam menos cheios se alguma visita ao médico se estender mais do que devia. Não é a única reclamação. Acompanhando a esposa, um morador da cidade afirma que Parobé tem carência de médicos qualificados: “A nossa sorte é conhecermos pessoas na Secretaria de Saúde”. O contato garante que a esposa seja favorecida na marcação de consultas e atendida mais rapidamente, um raro drible na costumeira demora que o processo costuma impor aos pacientes do SUS. Pacientes de Parobé aguardam atendimento em frente ao Hospital de Clínicas | Foto: Guilherme Herz Cotas divididas entre os municípios estabelecem um limite mensal de marcações. Para se esquivar do processo, uma das estratégias é ir diretamente a um posto de saúde da capital e apresentar um endereço de Porto Alegre – geralmente o de parentes ou demais conhecidos. Evidentemente, essa prática contempla tanto a quem necessita de tratamento especializado quanto a quem, simplesmente, prefere consultar com os médicos da capital. Diante disso, não é de se irar que o número consultas de pessoas vindas de outras cidades do estado ultrae o previsto pela Central de Marcações da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Em 2008, a Central disponibilizou três milhões de consultas, dentre as quais 15% (450 mil) foram destinados a vagas do interior – o ambulatório do Clínicas, sozinho, absorveu quase a metade desse número. “Aqui é bom” Na mesma proporção que surgem as críticas aos sistemas de saúde de suas respectivas cidades, na fala dos entrevistados aparecem os elogios ao atendimento dos hospitais porto-alegrenses. Perguntada sobre a situação da saúde em Capão da Canoa, Mara Regina ri: “Lá, só se for pra tratar dor de barriga. Aqui é bom”. Quem tem ainda menos a reclamar são os enfermos de Erechim, único município gaúcho que conta com um albergue particular dentro de Porto Alegre. Estabelecimentos como esse abrigam doentes, idosos, marginalizados e viajantes em busca de estadia barata na capital gaúcha. Mas, diferente dos demais albergues da cidade – muitos patrocinados por deputados –, o de Erechim hospeda apenas moradores da “Capital da Amizade”, que chegam semanalmente a Porto Alegre. A vantagem também vem a calhar para motoristas como Rogério Moresco, de 32 anos: “Para nós é bom. O trajeto se resume ao transporte entre o albergue e os hospitais”. O motorista se prepara para sair. O paciente já voltou, ocupou o primeiro assento atrás de Moresco e agora espera a arrancada do automóvel. Certamente, o eio será mais curto do que os 362 km que teve de vencer de Erechim até aqui. Tânia Gross, de 36 anos, viajou menos. Foram pouco mais de 100 km de Marques de Souza – da microrregião de Lajeado e Estrela – até Porto Alegre. A van, cheia, trouxe o filho de Tânia, que dorme no colo da mãe, em um dos bancos do pátio do HA. O menino estava em um ônibus que bateu. Veio conferir se está tudo em ordem. Percebendo uma presença estranha, ele levanta e olha para os lados, curioso, só para se certificar de que já pode deitar de novo. Parece bem. Perto dali, encostado em um pilar, está Sadi Santos Souza, completando os seus 53 anos de vida. Morador de Glorinha, Sadi tem vindo há “uns três ou quatro anos” ao HA para tratar de um câncer na garganta. A luta contra a doença é algo que o desgaste da aparência não deixa duvidar. Dessa vez, ele não veio com a ambulância municipal: “Hoje vim de ônibus. A consulta é só às 12h30min, e a ambulância sai de lá às seis e meia, sete horas da manhã”, justifica. E acrescenta: “O carro sai todo dia de lá, quase sempre cheio”. Antes de precisar cuidar da garganta, Sadi ou por uma cirurgia no fígado, também no Hospital de Clínicas. A cicatriz herdada da operação é uma marca que ele não faz cerimônia para mostrar ali mesmo, no lugar de onde observa ir ando aos poucos o aniversário que não pretende comemorar: “Não tem como. O dinheiro vai todo para os remédios”. Ambulâncias enfileiradas fazem parte do cotidiano da Sarmento Leite. No trecho em que a rua a ao lado da Santa Casa e se encontra com a Avenida Independência, veículos estacionam diariamente. Caminhando pela calçada, é possível perceber motoristas que dormem à espera dos ageiros e ageiros que se esticam sobre leitos de ambulância à espera do atendimento. Entre os condutores que ali se encontram, estão Ricardo Barbosa, 36 anos, e William Renato, 35 anos. Ambos vieram de Santa Catarina, e conversam à frente da Sprinter da Prefeitura de Balneário Camboriu, dirigida por Ricardo. Ele trouxe um menino que realizou um transplante de fígado na Santa Casa, e agora precisa de acompanhamento médico. Segundo o motorista, as secretarias de saúde de seu estado costumam enviar para Porto Alegre apenas os casos mais graves. “São situações em que ficamos mais tensos. Além da distância, tem a urgência para o atendimento”, observa. Mas há casos que escapam à regra. William comenta que é comum a vinda de pessoas que se mudaram para Santa Catarina, mas que desejam continuar consultando com os mesmos médicos que visitavam quando moravam no Rio Grande do Sul. A conversa é interrompida pelo forte ruído do motor de um ônibus da Prefeitura de Camaquã. Perto, na entrada do Hospital Santa Clara, uma família de Novo Hamburgo, que veio de carro, se impressiona com a quantidade de camionetes e minivans que vão deixando à porta do prédio os seus ageiros. Emergências O Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre não está na rota da balbúrdia das ambulâncias. A atuação do HPS está focada nos casos emergenciais. Em 2008, dos mais de 190 mil atendimentos do HPS, pouco mais de 22 mil foi a porção correspondente aos pacientes de fora da cidade. No mesmo ano, a Emergência do HA registrou mais de 55 mil atendimentos, dentre os quais cerca de um terço é a fração referente a pacientes do interior e da região metropolitana – uma parcela consideravelmente menor do que a observada nas estatísticas ambulatoriais. Mas a maior emergência parece ser outra. Segundo uma pesquisa realizada em 2006, a ambulancioterapia sugaria aproximadamente R$ 130 mil mensais dos cofres públicos dos municípios do Vale do Taquari. Algumas secretarias de saúde da região têm estudado medidas para evitar a ambulancioterapia, como a consolidação de convênios com hospitais e clínicas da região. Até mesmo o pagamento de atendimentos particulares para os pacientes parece ser preferível ao transtorno das ambulâncias. Tudo para que essas populações possam também dizer: “aqui é bom”. 5h3z
Parabéns pela reportagem. Percebeu o problema antes dos grandes “grupos”, onde só virou notícia (“pra vender jornal”) após o acidente com o micro de Sobradinho.