ANA MARIA BARROS PINTO
Quase dois anos após a retomada Mbya Guarani da área da extinta Fepagro Litoral
Norte, em Maquiné, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) pediu ao juiz o fim da ação
de reintegração de posse ajuizada em fevereiro de 2017, garantindo, assim, a
permanência dos indígenas no local.
No pedido, aceito pelo juiz de Capão da Canoa, fica definido que haverá a destinação de parte da área para fins de assentamento da aldeia Mbya Guarani (208 dos 367 hectares).
O restante da área fica com pesquisa que vinha sendo desenvolvida pela então Fepagro, agora um departamento da Secretaria do Desenvolvimento Rural (SDR),
A decisão da PGE é resultado de uma ampla mobilização, especialmente dos indígenas,´para reaver terras ancestrais do Litoral Norte e assim poder
retomar sua cultura, avalia o procurador do Estado, Silvio Jardim, representante da PGE no CEPI (Conselho Estadual de Povos Indígenas).
O movimento envolveu também dezenas de pessoas e de organizações da sociedade civil, que se deslocavam a Maquiné para reuniões com os Mbya Guarani, sempre recepcionados com cantos tradicionais do coral de crianças e jovens da aldeia batizada de Ka’aguy Porã (bela terra que tem vida).
A mobilização teve também audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos da ALRS e reuniões com os secretários da Agricultura, primeiro Ernani Polo e depois Odacir Klein, entre muitas atividades de apoio ao povo Mbya Guarani na sua
reivindicação pela terra ancestral.
Por conta desse processo e da busca de uma negociação, os prazos da reintegração de posse foram suspensos várias vezes.
Jardim salienta que a retomada Mbya Guarani envolveu muitas instituições na busca de uma solução: as Secretarias Estaduais da Agricultura, Pesca e Irrigação (SEAPI), que detém a área desde a extinção da Fepagro), Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo (SDR) e Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema); a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS, Associação dois Juízes para a Democracia (AJD), Associação dos Servidores da Pesquisa Agropecuária (Assep), Ministério Público Federal , Comissão de Direitos Humanos da PGE/RS e Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI).
“É um o significativo, mostra um caminho quando há uma determinação,
engajamento da sociedade e das instituições para resolver um problema”, diz Jardim.
Chama a atenção para o fato de os Mbya compreenderem que era importante
respeitar a área de pesquisa, sendo possível chegar a um acordo na utilização da área.
A primeira retomada
Foi no dia 27 de janeiro de 2017 que 27 famílias Mbya Guarani retomaram uma área
em Maquiné, a 155 km de Porto Alegre, onde funcionou por muitos anos a Fundação
de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Sul (Fepagro), extinta pelo atual governo.
Eles entraram pacificamente na área de mata nativa, por baixo das cercas, guiados por seu Deus maior Nhanderu, como sempre contam.
Foi a primeira retomada no RS, onde o povo Mbya Guarani é conhecido por viver em
acampamentos precários por décadas, nas beiras de estradas, com sinalização de
trânsito de “área indígena”.
Ficam por ali aguardando que o governo lhes destine uma terra para que possam viver com dignidade.
Mas na maioria das vezes, quando a área prometida vem, é terra deteriorada, quase sem vida e que não serve mais para o plantio dos principais alimentos tradicionais, como o milho, mandioca e batata doce.
Desde o início, as lideranças Mbyá Guarani repetiam que o movimento não era
ocupação nem invasão. É uma retomada da sua dignidade enquanto povo, o que só é
possível com a vida no seu território ancestral.
Por viverem naquela região, eles circulavam por aquelas terras coletando plantas medicinais, frutas e matéria prima para o artesanato.
Enquanto aguardavam a decisão da Justiça, os Mbya foram organizando a Ka’aguy
Porã, retomando a cultura num lugar que possibilita o nhanderekó, o jeito de ser
Guarani.
As crianças ali crescem saudáveis e felizes em interação com a mata sagrada
Mbyá Guarani. Recebem visitantes de várias cidades e regiões e ampliam os apoios
em Maquiné e arredores. E já tem até uma escola, a Tekó Jeapó (cultura em ação, em
tradução livre), totalmente idealizada por eles.
Povo de resistência
Existem cerca de duas mil pessoas Mbyá Guarani vivendo em aldeias ou acampamentos no Rio Grande do Sul. No sul e sudeste do Brasil chegam a sete mil, e estão ainda na Argentina e Paraguai.
Fazem parte dos povos originários das Américas que perderam seus lugares (e suas próprias vidas) de modo extremamente violento para os colonizadores europeus, os quais, em grande medida, aqui no Rio Grande do Sul, com pouco mais de um século de chegada do além-mar.
O território dos Guarani – Guarani Retã- é anterior à organização dos estados
nacionais atuais. São caracterizados por ecossistemas de notável equilíbrio, com terras saudáveis para o cultivo dos seus alimentos básico.
É a “terra sem mal” que o povo guarani tanto busca: os “males” para o povo guarani são uma terra esgotada para o plantio, uma paisagem desértica, um campo sem árvores e pássaros ou, como atualmente, a produção de soja, cana de açúcar ou pinus e a criação de gado.
Também, e em consequência, doenças e mortes por fome e epidemias, desentendimentos, desordem e conflitos entre os membros e famílias das
comunidades.
Um dos maiores “males” que esse povo tem enfrentado é a invasão e
destruição das suas terras, e com isso a ameaça contra o seu modo de ser, sua cultura, somada à discriminação e desprezo que os “brancos” invasores lhes impõem.