Guto Leite – Professor de Literatura Brasileira (UFRGS), poeta e compositor, parte do coletivo Frente de Professores da Letras em Defesa da Democracia De início esclareço o leitor que não vou tentar repetir as tão frequentes e imprescindíveis análises que vêm sendo feitas por historiadores, jornalistas, cientistas sociais, filósofos etc.[1]. Sou somente um professor de literatura e conto com a segurança desse lugar, recusando voos mais altos. Pretendo, contudo, indicar alguns aspectos da atual conjuntura que não têm surgido nos textos que leio ou novas facetas de aspectos comumente abordados, no intuito de tentar construir uma visão mais complexa do golpe de Estado, refletir um pouco sobre nossa posição e responsabilidade diante do ocorrido, como pessoas que pensam o processo, e aventar algumas saídas para recuperarmos as bases mínimas de um debate democrático. Vale dizer, primeiramente, que mais uma vez, como no golpe de 64[2], a burguesia brasileira preferiu o conforto subordinado ao capital internacional aos riscos de uma disputa por maior autonomia decorrente de arranjo interno. Isso torna evidente que são muito estreitas as possibilidades de conciliação entre classes e do modo como foi feito até hoje no país, notadamente a partir do governo Lula, ficamos à mercê de uma reviravolta brutal que não só nos tome os direitos obtidos, mas avance no aumento da assimetria. CLT, Previdência, SUS, Enem; está tudo em jogo. O combate à corrupção e uma reforma política efetiva são alguns dos instrumentos que poderiam agir nessas relações em favor dos mais oprimidos, no entanto a elite brasileira está sempre atenta na manutenção de seus privilégios. Fica claro também que Dilma não errou mais ou menos do que outros presidentes, ou mais paradoxal do que isso, seu erro político foi certa intransigência a aspectos fisiológicos do Estado brasileiro. Em síntese: seu erro foi seu acerto, ou vice-versa. Não tão intransigente quanto a outras conciliações, como em relação ao agronegócio e às comunidades indígenas ao lucro dos bancos, ao defender autonomia do Ministério Público – afinal, ela não deve, nem Teme – ou bloquear as influências de Eduardo Cunha em Furnas, ela se tornou elemento estranho ao universo político nacional, cercando-se de aliados que não lhe bastaram no processo de impedimento. Que golpes de Estado em por dentro da constituição cordial da República brasileira, também parece evidente na observação de quantos governos eleitos conseguiram completar seus mandatos. Fica, portanto, a dúvida se estamos falando do fim de um projeto de esquerda ou do fim de um projeto de República, já que alianças pragmáticas, sempre mais fortes do que oposições, demonstraram que mais cedo ou mais tarde fazem a serpente quebrar o ovo. Diferente de 1964, no entanto, dessa vez o conluio externo-interno contava com a máquina da grande mídia para se impor, aliás, boa parte dela, formada justamente quando da flagrante obstrução autoritária anterior. Essa terceira perna midiática foi fundamental porque construía consensos e fazia querer a derrubada da presidenta, como publicidade política, ou simplesmente propaganda, aos moldes do que houve na Rússia, na Alemanha ou nos Estados Unidos em quadros semelhantes. Milhares de pobres diabos canarinhos foram às ruas achando que queriam estar ali e que falavam por si – uma parte desses experimentam agora aquela sensação conhecida de propaganda enganosa, constrangendo-se ou silenciando suas participações. Cabe acrescentar que o papel da mídia no golpe está ligado a, pelo menos, dois pontos importantes do Brasil pós-1985 e, também, do capitalismo, razoavelmente a partir do mesmo marco. No primeiro caso, parte da conta precisa ser paga pelo regime civil-empresarial-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, provocando transformações importantes no Ensino Básico, como também na composição geral do imaginário do brasileiro – houve tempo que em certos horários a Globo contava com Ibope de 100%![3]. Em geral, essa geração que hoje tem entre 20 e 50 anos, aproximadamente, portanto, formada entre a Reforma Educacional de 1971 e o Governo Fernando Henrique Cardoso, é pouco educada politicamente, nacionalista, familista e religiosa, facilmente influenciável por discursos que mobilizem esses valores, que se esquivem da realidade material para manipuláveis abstrações. No segundo caso, parte da ilusão contemporânea constrói-se por certa liberdade absoluta do sujeito diante do mercado, visto que esse mercado, ultrarramificado, se movimenta com bastante facilidade para atender às mais variadas demandas[4]. Assim, não basta dizer o que deve ser feito, mas é necessário que o consumidor, também das notícias, acredite ser autor e protagonista daquela ideia. Creio não ser necessário mergulhar nas relações entre narcisismo, superficialidade, espetáculo, fetichismo, falso gozo e angústia permanente para analisar os fogos de artifício ouvidos quando da grotesca sessão do Congresso de votação do impeachment[5]. Discriminados esses nós, avancemos um pouco pela dimensão internacional da intervenção em nossa democracia. Não hesito em dizer que há um duplo despiste sobre a palavra “impeachment”. Evidentemente não é impeachment. Não houve crime de responsabilidade e, se houve algum eventual equívoco da presidenta, ele não justifica a perda de mandato. Só canalhas, ingênuos ou ineptos defendem a tese de impedimento. Os senadores “julgaram” pela volta da impunidade, com o fim da Lava-Jato, e/ou por sinecuras para si ou para os seus, apoios eleitorais etc. Indo adiante, defendo, entretanto, que também a palavra “golpe” não é suficiente. Trata-se de um ataque do capital internacional, centrado nos EUA, às nossas riquezas, nomeadamente: Pré-sal, Aquífero Guarani, Amazônia, mercado consumidor, entre outros. Por isso, tampouco é golpe, mas “guerra”. A palavra mais precisa é guerra. Estamos assistindo à nova maneira de se fazer guerra a uma nação, modus operandi que já tinha sido testado com sucesso em nações menores – desestabilização, cooptação de agentes públicos do executivo, do legislativo e do judiciário, mudança conveniente de governo; tudo absolutamente “dentro dos ritos legais”. Se essa atualização do software da violência resulta de aumento de tecnologia ou de perda de uma hegemonia global clara por parte dos Estados Unidos, é um tanto cedo pra dizer. Mas vale a reflexão, novamente, de Chomsky, nos alertando de que os Estados podem conseguir impedir a ação das instituições em que resistem os modelos de servidão e escravidão do ado, as grandes corporações[6]. A metáfora do linguista é intrigante: de certa maneira o Estado nacional é uma jaula que nos protege da selva das corporações. Com o êxito do ataque, seremos explorados para a manutenção dos privilégios dos mais ricos em escala global – sendo um “país classe média”, digamos –, e internamente os mais pobres serão explorados primeiro para a manutenção dos privilégios da elite, mas, acreditem, também chegará a hora a classe média manobrada. Como citei no parágrafo anterior, já toco no assunto: é nítido que a justiça brasileira – juízes, advogados e promotores –, da porta da cadeia ao STF, está aparelhada, sem nem mesmo precisarmos aludir ao treinamento de juízes e promotores nos EUA há alguns anos. Não é preciso que todos ajam tendenciosa ou politicamente. Aqueles que o fazem são numerosos o bastante para afirmarmos, angustiados, que atualmente não há justiça no Brasil. Pode parecer que não, mas a Constituição é algo bastante tênue e deve contar com uma confiança coletiva de que ela está sendo respeitada. Se vazam escutas telefônicas, fazem conduções coercitivas arbitrárias, manipulam depoimentos, alargam ou encurtam tempos de prisão conforme interesses específicos, que crimes realmente não podem ser praticados? Ou então: se há tamanha e notória impunidade de políticos e juízes, por que eu devo ser o único a seguir a lei? Não temos histórico de guerra civil – como vaticinou o Senador Requião há alguns dias –, mas a instabilidade que um regime de exceção provoca não é de se desprezar. Por fim, o último aspecto que eu gostaria de comentar antes de algumas conclusões é que a parte progressista da comunidade internacional está atenta e preocupada com a ruptura na democracia brasileira. Se é possível essa intervenção no Brasil, com que nação não seria possível fazer o mesmo? Ou uma segunda pergunta: em que medida um ataque à democracia brasileira – a quarta maior do mundo em número de eleitores (oxalá tivéssemos o mesmo número de leitores!) – não coloca em risco a viabilidade da democracia no capitalismo moderno, isto é, desvela certa incongruência explícita entre capitalismo e democracia plena: não é desejável formar cidadãos emancipados numa sociedade que trabalha a partir de produtores e consumidores, afirmou Adorno há um pouco mais de quarenta anos; fazer pensar e fazer comprar seguem lógicas contraditórias. Complementarmente, com a operação do capital nacional e internacional na política, começa a se desenhar a sensação de que é mais importante meu poder de compra do que meu poder de voto, ou melhor, de que ao comprar é que estou realmente votando, estou votando nas marcas e empresas, já que governantes podem ser substituídos caso contrariem interesses do mundo do capital. A se verificar qual será o tamanho dessa perturbação no já turbulento sistema capitalista contemporâneo[7]. Espero ter conseguido apontar que, em certo sentido, não havia nada que pudéssemos, nós, ter feito, para evitar o colapso que se deu – alguém precisa bancar a crise sistêmica do final dos anos 2000 afinal! Mesmo para o governo Lula, a janela de realização era bastante exígua. Conheço alguns bastidores que indicam concessões importantes feitas pelo ex-presidente antes mesmo de seu primeiro mandato e daí dependeria de Lula ter efetuado uma guinada mais brusca e cirúrgica, amarrando firme a elite no financiamento do bem-estar social brasileiro, algo difícil de se exigir a posteriori. Os dois mandatos de Lula avançaram bastante dentro do modelo de que dispunham, ponto. Talvez, mas seria difícil, pudessem alterar aspectos estruturais desse modelo, ponto. Mas isso não significa que não haveria um ataque, talvez até mais violento, às riquezas brasileiras – desde o começo dos anos 2000 já sabíamos que grandes reservas deste século estavam por aqui. Em 2010, o governo Dilma herda todos esses imbróglios e sem contar com os quadros do PT para apoiá-la integralmente, como era o caso do Lula. Não tão amalucadamente, creio que Dilma tenha começado a perder a presidência antes mesmo do primeiro mandato, mas quando já se sabia de sua candidatura, ali por 2009, pela retidão, pela impossibilidade de fazer conchavos, pela intransigência à corrupção. Isolada, torna-se sacrificável para que se “delimite onde está”, como disse o Senador Jucá, em gravação. Ao mesmo tempo, não dá para negar que o espelho em que não quisemos nos ver – televisionado desde o final de 2014, em sessões da Câmara, Senado, STF – é resultado de um abandono da cena política de estadistas preparados. Houve debandada de intelectuais, sindicalistas incorruptíveis, líderes populares etc. da arena democrática (sinal de esgotamento desse modelo?). Isso somado ao projeto de extermínio de lideranças à esquerda é que faz Eduardo Cunha ser considero um “gênio” político. Suas habilidades perversas são inquestionáveis, mas não seria o mesmo quadro com políticos da estatura de Brizola ou Ulysses Guimarães ainda em atividade. Se o que ou nos canais públicos é um inferno, o inferno somos nós, também em nosso recolhimento para outras áreas do debate público, como a universidade, os jornais etc.. Creio que seja imperativo retomarmos esses espaços de representação. Reclamar da qualidade de nossos políticos é antes reclamar de nossas escolhas. Para além disso, me parece, cabe continuar fazendo política noutros espaços sim. Dentro dos limites éticos da profissão de cada um, abrir sempre a porta aos oprimidos, fechar sempre a porta aos opressores. Não é mais tempo de isonomia. Não há como haver um governo golpisto como o de Temer – entendo que pmdbista não quer ser chamado de golpista pelo “a” final, seguindo decorativo da legítima presidenta – com uma base plenamente libertária, democrática. E não se enganem: Temer é só o boneco vaidoso de interesses maiores, como o da grande mídia brasileira, do capital nacional, do capital internacional, como procurei demonstrar. Ser radical e revolucionário cotidianamente, fechando a porta para os de cima, abrindo a porta para os de baixo, desvelando as injustiças e assimetrias, promovendo cultura e educação, ocupando as ruas, as plenárias e os plenários, praticando a boa e velha desobediência civil. Estou com Guilherme Boulos, o golpe está apenas começando, e a luta também. Vamos à luta! [1] Dentre várias boas leituras, sugiro duas recentes: “O golpe de Estado de 2016 no Brasil”, do cientista social Michael Löwy, e uma entrevista ao filósofo Anselm Jappe; ambas no blog da Boitempo. [2] Acompanho a análise de Roberto Schwarz em “Cultura e política 1964-69”. [3] Vale conferir o documentário Muito além do Cidadão Kane, de Simon Hartog. [4] Sugiro o documentário “Requiem for the American Drem”, pela excelente síntese de nossos tempos feita por Noam Chomsky. [5] Mas recomendo sempre as reflexões do psicanalista da USP, Christian Dunker, a respeito da composição do Brasil contemporâneo, especialmente em Mal-estar, sofrimento e sintoma. [6] Também recomendo as relações aventadas por Paulo Arantes entre o modelo de servidão nazista dos campos de concentração e certas práticas neoliberais em “Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história”. [7] Recomendo a leitura do artigo “Como vai acabar o capitalismo?”, do sociólogo Wolfgang Streeck, ou do livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, do historiador da arte Jonathan Crary. 25216j
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Não se istra um Estado como uma padaria 1uti
Róber Iturriet Avila – Doutor em economia, diretor Sindical do SEMAPI, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
No segundo turno das eleições de outubro de 2014, os cidadãos gaúchos tinham duas opções para os rumos istrativos do estado do Rio Grande do Sul. Com mais informações ou menos das implicações de tal decisão sobre o seu próprio futuro, a maioria fez a sua escolha livremente.
Já no primeiro dia, o governador José Ivo Sartori sinalizou que o mote de sua istração seria o corte de gastos e a redução dos serviços públicos. Por trás deste modelo istrativo, existe a concepção de que o Estado deve ter o menor número de funções possíveis, deixando para o setor privado a resolução de muitos dos problemas da sociedade. Essa visão não é nova e tampouco específica do governo gaúcho atual. Seus pilares filosóficos datam do século XVIII, embora esse paradigma tenha ganhado nova roupagem após a década de 1980, sendo convencionalmente referido como “neoliberalismo”.
Os resultados de tais políticas têm sido quantificados na literatura internacional e nos principais organismos multilaterais do mundo: ampliação expressiva das desigualdades, perda de direitos, descomo entre variação salarial e produtividade do trabalho, ampliação significativa da participação do 1% mais rico na renda, ao o que reduz a participação dos salários. Além disso, cabe destacar a sedimentação do desejo de um estado policialesco dos grupos de renda mais elevados das sociedades que não enxergam que parte da violência tem relação com a perda dos direitos e das funções públicas dos Estados.
O início da istração do governo Sartori foi nesta linha: redução de gastos públicos e das funções do Estado. Cortes de salários, intenção de fechar fundações e estímulo indireto para que os funcionários do estado se exonerem e se desloquem para o setor privado.
Muitos dos quadros da istração pública são compostos por pessoas de alto nível de qualificação. Cabe a pergunta: é racional que os melhores quadros da sociedade deixem de servir à coletividade?
Na área da segurança, houve o fim do pagamento das horas extras, fim do abono de R$ 1,5 mil que os policiais militares aposentáveis recebiam para continuar na ativa, além do congelamento das promoções e do cancelamento das nomeações de novos policiais. Desnecessário gastar argumentos sobre o desestímulo que o parcelamento de salários provoca.
O resultado disso foi que em 2015, 2.247 policiais civis e militares se aposentaram ou se exoneraram, 48% mais do que em 2014. No primeiro semestre de 2016, 1.287 policiais militares se aposentaram e estima-se que chegue a 3 mil até o final do ano. Não é preciso tratar o resultado dessa política sobre a violência no Rio Grande do Sul.
Ainda no pano de fundo ideológico dessa visão está a ideia de reduzir outras funções públicas e utilizar a “crise” nas áreas cruciais da istração para justificar a liquidação de setores tidos, a esta altura de calamidade, como “menos urgentes”.
Por trás desse prisma, há um desinteresse nos segmentos de renda mais elevada da sociedade em financiar os serviços públicos, até porque eles não precisam deles, os quais têm servido para redistribuir a renda desde a década de 1940 nos principais países do mundo.
O discurso raso que referenda essa visão de Estado é bem palatável a quem é leigo em economia e em política: “assim como na sua família, o Estado não pode gastar mais do que arrecada”. Essa é uma visão simplória, rasteira e quando não ingênua, tem má fé. istrar um estado não é o mesmo que istrar o orçamento doméstico, menos comparável ainda a istrar uma padaria.
Não apenas porque o gasto do governo faz parte do PIB e é a principal variável capaz de reverter um quadro de recessivo, o qual é caracterizado pela redução dos gastos de todos os demais agentes. Mas também porque muitas das funções do Estado dizem respeito a elementos fundamentais da vida minimamente pacífica em sociedade, como a segurança pública, mas também o reequilíbrio distributivo e o estímulo à vida produtiva e saudável dos cidadãos. Um dos argumentos simplórios bastante utilizados pelo discurso neoliberal é que caso o governo tenha déficit, a confiança do empresário reduz e a credibilidade do governo cai. Ora, o empresário decide com base em suas vendas e não a partir do déficit/superávit dos governos. Com demanda em queda, o investimento privado caminha no mesmo sentido. A redução da despesa pública apenas agrava o ciclo recessivo. Isso quer dizer: o parcelamento dos salários dos professores afeta o comércio de Porto Alegre.
Os próximos os do governo gaúcho são bastante previsíveis: será “necessário” extinguir órgãos públicos e vender o patrimônio para que haja recursos para investir em segurança e educação. Frente a um quadro de colapso nos serviços gaúchos, a sociedade facilmente referendará essa visão equivocada, rasteira, simplista e ardilosa. Está planejado, não sejamos ingênuos!
Os resultados futuros serão aqueles já observados por organismos internacionais e por intelectuais que têm maior profundidade na compreensão de questões tão complexas: elevação da desigualdade e estado policial para reprimir revoltas dos crescentes excluídos.
É triste ver que o estado do Rio Grande do Sul e agora também o Brasil caminham na direção de resolver problemas sérios e estruturais com discursos simplórios e repletos de má fé.
Legalidade e legitimidade 6n2k1g
Gilmar Zampieri – Filósofo e Professor
Pensa melhor quem melhor distingue. Quem generaliza e confunde, se engambela e gira em círculo sem direção. A distinção é a festa do pensamento. Onde o senso comum vê como igual, o pensador precisa socorrê-lo e ajudá-lo a ver melhor. Não é pecado pensar. Pecado é errar e fazer o mal por banalidade e por preguiça de pensamento. Viver não é preciso, distinguir é preciso..!
Penso aqui na confusão que incorremos constantemente ao identificar legal com legítimo, legal com justo, legal com ético. Os legalistas, positivistas e fundamentalistas talvez não aceitem, mas o que a lei diz, nem sempre é o que deve ser feito.
O que dá legitimidade a uma norma legal e positiva é a conexão que ela tem com uma norma moral. Só o que uma comunidade histórica real considerar moral, pode ser legítimo legalmente. A lei Maria da Penha, por exemplo, que protege a vítima da violência doméstica e pune o violento, a meu ver, é legal e legítima porque não há como não considerar que não seja boa para toda a sociedade. O trabalho livre, não escravizado, com correspondente pagamento na forma de salário e com todos os encargos sociais e todos os direitos conquistados pelo trabalhador, por exemplo, férias e décimo terceiro salário, são legais e são legítimos. Sem entrar no mérito se o valor do salário mínimo é justo, pois aí talvez a discussão seja exatamente o contrário. É bom que se diga, de agem, que o bom, o justo e o legítimo não são conceitos unívocos e sem ambigüidades e até imprecisões. Talvez, por isso, os legalistas prefiram a letra fria da lei acreditando que o justo é o que a lei determina e ponto.
Sabemos, contudo, que nem sempre o legal é justo e legítimo. O caso de Antígona é paradigmático. Antígona é o nome de um livro de Sófocles, o mesmo autor que escreveu Édipo Rei e Édipo em Colono. Antígona é uma personagem que dá nome ao livro. Ela é filha de Édipo com Jocasta. Édipo é filho de Laio e Jocasta. Édipo mata o pai (Laio) e casa com a mãe (Jocasta) e tem quatro filhos com a própria mãe. Uma das duas filhas é Antígona. Quando Édipo descobre que a tragédia acontecida em Atenas foi por sua causa, por ter matado o pai e casado com a mãe, ele vaza os próprios olhos e as filhas (Antígona e Ismênia) o levam para fora da cidade. A mãe e esposa de Édipo, Jocasta, se suicida ao saber que ela tinha sido esposa do próprio filho e com ele tinha tido quatro filhos.
Em Tebas permanecem os dois irmãos de Antígona (Etéocles<http://pt.wikipedia.org/wiki/Et%C3%A9ocles> e Polinice<http://pt.wikipedia.org/wiki/Polinice>). Depois da saída de Édipo quem assume o reino de Tebas é Creonte. Creonte envolto em guerras internas determina em um edito que todos os que lutarem contra seu reino e forem mortos, serão jogados à beira do caminho aos abutres, sem sepultura.
Os dois irmãos de Antígona eram de posições políticas diferentes. Um lutava ao lado do rei e outro contra. Numa batalha um mata o outro. Um recebe honrarias militares e funerais dignos. Outro é jogado ao ar livre na beira da estrada. Antígona não aceita o edito do rei e recolhe o corpo do irmão jogado na lixeira na beira do caminho e lhe dá sepultura com ritos fúnebres condizentes. O rei Creonte descobre o feito de Antígona e a chama para o palácio para lhe dar o castigo correspondente por ter transgredido o edito do rei. O castigo é a morte. O filho de Creonte que era apaixonado por Antígona tentou intervir e dissuadir o pai de executar a lei, mas foi em vão. Então se mata. A mulher de Creonte, vendo o filho morto, também se suicida. Tragédia total.
Na defesa que Antígona faz do ato de ter tirado o irmão da sarjeta e lhe dado sepultura ela diz que o que fizera foi por obediência a uma lei superior a lei dos homens, isto é, ela fez o que fez por causa da lei divina, da tradição, o que hoje chamamos voz da consciência ética. Por obediência a ética, desobedece a lei jurídica. Antígona não reconhece legitimidade na lei, no edito, do rei Creonte e em nome de outra lei, mostra a não legitimação da lei positiva. Nem sempre o legal é moral. Nem sempre o legal é legítimo.
O impeachment é legal, mas é ilegítimo, injusto e imoral. Se, pelos menos, reconhecessem que vazar os próprios olhos seria uma atitude digna, mas não. Hipócritas e sepulcros caiados julgam sem serem julgados. Hoje, temos um novo governo e um poder legal, mas ilegítimo e imoral. O que dá legitimidade a um governo democrático é o voto popular. Golpe nenhum pode ser legítimo. Pode ser legal, mas não é legítimo.
A sessão final do golpe com nome de impeachment no Senado – epílogo da Operação Café Filho 12x5i
Bruno Lima Rocha
No final da manhã e início da tarde de quarta feira, 31 de agosto de 2016, o Brasil assistiu pela televisão aberta e por , a destituição da presidente Dilma Rousseff, com pouco mais de um ano e meio decorridos de seu segundo mandato. A traição teve como um dos pivôs o próprio vice, Michel Temer, eleito e reeleito junto à Dilma, com a bênção de Lula e da direção nacional do PT. Neste breve texto, trago algumas evidências, categorias e debates os quais entendo como urgentemente necessários.
Impeachment Consumado
Por 61 votos a favor e 20 contrários no Senado, o governo de Dilma Rousseff em seu segundo mandato foi encerrado. Assim, está consumada a dupla traição. A primeira derruba um governo eleito; a segunda traição é o preço que a ex-esquerda paga por confiar em oligarcas. Os entreguistas viralatas comemoram.
No momento da defesa da preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) esteve milagrosamente certo na analogia. Os golpistas parlamentares de 1964 comemoram. Auro de Moura Andrade sorri no inferno. Ranieri Mazzilli o cumprimenta ao lado de Lincoln Gordon (embaixador dos EUA no Brasil) e Castello Branco (marechal escolhido por Washington para assumir o cargo de presidente no Brasil). E, como em 1964, o povo não foi convocado a resistir. Em 1964, porque o populismo sempre rói a corda. Em 2016, porque o lulismo sequer consegue ou quer ser populista.
Discursando a favor da cassação dos direitos políticos de Dilma, a senadora Ana Amélia (PP-RS) deu o tom da distopia liberal conservadora: legalidade institucional para sangrar os direitos coletivos; esvaziar o exercício do Poder Executivo para que a maioria, apelando sempre para os intermediários profissionais. No “salve-se quem puder”, os grupos de interesses “prudentemente” devem ir tentando alguma vantagem mínima através dos arranjos institucionais dos Estados pós-coloniais.
No último ato, em uma manobra com o aval de Renan Calheiros, Dilma fica habilitada e preserva seus direitos políticos
Estamos diante de uma novidade. A cassação de direitos não obteve maioria absoluta, tendo 42 votos favoráveis, 36 contrários e três abstenções. Logo, não obteve a maioria absoluta de dois terços no Senado, sendo preservadas as possibilidades de exercício de funções públicas para a presidente deposta, mas não cassada. Logo, está instaurado um período de absoluta instabilidade política no jogo eleitoral-burguês brasileiro. Dilma Rousseff pode ser eleita para cargos públicos – há questão de compreensão e interpretação jurídica – e pode estar no páreo das disputas eleitorais abertas, além de poder operar como puxadora de votos em 2018. O lulismo perde, mas não perde tudo.
Com esta manobra, Michel Temer acaba de perder o governo de fato, ao menos em sua totalidade. Renan Calheiros tira do interino golpista a condição de governar, deixando o vice-presidente usurpador entregue ao PSDB. Esta condição de “governabilidade” dura até o ponto em que os tucanos devorarem suas plumas visando à eleição de 2018.
Não foi por falta de aviso: o epílogo da Operação Café Filho e a melancolia de centro-esquerda
A presidente deposta Dilma Rousseff foi “traída” por um oligarca, Michel Temer com origens no grupo político de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo e golpista em 1964. Considerando sua trajetória no nacionalismo varguista, Dilma deveria saber onde estava se metendo. Consumada a farsa da farsa, a vitória da Operação Café Filho.
Dilma Rousseff se despede de vermelho; momento melancólico onde a ex-esquerda é destituída do Poder Executivo sem sequer arriscar uma plataforma de governo com o povo no protagonismo.
A aliança de golpistas pela via parlamentar com suspeitos da Operação Lava Jato veio através do rito e manto da “legalidade”, pela farsa jurídica e impeachment sem mérito. O pior da tradição do país dos bacharéis termina com as ilusões “legalistas” da centro-esquerda, ou da ex-esquerda.
Uma parte da análise da presidente destituída está correta: existe uma dimensão substantiva do Golpe, na agenda regressiva de direitos e um avanço repressivo sob um véu de “legalidade”.
Nada veio por acaso, incluindo a baixa capacidade de resposta. Os lulistas e afins rasgaram o manual da política e pactuaram com quem não presta sem fiar o pactuado com os oligarcas através de uma espada afiada pronta para ser desembainhada.
Enfim, se levaram um ditador positivista (Getúlio Vargas) ao suicídio em 1954, porque não destituiriam uma keynesiana de centro (Dilma Rousseff) para um cadafalso semelhante em 2016?! Apenas a criminosa ilusão e inocência política poderiam fazer crer o contrário.
Aplicando uma categorização do momento vivido
Categorizando: trata-se de uma disputa intra-elites, quando uma elite dirigente está sendo destituída do poder burguês – embora juridicamente legítimo – por um novo arranjo de posicionamento das elites políticas majoritárias e suas respectivas representações de classe dominante. O povo está desorganizado desde 2013, quando a rebelião popular não resultou em um projeto de maioria apontando saídas para além do jogo das urnas burguesas.
O governo que está sendo derrubado não é de esquerda, sequer é de centro-esquerda ou populista e tem no máximo, traços de nacionalismo autônomo. Com sua destituição, o modelo liberal-periférico vai se aprofundar após a posse definitiva dos interinos golpistas, reposicionando o Brasil no Sistema Internacional, aumentando o grau de subserviência e encurtando as margens de manobra.
No cenário doméstico, a meta estratégica de quem está golpeando e virando a mesa – por aplicar um impeachment sem mérito evidente – é destravar a liberdade absoluta de capital, transnacional de preferência, associado, nacional, diminuindo tanto o papel do aparelho de Estado na organização do capitalismo interno como também nas perdas de regulação e proteção sociais, trabalhistas e nos direitos de 4a geração.
Concluindo, consumado o golpe semi-parlamentarista, está aberto o caminho para uma ampla revisão constitucional no sentido à direita, aplicando uma agenda regressiva, de perda de condições de vida, retomando a restauração (neo)liberal da década de ’90 no século – a que foi ainda mais perdida do que a de ’80.
O debate estratégico que cabe fazer. Qual ‘lugar a ser construído’ as esquerdas vão escolher? Qual o ‘mal menor’ a centro-esquerda escolhe?
Diante desta melancólica derrota política e com a traição da traição, entendo que é necessário entrar em temas de fundo, em debates de tipo estratégico. De forma direta, cabe perguntar. Qual utopia a centro esquerda latino-americana escolhe ou escolherá a partir de agora? Vai seguir na aposta infundada no “aprimoramento das instituições” e esperar a cada 20 ou 25 anos um novo ciclo de virada de mesa por dentro do poder burguês compartilhado e sob a influência direta e indireta do Império?
Ou vai tentar ajudar criar um poder do povo organizado que, mesmo que convivendo em democracia indireta e representativa, vai estar de guarda alta e permanente para não deixar a mesa virar de forma tão simples retirando direitos conquistados?
Vale entender um pouco de estratégia para fundamentar a teoria e as escolhas políticas: “O objetivo finalista subordina o método segundo suas condicionalidades”, correto? Esse conceito operacional é de Golbery do Couto e Silva. Seria bom aprender como a direita se move para poder contrapor estes movimentos. No novo ciclo de golpes – agora brancos – na América Latina, temos Venezuela, Honduras, Paraguai, tentativas na Bolívia e Equador e Brasil. E como fica a resistência aos golpes?
Até quando os partidos eleitorais vão operar estritamente contando com o aprimoramento das instituições pós-coloniais ao invés de criar e ampliar instituições sociais decoloniais e populares?
Os marajás do Judiciário, protagonistas do impeachment 683360
André Barrocal – Jornalista
Senhor e Escravo/ Casa Grande e Senzala 194a4b
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
A crise política brasileira e o golpe na Presidente Dilma Rousseff podem ser lidos a partir de muitos vieses teóricos advindos da Filosofia, da Sociologia, da Economia, das Ciências Políticas e de outras áreas do saber. Podem ser lidos a partir de textos referenciais que a história do pensamento nos legou. O objeto do presente artigo é uma aproximação entre o texto da Dialética do Senhor e do Escravo, exposto por Hegel (1770-1831) no começo da Fenomenologia do Espírito, e a crise política vivida pelo Brasil na atualidade. Pensamos que este seja um viés teórico adequado para analisar criticamente o que está acontecendo no Brasil, principalmente no sentido de explicitar a lógica interna do processo e a articulação dos seus componentes.
A Fenomenologia do Espírito, uma obra que Hegel publicou no ano de 1807, expõe uma série de figuras que costuram o caminho pedagógico e racional entre a certeza sensível e conhecimento filosófico, entre a sensibilidade e o processo histórico. Uma das figuras de destaque muito conhecida e de decidida influência histórica nas lutas sociais e na formação da consciência histórica é a Dialética do Senhor e do Escravo. É uma figura que pode ser aplicada à composição teórica do círculo relacional entre o senhor capitalista e o empregado trabalhador, entre professor e aluno, entre mestre e discípulo, entre necessidade e liberdade, entre capital e trabalho, entre dominador e dominado, entre Casa Grande e Senzala etc.
Senhor e escravo são duas figuras verticalmente relacionadas numa situação de dominação do escravo pelo senhor. Nesta exposição, o senhor figura como o sujeito absolutamente livre, imediatamente relacionado consigo mesmo, autoconsciente de sua independência absoluta e alguém que usufrui de uma vida material de altíssimo nível. É sujeito de uma conta bancária gorda, dono de um apartamento luxuoso, carrão do ano na garagem e proprietário de uma grande fazenda. A sua independência e a sua capacidade de gerenciamento material lhe proporcionaram esta fortuna que adquiriu por merecimento próprio. Em razão disto, o senhor ostenta a consciência de liberdade e autonomia e despreza a sua negação absoluta, o escravo radicalmente incompatível com a sua condição.
O outro termo da relação é o escravo. Não possui nenhuma intuição de sua liberdade, rejeita a sua própria subjetividade e trabalha para o seu senhor. O trabalho dele lhe esgota fisicamente e somente recebe como recompensa de seu trabalho o suficiente para permanecer vivo, manter a sua força física de trabalho e continuar com a atividade de produzir para o seu senhor. Não se trata apenas de um duro trabalho executado no limite das suas forças físicas, mas esvazia a sua autoconsciência, a sua liberdade interior e interioriza a consciência do seu senhor como modelo que jamais conseguirá alcançar. No exercício do trabalho, o escravo não exerce a sua própria atividade, como se ela fosse uma materialização da subjetividade, mas exerce a atividade do senhor.
Entre o senhor e o escravo não se estabelece uma relação direta, pois entre eles está interposta a natureza. Ela aparece em dois momentos diferenciados. O primeiro, na condição positiva, é a natureza imediata tal como ela se estruturou como universo material; e o segundo, na condição negativa, enquanto transformada pelo trabalho humano e destinada ao consumo. Neste processo, o escravo se relaciona diretamente com a natureza positiva, pois com ela se confronta no ato do trabalho e de transformação. O escravo se depara com a dureza do objeto natural que necessita de muita força para ser superado. O senhor, em contrapartida, não se relaciona com a natureza imediata, mas apenas com a negativa porque a consome. O escravo não se relaciona com a natureza negativa porque ele não a consome, e quando ela está trabalhada escapa por completo de suas mãos.
Na Dialética do Senhor e do Escravo, o escravo reconhece e o senhor é o reconhecido. O senhor atribui a si mesmo a liberdade e a autonomia absolutas, enquanto nega o escravo e o rebaixa à condição de coisa. O escravo se nega a si mesmo através do esgotamento de suas forças físicas e o esvaziamento de sua liberdade ao confirmar a absoluticidade do senhor. Porém, nesta relação assimétrica, o escravo trabalha e o senhor apenas consome. O alto grau de vida material do senhor se deve ao trabalho do escravo, e não aos méritos do senhor.
Conforme afirmamos, entre o senhor e o escravo está a natureza, assinalada com os sinais do positivo e do negativo. Há um espaço não diretamente dominado pelo senhor, o ato sistêmico de enfrentamento da dureza da natureza pelo trabalho do escravo. Na sua dura atividade, o escravo a por um processo de aprendizagem no qual se dá conta de que a liberdade e o alto nível de vida material do senhor somente são possíveis mediante o seu reconhecimento e o seu trabalho. Nesta pedagogia da aprendizagem através do trabalho e da intuição da liberdade pessoal, o escravo a da heteronomia para a autonomia, da dependência para a liberdade. Ao conquistar a liberdade, o escravo desmistifica e dissolve a pretensa absoluticidade do senhor que recai na condição de escravo e é rebaixado à animalidade.
Para Hegel, o exercício do trabalho e a transformação da natureza constituem os fundamentais para a humanização. Como o senhor não trabalha, apenas recebe pronto e consome o resultado do trabalho de outrem, ele vira animal e não dispõe da mediação fundamental de humanização. O que absolutamente desprezou e jamais quis para si mesmo, agora a a ser a sua própria caracterização essencial. Neste nível, invertem-se as funções quando o senhor se torna escravo e o escravo se torna livre. Mas não é uma inversão simples na qual um assume a condição do outro e a relação social permanece exatamente a mesma, mas o senhor é desmistificado na sua posição de dominador absoluto e o escravo segue o seu caminho de humanização e libertação. É preciso destacar que o senhor aposta na incondicionalidade de seu domínio diante da qual o escravo não teria condições de esboçar qualquer caminho de liberdade e de consciência.
Parece-nos claro que o texto hegeliano aqui reconstruído em seus componentes fundamentais é um referencial para a leitura do cenário político atual. Na exposição dialética que aqui empreendemos, na História do Brasil identificamos a figura do Senhor com a Casa Grande e o Escravo com a Senzala. Na verdade, a Dialética do Senhor e do Escravo representa situações de relações historicamente situadas. Sob este viés, a História do Brasil é fortemente marcada pela presença de uma elite patriarcal, machista, patrimonialista, imperialista centrada no domínio e na acumulação capitalista. Por outro lado, temos uma massa de escravos impossibilitados de liberdade e excluídos das decisões, na condição de sujeitos sociais. Os escravos, atualmente os trabalhadores e o povo em geral, a massa de empobrecidos pelo sistema capitalista, sempre foram excluídos do processo político, das decisões e dos bens produzidos pela sociedade, e ainda rotulados de bagabundos, preguiçosos e objetos de assistencialismos por parte do Estado.
Ao longo da História do Brasil uma grande massa ficou excluída da fruição dos resultados econômicos e não participou dos rumos do país. A Economia, a Política, a Religião e o Direito estiveram voltados para a sustentação e a eternização de uma pequena elite patriarcal naturalmente considerada como dona do poder e das riquezas do país. O fenômeno que atravessa a História pode ser caracterizado a partir da oligarquia imperial que jamais abriu mão do domínio absoluto, invisivelmente sustentado por uma massa de escravos, trabalhadores e pela exclusão social. É toda uma base social que sustentou no topo da pirâmide uma elite dominadora, raivosa, autoritária, intolerante, ultraconservadora, branca e machista.
Dentro do grande contexto histórico de meio milênio houve um fenômeno no qual a grande maioria excluída e empobrecida se transformou em viés de políticas governamentais para tirá-las da miséria e incluí-las socialmente. Durante os governos de Lula e Dilma, talvez num fenômeno jamais visto na História da Humanidade, milhões de miseráveis foram resgatados e entraram na classe média. Diante desta constatação visível durante vários anos, a elite patriarcal não se conformou com os avanços e ficou furiosa e enraivecida diante dos desdobramentos deste fenômeno. Ela ficou incomodada como o aparecimento social de classes historicamente recalcadas à exclusão social porque começaram a ocupar os espaços exclusivamente deles, de sua propriedade. Ficaram brabos com a presença de negros e pobres nas Universidades, com os mais humildes que viajam de avião, com a necessidade de compartilhamento dos mesmos espaços como ruas, supermercados, bancos, praças públicas etc. A tradicional elite dominante, com diversas roupagens ao longo da História, raivosamente se posicionou diante de alguns acontecimentos estruturais que jamais se incluem em seus projetos e agendas temáticas. Com certeza, o golpe na Presidente Dilma Rousseff se deve muito mais em função dos avanços, das conquistas sociais e da nova posição do Brasil no cenário global das relações internacionais do que propriamente os erros.
O objeto do artigo é avaliar, dentro do contexto da crise e da atual configuração social brasileira, a relação entre a Casa Grande e a Senzala, entre a atual elite dominante e o povo da base à luz da Dialética do Senhor e do Escravo hegeliana, uma das fontes de inspiração de tantos movimentos sociais e de transformação social dos últimos dois séculos. Talvez, o problema maior dos governos petistas foi subir a rampa do Palácio do Planalto e afastar-se da grande base social e popular do país, cuja mobilização constitui a razão histórica de sua existência. Em palavras simples, substituiu-se a ligação política do Partido dos Trabalhadores com o povo pela governabilidade e pelo PMDB.
A ascensão social de milhões de seres humanos e o mergulho do Brasil na crise econômica e política revela um fenômeno diferente da estrutura lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, mas facilmente explicável a partir dela. O texto hegeliano aqui referido expõe a oposição radical entre duas figuras, a do Senhor e a do Escravo, em cuja lógica uma representa o inverso de si mesma, uma é a outra em si mesma e uma é ela mesma na outra. O fenômeno da ascensão social produziu um fenômeno contraditório cujo processo não foi acompanhado pela formação da consciência e desenvolvimento da inteligência. Com o ao consumo e ao conjunto de bens básicos, ao invés de formar uma visão crítica e uma consciência esclarecida, constituiu-se uma espécie de mentalidade burguesa afinada à lógica capitalista do consumo.
O notável fato do escravo de ter produzido a sua liberdade e quebrado a sua dependência em relação ao senhor, esta lógica não aconteceu desta forma na política brasileira. A ascensão social, as políticas públicas e a significativa participação dos mais pobres no processo de desenvolvimento econômico não produziu uma força política capaz de quebrar com a lógica da dominação imperial e com a classe dominante, mas a fortaleceu. Não aconteceu um processo de libertação social e um mergulho para dentro da consciência popular enquanto potencialidade transformadora, mas uma espécie de mentalidade burguesa generalizada que anestesiou a população diante dos ataques da mídia golpista, do judiciário, da classe dominante e do próprio congresso nacional. Não foi produzida uma força popular crítica capaz de superar o domínio imperial, mas emergiu uma grande massa popular alinhada aos interesses políticos da burguesia e com mentalidade capitalista, o que inviabiliza qualquer proposta de transformação social e histórica mais profunda. Pelo viés do senhor e do escravo, a Grande Senzala não foi politizada e conscientizada, mas massificada e aliada ao poder dominante. Ela, ao invés de politizar-se e fortalecer-se como um bloco histórico crítico e revolucionário, transformou-se numa massa indiferenciada que interiorizou a mentalidade da oligarquia colonial e engolida por esta.
A casa grande está viva e ativa. Reapareceu com toda a sua fúria dominadora, com a pose machista patriarcal, com uma organização absoluta e perfeita, com tudo incorporado à sua lógica. Todas as formas históricas de machismo, patriarcalismo, patrimonialismo, colonialismo e imperialismo estão integradas e plenamente atualizadas. As conversas entre as pessoas, a opinião pública de base, a lógica dos meios de comunicação, as forças políticas do congresso nacional, o grande capital, os alvos do judiciário e a criminalização dos movimentos sociais, o governo golpista, o criacionismo nas escolas, a escola sem partido, tudo concorre para o fortalecimento da casa grande. Estes componentes constituem gigantescos tentáculos do mesmo e único pandemônio que dissolveu a força transformadora do povo e tem como alvo direto devorar Lula e o PT. Quase não nos sobra nada além deste monstro que dos domina por todos os lados. Contra o monstro que se instalou, novos movimentos deverão ser construídos.
Uma crítica possível de ser formulada a partir da lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, no conhecido paradigma social da Fenomenologia do Espírito, é o desaparecimento da força de contradição e de articulação destas instâncias no cenário social e político brasileiros. Inclusive muitas das manifestações pró-golpe amplamente articuladas pelos meios de comunicação social foram favorecidas pela ascensão social e conquistaram significativa qualidade de vida com os governos de Lula e de Dilma. Tornaram-se inimigos dos governos que lhes proporcionaram uma situação econômica privilegiada, com ruptura política de base e com alinhamento à grande burguesia dominante. Ao invés da oportunidade histórica de superação da grande oligarquia patriarcal presente ao longo de toda a História do Brasil, os meios de comunicação conseguiram manipular de tal maneira a população que boa parte da população vincula a corrupção ao PT.
É visível que o momento atual é de reviravolta conservadora em âmbito mundial e nacional. Parece que andamos na contramão das potencialidades revolucionárias e transformadoras inscritas na Dialética do Senhor e do Escravo tecnicamente formulada por Hegel há um pouco mais de dois séculos atrás. Parece que as forças transformadoras recolheram e cederam amplo espaço para todas as formas possíveis de conservadorismo econômico, político, religioso e ideológico. Estamos num conservadorismo tal que falar do Senhor e do Escravo, e de todas as produções inspiradas nela, poderá ser ível de condenação e prisão. Mas a farsa do golpe aplicado contra a Presidente Dilma Rousseff não terá vida longa e duradoura. O golpe não esmagará definitivamente a Democracia, as forças de resistência e os movimentos populares. Em breve hão de eclodir novas forças de resistência capazes de contrapor à oligarquia patriarcal dominante. Com a destituição da Presidente Dilma Rousseff, as esquerdas deverão se rearticular, produzir novas forças políticas e novos caminhos de transformação.
O dia da vergonha nacional z6q5o
Benedito Tadeu César – Cientista Político e professor universitário
Erramos todos. Tenho repetido esta frase em cada encontro de cientistas políticos nos quais tenho participado desde o início do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e em cada fala que tenho feito nas diversas manifestações públicas contra o golpe de que tenho participado nos últimos meses.
Erramos todos, porque acreditamos que as instituições públicas brasileiras estavam se consolidando no rumo da concretização da democracia no país. A farsa que se desenrolou durante cinco meses diante dos nossos olhos, desde abril deste ano, e que teve seu epílogo no último dia de agosto, foi urdida, construída, mantida e perpetrada no interior das instituições públicas brasileiras e foi desfechada por muitos dos que têm a obrigação legal de preservar a democracia.
Foi a ação conjunta do vice-presidente da República, da maioria esmagadora do Congresso Nacional, de amplos setores do Ministério Público, capitaneados pelo Procurador Geral da República, de muitos integrantes do Poder Judiciário e de uma maioria expressiva do Supremo Tribunal de Justiça (STF), todos defensores jurados da Constituição Federal de 1988, que tornou possível que a farsa da deposição “legal” de uma presidenta da República, eleita por mais de 54 milhões de votos, fosse encenada.
São as instituições públicas brasileiras que estão podres e corrompidas ou, pelo menos, boa parte dos seus integrantes, a começar por aqueles que detêm maior responsabilidade em cada uma delas. Contaram para corrompê-las com os inestimáveis serviços da grande mídia corporativa, controlada por apenas cinco famílias milionárias. Não fosse assim, a democracia teria sido preservada e a vontade expressa pelo voto de milhões não seria afrontada pela ação de uma minoria quatro vezes derrotada eleitoralmente – em 2002, em 2006, em 2010 e em 2014.
Vivemos em um país presidencialista onde, diferentemente dos países parlamentaristas, só o voto popular tem o poder constitucional de eleger e de destituir um presidente da República, por meio de sua não reeleição. Fora disto, só a caracterização expressa e irrefutável do cometimento de um “crime de responsabilidade no exercício da Presidência da República” pode justificar o afastamento do governante.
Destituir uma presidenta da República “pelo conjunto da obra”, como o fizeram os deputados federais e senadores brasileiros, afronta a Constituição vigente no país. A perda da maioria no Parlamento só justifica a retirada e/ou a troca do chefe do Executivo nos regimes parlamentaristas, nos quais os dirigentes são eleitos indiretamente, por indicação do poder Legislativo.
Não basta o cumprimento do ritual jurídico, para justificar e dar roupagem legal e constitucional ao processo fraudulento da destituição de Dilma Rousseff. O mundo todo sabe disto e sua denúncia tem sido expressa por jornalistas independentes e por editoriais dos maiores e mais respeitados veículos de comunicação internacionais. Um julgamento não é lícito apenas pelo cumprimento das regras formais de seu funcionamento. Um julgamento só é lícito quando os argumentos da defesa e da ré são levados em consideração.
Quando os julgadores declaram, antes de ouvir a ré e seus defensores e antes mesmo de conhecer o processo, que condenarão a acusada, esses julgadores devem ser impugnados e o julgamento anulado. Este é o procedimento adotado em qualquer tribunal de justiça honesto, como se espera existir em qualquer país democrático.
Não foi o que se viu no Brasil. Aqui, o presidente do STF, com sua presença e atuação na condução do processo de impeachment, coonestou o golpe e a afronta à democracia, no mínimo, quando itiu que julgadores que haviam declarado seus votos condenatórios antes de encerrado o processo particiem do processo e condenassem a ré, tal como haviam antecipado que o fariam.
Mais uma vez, as elites políticas e econômicas brasileiras, que controlam as instituições públicas do país, interrompem, por meio de atos ilegais – como o fizeram em 1954, quando Getúlio Vargas foi levado ao suicídio, e em 1964, quando se uniram aos militares para instalar a ditadura que se arrastou até 1985 – o frágil processo de democratização e de construção de instituições e de procedimentos democráticos e de inclusão social neste país.
Encerrou-se hoje, com a conivência ativa de parcelas expressivas de integrantes das instituições públicas brasileiras, o mais longo período democrático durante a história republicana deste país. Encerram-se hoje 31 anos de democracia, construída a duras penas, no Brasil.
Hoje, somos alvo da chacota internacional.
No futuro, a história registrará o dia 31 de agosto de 2016 como o Dia da Vergonha Nacional.
2016 ou O golpe de mil faces – alguns ângulos de abordagem e princípios teóricos 4r6z3h
Walter Morales Aragão – Prof. universitário, doutor em planejamento urbano e regional
“Um alaúde, uma telenovela, um trem.
Uma arara. É ao mesmo tempo bela e
banguela a Guanabara.”
VELOSO, Caetano. In: O estrangeiro.
1. Abordagem a partir de uma teoria das elites. Variantes no saber proletário: “brasa pouca, minha sardinha primeiro”; “a corda rebenta no lado mais fraco”; “quem pode mais, chora menos”.
Brasil, século XXI. Um dos chamados “países-baleia”, os de grande população, território e recursos. Quinta maior população e quinto maior território do mundo. Uma das dez maiores economias. Detentor da maior extensão de área agricultável do planeta.
Cenário: 1ª agudização recente da crise capitalista iniciada nos anos 60 do século XX – no ano de 2007, quando dois milhões de estadunidenses perdem suas casas no estouro da bolha especulativa com hipotecas e, em poucas semanas, os bancos centrais europeus e dos EUA se obrigam a injetar cerca de quatro trilhões de dólares de dinheiro público para resgatar o mercado falido. Corrida a ativos seguros: terras agrícolas e estoques alimentares disparam, exportações de grãos são proibidas em diversos países – é a Guerra da Comida, de 2008, estopim das revoltas iniciais da Primavera Árabe. Agitações populares contra a carestia no Paquistão, Vietnã, Egito, Haiti, Argélia e Madagascar. Nesta ilha a Hiunday adquire dois milhões de hectares para produção de biocombustíveis. Bancos alemães e companhias chinesas compram logo 80 milhões de hectares, obrigando Uruguai, Bolívia, Paraguai e países africanos a legislar sobre aquisições por estrangeiros.
O governo brasileiro, nucleado no PT, protege o país e a população da fúria externa. Ativa um pacote de medidas anti-ciclícas, usando reservas e órgãos estatais – se fossem privados seriam inúteis, em princípio, para tal finalidade. A AGU e o Incra reforçam o controle sobre aquisição de terras por estrangeiros. A Petrobrás segura os preços do gás de cozinha e dos combustíveis por quase quatro anos. São mantidos os programas de renda mínima, mantendo a demanda interna aquecida. Os agricultores familiares e assentamentos ganham estímulo para a produção de alimentos ao mercado interno. Os efeitos deste pico da crise são atenuados.
Cenário: 2ª agudização recente da crise capitalista – A guerra econômica a partir de 2011. Bombardeios ilegais da OTAN na Líbia, que possuía o melhor padrão de vida da África, com a expulsão de firmas chinesas e brasileiras. Os EUA intervém na economia mundial, rebaixando artificialmente o preço do petróleo. Ampliam a produção interna, flexibilizando a legislação ambiental. Exigem super-produções de suas aliadas monarquias absolutistas do Golfo – Arábia Saudita, Emirados A. Unidos, Kuwait – para prejudicar o Irã, a Venezuela e a Rússia. Promovem grandes manobras militares na Europa e no Mar do Sul da China, até às vésperas da Olimpíada do Rio, com vistas a obrigar Rússia e China a aumentar os gastos com defesa. Golpe “colorido” na Ucrânia – inclusive o Brasil perdeu aí uma parceria em foguete de satélite com a Ucrânia, num prejuízo de meio bilhão de reais. Diversas sanções econômicas sob variados pretextos: cartões Visa e Master foram proibidos aos russos depois do plebiscito e da reintegração da Criméia.
Manobra radical no Brasil atual: Pesquisa Datafolha do início de 2016 dispara o alarme das elites dominantes: Lula continua favorito a 2018, mesmo sob todo o massacre midiático-jurídico seletivo. EUA espionam Dilma, Petrobras e outras instâncias no Brasil. Ream informações a interlocutores seus de diversos órgãos no Brasil, numa grande entrega de provas ilícitas. Já no governo Clinton a CIA espionara concorrentes europeus e brasileiros em licitações de radares: o capitalismo monopolista global odeia concorrência – isto fica para discursos e botecos periféricos. A grande burguesia e o rentismo decidem rasgar a CF 1988 em seus princípios de soberania popular através do cidadão-eleitor. Apegam-se, descabidamente, a itens secundários formalmente previstos. Seria como decidir pela invasão agora da Venezuela ou do Uruguai, alegando que a declaração de guerra pelo Senado está prevista na CF.
Do ângulo das elites dominantes o golpe de 2016 é um gesto heróico de salvação do capitalismo nativo, recolocando em seu “devido lugar” os trabalhadores assalariados e suas parcelas da população aliadas – indígenas, populações tradicionais, agricultores familiares – os quais, irracionalmente ao ver dos dominantes, encontravam-se praticando uma cidadania inaceitável. Analogia clássica: o mito grego do “Leito de Procusto” – assaltante que ajustava suas vítimas a uma cama de ferro, cortando-as ou espichando-as. Adequadamente parte do ciclo do herói Teseu, mais preocupado com o labirinto da queda dos lucros do que com o Minotauro popular.
2. Ângulo soviético: se o impedimento da presidente eleita confirmar-se, de um ângulo etapista histórico o Brasil terá um o positivo – as massas ficarão mais críticas à validade da democracia burguesa. O golpe dirá mais sobre a ditadura de classe instalada na economia e no Estado brasileiro do que qualquer curso de formação política. Talvez haja festa na Coreia do Norte: “Não dissemos a vocês que eleições sob o capitalismo são um teatro ruim, que rasgam a bel-prazer? Ditadura de classe por ditadura de classe, busquem uma comprometida com a maioria da sociedade. Será uma democracia mais realista do que esta aí.”
3. Tempos nebulosos: Karl Marx, no artigo ” O 18 brumário de Luís Bonaparte”, estuda o golpe de Estado na França do século XIX, quando o presidente (não o vice, como aqui e agora) rasgou a constituição republicana e proclamou-se imperador. No texto, satiriza o pânico do pequeno burguês típico ante as mobilizações sociais e as manobras parlamentares aparentemente incompreensíveis. Ansiedade que terminaria clamando, num apelo sintético e patético, pelo descarte da frágil democracia liberal em troca de sossego (para os negócios): “Mais vale um fim com terror, do que este terror sem fim!”.
Veremos que novas estações produzirá este nosso 2016 brumário.
Confira a íntegra do discurso de Dilma em julgamento do impeachment no Senado 3m3z3n
Da Agência Brasil
A presidenta afastada Dilma Rousseff discursou na manhã desta segunda-feira (29) por cerca de 45 minutos no plenário do Senado, durante a última fase do julgamento do processo de impeachment. Em sua fala, Dilma , ressaltou que foi ao Senado “olhar diretamente nos olhos dos que a julgarão e negou ter cometido crimes dos quais é acusada, segundo ela, “injusta e arbitrariamente”. “Hoje, o Brasil, o mundo e a história nos observam. E aguardam o desfecho desse processo de impeachment”, disse.
Ouça a íntegra do discurso
Confira a íntegra do discurso de Dilma do Senado:
Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros,
Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores,
Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1o de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no ado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No ado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu ado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade.
Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No ado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado.
O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio.
O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964.
Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”.
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham o às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
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Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de o ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.
Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um o da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um o da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano — foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que aram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos ivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”.
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não a de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil.
Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente.
Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada.
Edição: Amanda Cieglinski
Um balanço crítico e político das Olimpíadas do Rio 4x3tv
Bruno Lima Rocha – Professor de ciência política e de relações internacionais
Terminados os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, entendo que é chegado o momento de realizar uma série de balanços e posicionamentos após o grande evento. Para este texto, aporto duas considerações, uma de ordem territorial, observando o ordenamento da mancha urbana, suburbana e favelizada do Rio de Janeiro e o quanto a realização de eventos similares não modificou a situação de violência policial, abandono de populações inteiras e a prática de racismo institucionalizado, disfarçado de “caos urbano”. Na sequência, faço um debate a respeito do modelo de desenvolvimento do esporte brasileiro visando o desempenho nos Jogos do Rio. A ausência de uma institucionalização do esporte de base sempre foi a mais visível de nossas características, e como tal, infelizmente, continua sendo.
Os Jogos Olímpicos da distopia midiática e o “caos urbano” no Rio
Vivemos as Olimpíadas no auge de um anticlímax político, econômico e social. É como que ao fim de uma realidade fabricada, despertássemos todos diante do anunciado pesadelo da quebra do pacto de classes. Mais do mesmo, os conglomerados econômico-midiáticos que venderam a ilusão, agora vendem a resiliência, ao invés da realidade. Lembremos.
Quando no longínquo ano de 2007, o Rio de Janeiro sediou os Jogos Panamericanos, o país vivia um ambiente político diferente. O estado fluminense era governado pelo ex-tucano Sérgio Cabral Filho, homem vinculado a grupos empresariais arrivistas no período lulista, como a Delta Engenharia e o Grupo X, de Eike Batista. Como base da aliança de governo de Cabral Filho, a presença do PT local e a pavimentação da aliança com a legenda de Michel Temer. As realizações do Rio vieram acompanhadas do lado mais bárbaro e sinistro do Estado pós-colonial brasileiro. Nos meses anteriores ao Pan, que quebrara recordes de superfaturamento nas obras e contratos emergenciais, o número de mortos pela ação violenta da Polícia Militar ultraara os do Iraque em plena guerra civil. Uma parte razoável destes dados macabros à época podem ser conferidos no domínio Rio Body Count 2 (http://riobodycount2.blogspot.com.br/).
Em outubro de 2009, se verificarmos as imagens registradas na 121ª sessão do Comitê Olímpico Internacional, veremos discursos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a presença do prefeito Eduardo Paes (o mesmo, já no PMDB), do governador Sérgio Cabral Filho, à época presidente do Banco Central e hoje ministro da Fazenda do governo interino-golpista Henrique Meirelles, e do então ministro do Esporte, Orlando Silva, hoje deputado federal pelo PC do B de São Paulo. Esta representação da aliança entre a centro-esquerda, oligarcas e financistas marcou o segundo mandato de Lula e a eleição da sucessora do ex-sindicalista, em outubro de 2010.
Logo após a primeira eleição de Dilma e Temer, o país assistiu a um espetáculo midiático chamado “A Guerra do Rio”, com as câmaras de TV projetando a ocupação do Complexo do Alemão, iniciando com a fuga de traficantes da Vila Cruzeiro, transmitida ao vivo pelas redes de TV líderes (neste link é possível compreender o momento: http://www.youtube.com/watch?v=PDPMPesOaQg). O impacto de ver centenas de homens armados de forma ilegal, em plena luz do dia, dá uma impressão de excepcionalidade. Longe disso, pois se trata simplesmente do cotidiano vivido por mais de três milhões de pessoas apenas da Região Metropolitana do Rio. A “exceção” não é o fato, e sim a transmissão.
Com o acionar coordenado de mídia, tecnocratas do mundo jurídico-policial e agências de marketing digital a serviço dos ultra liberais, a frágil aliança de classes entre ex-reformistas, oligarcas, industriais e financistas foi rompida. Junto desta, podem estar indo para o ralo, tanto a diminuta soberania popular, assim como a maioria de nossos direitos trabalhistas e sociais. Eis as Olimpíadas da distopia.
Apesar do bom desempenho, ainda não temos um modelo de desenvolvimento esportivo
Antes de escrever estas linhas e durante a exibição das Olimpíadas, as quais acompanhei com intensidade, revisei meus escritos a respeito do mesmo tema. A ausência do Estado na promoção do esporte escolar como base para o desenvolvimento olímpico nacional. Ou seja, buscando incessantemente as estruturas de Estado como garantidoras do direito ao esporte como parte fundamental da cidadania, especialmente como parte do direito à infância e a adolescência. Se formos levar em conta este absurdo e os poucos centros de excelência para o desenvolvimento esportivo brasileiro, veremos que os “resultados” em termos de competição, resultam em verdadeiro “milagre” nacional.
O Brasil fechou sua posição nos Jogos do Rio em 13º – mesmo levando em conta o absurdo que é a contabilidade de ouros coletivos como equivalentes a ouros individuais. À frente do país estão, em ordem decrescente, EUA, Grã Bretanha, China, Rússia (desfalcada do atletismo), Alemanha, Japão, França, Coréia do Sul, Itália, Austrália, Holanda e Hungria. Nas sete posições abaixo do Brasil estão, Espanha, Quênia, Jamaica, Croácia, Cuba, Nova Zelândia e Canadá. Nas dez posições sequentes estão: Uzbequistão, Cazaquistão, Colômbia, Suíça, Irã, Grécia, Argentina, Dinamarca, Suécia e África do Sul; nas posições de 31ª a 40ª, estão: Ucrânia, Sérvia, Polônia, Coréia do Norte, Bélgica, Tailândia, Eslováquia, Geórgia, Azerbaijão e Bielorússia. Assim, dentre os 40 primeiros países, verificamos sete Estados nacionais sem modelo de desenvolvimento desportivo, sendo estes: Brasil, Quênia, Jamaica, Colômbia, Argentina, África do Sul e Tailândia. Como o que vale para o Comitê Olímpico Internacional (COI) é o número de medalhas de ouro, alguns países, como Jamaica e Quênia, se especializam em determinadas modalidades ou provas específicas de atletismo e a partir desta base modelam seu desempenho. Proporcionalmente em termos de recursos, instalações e número de praticantes de base, o Brasil foi muito bem, dentro das quadras, deixando para o momento posterior a mesma situação de incerteza e desespero fora dos locais de competição.
O mérito para tais resultados vêm das políticas de alto rendimento (incluindo a polêmica dos atletas “militares”, da abnegação de atletas dedicando-se ao profissionalismo e dos raros exemplos de confederações que têm centros de excelência, ligas profissionais e planejamento. Como modelo fechado, neste sentido, temos apenas a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), não sendo à toa a presença do cartola Carlos Arthur Nuzman na Presidência do Comitê Olímpico Brasileiro e que um dos seus dois sucessores na CBV , Ary Graça Filho, ocupe a Presidência da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).
Sendo a CBV o modelo para o desenvolvimento de modalidades olímpicas no país, ressaltando que os esportes coletivos têm outra dinâmica dos individuais (como por exemplo, a necessidade de tipos e atributos físicos pré-condicionados para os coletivos), nota-se que o desporto se desenvolve apesar da ausência do Estado como formulador e implantando as políticas necessárias.
O ciclo de qualquer modalidade com ambições olímpicas é difusão, participação e competição (o que na gíria denomina-se no amadorismo ou nas divisões inferiores como “atleta federado”); partindo dos resultados desta última selecionam-se o alto rendimento e daí os programas de incentivo e permanência no desempenho ranqueado internacionalmente. Sem esta base, fazer do esporte brasileiro um direito de todas e todos é simplesmente uma missão em vida de treinadores abnegados, como o técnico de boxe da comunidade do Vidigal – zona sul do Rio de Janeiro -, Raff Giglio. De seu projeto, além das centenas de crianças que atendem aos treinamentos ao longo de mais de duas décadas, saiu um medalhista olímpico e outros dois selecionados em 2016. Já o aluguel de seu ginásio, após haver sido despejado, é pago com o mecenato de um ator global! Histórias como estas e absurdos institucionais correspondentes, mais que justificam o choro e a raiva de atletas de alto rendimento e os técnicos de base.
Apontando duas conclusões
Aponto, por fim duas conclusões deste texto. A primeira aponta para a injustiça estrutural da mancha urbana do Rio como um espelho das distorções do país. Cada cidade brasileira e sua correspondente Região Metropolitana; acostumaram a organizar grandes eventos e trabalhar com a possibilidade de atração turística sem com isso modificar a injustiça e a pobreza espacialmente dividida.
Já o modelo do esporte de base, ou pior, a ausência deste, simplesmente exaure as forças dos difusores das modalidades desportivas. Como resultado, além das narrativas típicas do capitalismo, onde se destacam os empenhos e valores individuais de superação, temos mais do mesmo. O Estado opera como modelo de acumulação e também atende, parcialmente, a alguns direitos sociais, todos incompletos. Como o direito ao esporte, infelizmente, trata-se do mesmo abandono e injustiça estrutural.
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