Róber Iturriet Avila – Doutor em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística e diretor sindical do SEMAPI. João Batista Santos Conceição – Graduando em ciências econômicas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos e bolsista FEE/FAPERGS. A ampliação da transparência das declarações de imposto de renda à Receita Federal do Brasil facilitou a mensuração das disparidades no rendimento e no patrimônio dos brasileiros. Anteriormente, os dados disponíveis advinham de surveys como a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) ou a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). Sabidamente, a renda dos mais ricos está subestimada nessas pesquisas, uma vez que esses tendem a omitir sua receita quando questionados. Já as declarações de imposto de renda são mais precisas. Há que ponderar que, em muitos casos, os bens imóveis declarados possuem defasagem de avaliação. Além disso, uma parcela do patrimônio está contabilizada em pessoas jurídicas. Por fim, a renda e o patrimônio podem não ser plenamente declarados. De todo modo, esses são os melhores dados disponíveis, mesmo que se restrinjam as 27 milhões de pessoas que declaram imposto de renda. A partir desses dados, foram estabelecidos intervalos decílicos e centílicos. Ou seja, as análises abaixo utilizam o universo dos dados em intervalos de cem partes iguais, fragmentação centílica, ou em dez partes iguais, análise decílica. Isso quer dizer que o 1º centil se refere ao 1% com menores dados e o 8º decil se refere ao intervalo entre os 70% inferiores e os 20% superiores. Outro esclarecimento metodológico relevante, antes de observar os resultados, se refere às tipificações de renda. Os rendimentos das pessoas físicas recebem tratamentos tributários diferenciados. Os “rendimentos tributáveis” são majoritariamente compostos por rendimentos do trabalho, embora tenha também rendimento de propriedade, como por exemplo, alugueis. Já os “rendimentos tributados exclusivamente na fonte” e “rendimentos isentos” são compostos majoritariamente por rendimentos do capital, como aplicações financeiras, lucros, dividendos, embora esteja incluso também rendimento do trabalho, como o 13º salário. A soma desses três tratamentos tributários será chamada de “rendimento total” neste texto. No gráfico abaixo é possível observar que a média de rendimentos se eleva de maneira expressiva nas últimas faixas, sobretudo a partir do 96º centil, cuja taxa de variação do rendimento médio em relação ao imediatamente anterior é de 11,12%, chegando a 20,69% no 98º centil e 148,87% no último centil, enquanto nas faixas intermediárias a taxa de variação fica em torno de 4%. Cabe destacar que o último centil se refere aos mais ricos entre os declarantes e não em relação à população total. Como o gráfico está em R$ 1.000,00; a última faixa retrata renda média acima de R$ 1 milhão. Gráfico 1 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos centílicos – R$ mil – Brasil – 2014 Fonte: Receita Federal do Brasil Assim como na segmentação centílica, a repartição decílica do 1% mais rico entre os declarantes a a elevar de forma mais significativa a partir do 6º decil, com uma taxa de variação de 12,31%, chegando a 30,91% no 9º decil e a 226,63% no último decil, cujo rendimento médio de cada declarante chega a R$ 3.879.300,00. Embora os declarantes permaneçam anônimos, é possível identificar que o declarante que obteve o maior rendimento em 2014 informou ter recebido R$ 1.071.215.915,10 (um bilhão) entre rendimentos tributáveis, dividendos e rendimento sujeito à tributação exclusiva. Gráfico 2 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos decílicos do último centil – R$ mil – Brasil – 2014 Fonte: Receita Federal do Brasil A exposição das declarações de bens e direitos é também importante para um entendimento mais acurado do Brasil. Embora muitos desses bens não sofram atualização na base de dados da Receita Federal, como os imóveis, outros são atualizados anualmente, como as aplicações financeiras, por exemplo. Esses dados podem servir como proxy de riqueza. Embora não haja apenas um indicador de riqueza, a consideração do acúmulo pregresso de bens móveis e imóveis, dinheiro, companhias entre outros bens declarados no imposto de renda pessoa física conformam a estimativa mais exata que existe. No que concerne aos bens e direitos, é possível observar uma elevação acentuada nos quatro últimos centis. Na repartição decílica do último centil, a variação mais acentuada se dá nos últimos dois: 54,12% e 241,14%, respectivamente. Gráfico 3 – Média patrimonial dos declarantes de imposto de renda por centis – R$ milhões – Brasil – 2014 Gráfico 4 – Média patrimonial do último centil dos declarantes de imposto estratificada por decis- R$ milhões – Brasil – 2014 Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusiva na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei nº 9.249, os lucros ou dividendos aram a ser isentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos mais elevados da sociedade contribuem menos ao erário. Os rendimentos isentos de 2014 alcançaram R$ 733,6 bilhões, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 128,83 bilhões, ou seja, bastante abaixo do valor dos rendimentos isentos. Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiou 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), as quais possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões. Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente aos gastos privados em saúde e em educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 76,78 bilhões, 59,6% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina, conforme já exposto em textos anteriores. Os dados acima explicitam que a desigualdade no Brasil é maior do que se imaginava, com uma discrepância grande daqueles declarantes que figuram entre o 1%, o que corresponde a 0,13% mais ricos da população total. Ressalta-se ainda que esses declarantes possuem expressivos rendimentos isentos de impostos, ou seja, lucros e dividendos. Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, se preconiza que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. No Brasil há muito a avançar nessa temática. 2l2z1m
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Sistema Único da Assistência Social em risco: tendência de uma agenda neoconservadora 5lv31
Jucimeri Silveira*
As primeiras iniciativas do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário do governo interino de Michel Temer demonstram reais tendências de desmonte do Sistema Único de Assistência Social, num cenário de redução de direitos, de investida neoliberal e de avanço de uma agenda conservadora na política, em detrimento das conquistas democráticas. Os discursos de manutenção do que se conquistou de forma deliberativa e republicana nos últimos 10 anos na Assistência Social, não encontram coerência com a prática de gestão e as propostas, algumas já anunciadas ou implantadas por Decreto, com destaque para:
Anúncio de recursos financeiros relativos ao exercício de 2016 garantidos apenas até setembro, com orientação de articulação de emendas parlamentares como saída possível. A descontinuidade dos recursos fere a lógica do SUAS quanto aos rees obrigatórios, regulares e automáticos fundo a fundo, para a manutenção e expansão de serviços continuados. Os bloqueios baseados apenas nos saldos em conta trazem absoluta insegurança aos municípios e prejuízos no planejamento e na manutenção da rede estatal em todo o Brasil. Coloca-se em risco o funcionamento das mais de 10 mil unidades públicas de referência e especializadas que atendem a população mais vulnerável e com direitos violados em todo o Brasil;
Implantação de Visitadores Sociais vinculados ao programa “Criança Feliz”, voltado à primeira infância. O programa de governo desconsidera a rede de serviços implantada, o pacto federativo e a descentralização, a possibilidade de cofinancimento de serviços tipificados, como a Proteção Social Básica no Domicílio, e o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. A contratação precarizada de 80 mil visitadores reforça a tendência de desmonte da gestão do trabalho, com evidente desqualificação do trabalho especializado na assistência social. Com isso, surgem, com novas roupagens, práticas da chamada medicina social, o que nos faz relembrar a implantação em 1920 da primeira Escola de Serviço Social para atendimento materno infantil, as primeiras iniciativas na década de 1930 no Brasil para controle materno infantil e dos pobres. A situação de maior pobreza na infância e juventude evidentemente requer atuação integrada das políticas públicas. Entretanto, devem compor a rede de serviços do conjunto de políticas sociais. A Assistência Social não pode reassumir funções de outras políticas públicas. Os municípios não podem sofrer com a sobreposição, a residualidade e sobreposição de ações;
Rearticulação das ações solidárias em nível central desconsiderando a municipalização da política, especialmente no papel do município compor e cofinanciar direta e indiretamente a rede socioassistencial não governamental, com evidente tendência de retomada da primazia da atuação solidária da sociedade civil, em detrimento da manutenção e expansão qualificada da rede estatal. A atuação do terceiro setor é complementar e regulada no Vínculo SUAS, e, deste modo, não pode ser a “saída salvadora” para os contingenciamentos de recursos, ou servir de argumento para a organização das chamadas “portas de saída” do Programa Bolsa Família. O Programa Comunidade Solidária do governo Fernando Henrique demonstrou sua incapacidade em substitui os impactos dos sistemas estatais, orientados pelo princípio da universalidade, como o caso do SUAS, bem como da primazia estatal;
Cristalização da agenda de pactuação de recursos e ações nas instâncias do SUAS. Sob os argumentos de insuficiência de recursos ou redirecionamento da gestão para uma perspectiva de maiores resultados e estudo de cursos, o que se percebe é um congelamento na agenda de pactuação de serviços para todo o Brasil. O Plano Decenal comanda a plena universalização da proteção social na assistência social (benefícios e serviços), com cobertura progressiva para as desproteções, devendo compor um conjunto de iniciativas que possibilitem a redução da desigualdade, das vulnerabilidades e assimetrias de poder;
Rearticulação das Comunidades Terapêuticas e de políticas proibicionistas, segregadoras e higienistas, para o atendimento da população em uso de álcool e outras drogas. As perspectivas são de retrocessos na agenda integrada entre políticas públicas para a oferta de serviços de atenção e proteção, redutores de danos, com possibilidades maiores de interrupção da condição de rua ou outras situações associadas. A culpabilização dos indivíduos sociais por sua condição encontra total coincidência com a cultura conservadora que moraliza e criminaliza os pobres;
“Focalismo” extremo nos mais pobres e redução do o à Segurança de Renda. As medidas anunciadas quanto aos controles “mais rígidos”, (sugerindo fraudes adas) no o aos benefícios socioassistenciais (Programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), demonstra a evidente tendência de progressiva redução de os, baseada na opção neoliberal por restringir políticas distributivas quanto à abrangência, permanência e escala. Maior focalização nos 5% mais pobres em relação ao Programa Bolsa Família ou adoção de critérios como maior grau de dependência, no caso de pessoa idosa e pessoa com deficiência, pode indicar no mínimo um “filtro” maior no o a um direito Constitucional. A subordinação da política social à política econômica, desconsiderando inclusive o papel de desenvolvimento das economias locais, coloca em risco a manutenção do vínculo do BPC ao salário mínimo, e a universalização de políticas distributivas, sendo que estas têm efeitos diretos na redução da desigualdade de renda. Expressa, ainda, uma total desconsideração do papel das políticas distributivas no desenvolvimento humano, que evoluiu positivamente 47,8% nos últimos 20 anos, com expressiva redução na última década da pobreza, da fome, da mortalidade infantil, entre outras dimensões que posicionaram o Brasil como referência mundial nas políticas sociais;
Redução do papel das instâncias deliberativas. A implantação de medidas que não aram por pactuação e deliberação ferem o pacto federativo construído no SUAS, e expressa um descumprimento da Lei Orgânica de Assistência Social e da própria Constituição Federal de 1988, que define novos dispositivos democráticos. Políticas de Estado respeitam o comando Constitucional da participação, implicam processos deliberativos e interfederativos, o que requer o recurso permanente do diálogo, da produção de consensos disputados nas arenas políticas na via institucional. Negar o processo democrático construído no SUAS combina com a cultura política conservadora, num cenário de golpe à democracia, já que anula o conflito como atributo da democracia, e impõe uma agenda de retrocessos no campo dos direitos humanos e das políticas públicas.
O cenário político desafia os/as defensores/as de direitos humanos, e, particularmente da assistência social, a uma atuação vigilante, tanto nos espaços institucionalizados de participação, quanto, e, sobretudo, nos espaços políticos de resistência e luta coletiva em defesa da democracia e dos direitos.
A atual conjuntura revela uma tendência que extrapola os retrocessos na assistência social. Coloca-se em prática nas diversas políticas públicas e sistemas específicos em direitos humanos, uma agenda regressiva, com evidente avanço do conservadorismo. Pautas como a redução da maioridade penal, são alimentadas por propostas que reforçam a face do Estado “gerente” para o mercado e “penal” para os mais pobres e os movimentos sociais.
Além da subordinação da política social ao ajuste fiscal, outras medidas neoliberais afetam os/as trabalhadores/as, como a reforma na previdência social, a mercantilização da saúde, com o desmonte do Sistema Único de Saúde, a precarização do sistema público de ensino e o programa “Escola Sem Partido”, entre outras. As reformas planejadas afetam a soberania brasileira e as conquistas parciais em direitos humanos, e já sinalizam a volta da pobreza, o aumento da violência e o aprofundamento da desigualdade, em todas as suas dimensões (racial, de gênero, socioeconômica).
É preciso reafirmar os direitos e as conquistas de nossa democracia recente, entre eles o direito à assistência social num projeto popular de defesa das reformas estruturantes. A conjuntura exige resistência, mobilização e luta coletiva, o que requer uma estreita aliança entre trabalhadores/as sociais e usuários/as dos serviços, com fortalecimento dos movimentos e organizações em defesa dos direitos e da democracia!
Lava Jato: após omitir-se, o Supremo se assusta. Vai acordar? 6z4n13
Marcelo Auler – Reporter
As múltiplas desigualdades e sua reprodução: seremos mesmo o "lobo" uns dos outros? 6a385k
Marília V. Veronese – Psicóloga Social e Professora
Costumamos ignorar, ou não dar a devida atenção, às desigualdades – grandes/estruturais ou pequenas/cotidianas -, que presenciamos constantemente e que fazem nossas sociedades injustas e indignas. A norma sob a qual vivemos é branca, cis (identidade sexual igual à designada), heterossexual, masculina e rica/classe média, adulta (mas jovem), “saudável” e sem deficiências. O que acontece com quem não preenche tais requisitos? Negros, índios, mestiços (não-brancos em geral), gays/lésbicas, transgêneros e travestis, pobres, periféricos, portadores de alguma deficiência, crianças e velhos?
Bom, esses terão muito mais chance de experimentar as agruras de uma sociedade estruturalmente injusta, cindida entre quem é plenamente cidadão e quem não é, quem a as benesses da civilização e quem fica de fora. Tendem a ser expulsos – ou nem sequer incluídos – do contrato social. Esse pacto foi o que fundou o Estado moderno, com o objetivo de organizar a sociedade numa forma viável, pacífica e justa de vida coletiva, na qual o mais forte não esmagasse o mais frágil.
Nas aulas sobre contratualismo, quando eu “testava” meus alun@s do curso de economia pra ver quem era mais hobbesiano ou mais rousseauniano, sempre havia quem achasse que o homem é mesmo o lobo do homem e não tem jeito. Thomas Hobbes postulava que a natureza humana era violenta e todos se matariam uns aos outros, caso o Estado não centralizasse o poder e terminasse de uma vez com a bagaça, ficando conhecido pela expressão “o homem é o lobo do homem”. Já Jean Jacques Rousseau acreditava numa natureza humana pacífica e bondosa, mas achava que a ganância por acumular mais do que o semelhante corrompia o homem, vivendo em sociedade em regime de propriedade privada. Nesse caso, caberia ao Estado garantir a justiça e a igualdade entre os humanoides. “Deixa a Bangu pra ver o que acontece!” disse um aluno uma vez, certo do caos completo e aniquilação geral sem a repressão do Estado. Em gradientes variáveis, cada um/a deles/as tinha uma posição, mais próxima ao pessimismo de Hobbes ou ao otimismo de Rousseau, em relação à natureza humana.
Poderemos viver juntos?, perguntava-se o sociólogo Alain Touraine. Seremos mesmo os piores inimigos uns dos outros? Iguais, mas diferentes; juntos, mas separados. “O inferno são os outros”, já dizia o existencialista Sartre. Esse tema foi e é objeto das mais variadas interpretações e mais apaixonadas impressões.
Conforme se combinem as vulnerabilidades citadas anteriormente, mais a situação fica difícil para o sujeito em sociedade. Se for mulher, pobre e negra, os piores trabalhos e as menores remunerações serão as delas (conforme mostra a pesquisa do IPEA[1]). Se for travesti, ou preto e periférico, a expectativa de vida é bem menor do que a média da população em geral. Se for negro, pobre, gay e morador de rua… melhor seria fugir pras montanhas e viver de mel silvestre e gafanhotos, como aquele cara cabeludo que viveu há uns 2000 anos atrás e mandou todo mundo se amar e viver solidariamente, sem julgar ninguém (alguns não souberam interpretar sua mensagem – ou são mesmo muito canalhas e manipuladores – e preferem dizer que ele mandou “dar pancada em gay”, estimulando violência e ódio).
A chamada constituição cidadã de 1988 visou incluir mais gente no contrato ou pacto social. Aquela combinação que diz assim, “Olha, pra viver pacificamente em sociedade tem de ter maior igualdade, mais gente deve ser incluída nas benesses da civilização, nessa invenção moderna chamada de cidadania”. O direito a ter direitos, individuais e coletivos. O direito a sair da condição de “inferioridade” produzida e legitimada, de não mais vivenciar conflitos sociais que causam privações, dor, sofrimento e humilhação cotidiana, aquilo que a psicóloga social Bader Sawaia chama de “sofrimento ético-político”.
Agora que o projeto democrático-constitucional iniciado em 1988 está sob forte e virulento ataque, corremos o risco de aprofundar ainda mais as desigualdades, e não somente mantê-las intocadas (o que já seria terrível). No que consistia esse projeto? Na ampliação da democracia, dos direitos sociais, da participação popular, através de comitês, conselhos, mecanismos pluripartites de gestão das políticas públicas e universalização de direitos como saúde e educação básica.
Os direitos sociais, econômicos e culturais são aqueles vinculados ao trabalho e renda, à educação e à saúde, chamados direitos de segunda geração, ligados à ideia de igualdade. A primeira geração de direitos, ligada à ideia de liberdade, refere-se ao direito de ir e vir, votar e ser votado, não ser preso arbitrariamente… e a terceira geração, ligada à ideia de fraternidade, são os direitos ao meio ambiente saudável, à autodeterminação dos povos, patrimônio comum da humanidade e livre comunicação. Liberté, egalité, fraternité! Ideias liberais iluministas. Será que os que são contra os direitos humanos – trogloditas de internet! – mas colocam bandeira da França no perfil das redes sociais sabem que os ditos cujos nasceram lá? Quer dizer, há controvérsias, há origens variadas e mais antigas, mas deixemos essa discussão para outro texto! Modernamente, o lema da revolução sa é a gênese da tradição de direitos humanos.
A ampliação de direitos e a justiça social nunca foram, contudo, uma unanimidade entre os brasileiros (nem em nenhum lugar do mundo). As elites nacionais sempre quiseram manter a senzala servindo a casa grande, e morrem de medo da revolta “dos de baixo”. Já eu, sonho com o dia em que eles finalmente acabarão com a festa dos canalhas, parando de eleger para o legislativo pastores picaretas, gastadores de dinheiro público e grileiros do PP; se recusando a ser o saco de pancada geral e parando de servir às elites por migalhas. Quando o morro descer pro asfalto fora da época de carnaval, disposto a exigir seus direitos, talvez os ideais de Rousseau e o lema da revolução sa finalmente se concretizem. Mas de verdade e para tod@s, não só para os de sempre numa enganação muito típica das democracias modernas ocidentais, que exploram e oprimem a vontade longe de suas fronteiras.
Para debater as origens da legitimação das desigualdades aqui no Brasil, recorro a Jessé de Souza. Cito, pois é um “vício” de todo pesquisador acadêmico a citação; cito porque Jessé disse com muita propriedade aquilo que penso: “O economicismo liberal, assim como o marxismo tradicional, percebe a realidade das classes sociais apenas ‘economicamente’, no primeiro caso como produto da ‘renda’ diferencial dos indivíduos e no segundo, como ‘lugar na produção’. Isso equivale, na verdade, a esconder e tornar invisível todos os fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturais que irão constituir a renda diferencial, confundindo causa e efeito. Esconder os fatores não econômicos da desigualdade é, na verdade, tornar invisível as duas questões que permitem efetivamente compreender o fenômeno da desigualdade social: a sua gênese e a sua reprodução no tempo”. Mas que fatores são esses aos quais Jessé alude?
As múltiplas disposições culturais que as pessoas trazem dos seus contextos de nascimento e desenvolvimento. As oportunidades brutalmente desiguais de estudo, formação, experiências enriquecedoras. Sofrer racismo na infância. Ter de trabalhar muito cedo e não ser socializado visando o aprendizado e ensino formal avançados.
Corroborando a leitura bourdiana de Jessé, o cientista estadunidense Karl Hart fez uma pesquisa e constatou que uma criança de ambiente sociocultural elevado, já aos 3 anos, terá um léxico muito mais variado do que uma que se cria em ambientes de pobreza, privação e pouca escolarização. As brutais desigualdades, porém, são camufladas e tudo se resumirá ao esforço pessoal – ou a ausência dele. A igualdade formal – letra morta da lei – é tomada como real, o que não é verdade.
A isso Jessé chama de “economicismo”, uma ideologia nefasta e que está na base da naturalização das desigualdades. Cito novamente: “Apesar de ‘invisível’, esse processo de identificação emocional e afetiva já envolve uma extraordinária vantagem na competição social seja na escola, seja no mercado de trabalho em relação às classes desfavorecidas. Afinal, tanto a escola quanto o mercado de trabalho irão pressupor a ‘in-corporação’ (tornar ‘corpo’, ou seja, natural e automático) das mesmas disposições para o aprendizado e para a concentração e disciplina que são ‘aprendidas’, pelos filhos das classes privilegiadas, sem esforço e por mera identificação afetiva com os pais e seu círculo social. ”
O brasileiro médio ainda é racista, homo e transfóbico, tem muito preconceito de classe e ajuda a reproduzir a sociedade injusta e perversa em que vivemos. Nega o massacre da juventude negra e pobre e tem uma bestial sede de vingança dos que considera “bandidos”, volta e meia se envolvendo em linchamentos por aí. Nega tudo isso, obviamente: afirma que o importante é se esforçar, que gente vagabunda não tem as coisas porque é vagabunda. Comete assassinatos lógicos ao abstrair completamente as pessoas de seu ambiente social e achar que todos têm iguais condições e predisposições, ignora o processo social opaco, como diz Jessé, de produzir “indivíduos nascidos para o sucesso” de um lado e outros “nascidos para o fracasso” de outro. As exceções a essa regra só a confirmam, pois são exceções. E a condição de exceção já é a confirmação do caráter geral da regra.
Precisamos de uma ampla reforma no pensamento social, na ação de cada um/a em sociedade, na compreensão mais profunda e complexa da gênese da desigualdade e da evitabilidade de sua reprodução, mediante ações combinadas do Estado e da sociedade civil. Os privilégios de alguns diante da ausência de direitos de outros são vergonhosos. A ostentação é ridícula. Mudar a forma de vida é essencial, tendo a solidariedade e senso de justiça como guias. E o lobo, aliás, nem merece a má fama que tem, ele é um belo animal. Só ataca se realmente precisar: Hobbes estava enganado, e nós podemos ser lobos, digo, humanos bem melhores do que temos sido.
[1] http://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf
Uma brecha no mundo 1r2k2l
Marino Boeira
O mundo está muito chato.
Nós o criticamos e ele não dá a mínima importância.
Mas, quem é o mundo?
É o mundo em que vivem aquelas pessoas que, por alguma razão obscura, gostaríamos de influenciar.
Nossos amigos, os brasileiros, os pobres, os oprimidos.
E quem somos nós?
Somos aqueles sujeitos nascidos a partir da segunda metade do século ado.
Somos aquelas pessoas que se dizem intelectuais, porque leram alguns livros.
Somos os que pensam ser de esquerda, só porque costumavam votar no Partidão, quando ele ainda existia e que agora votam no PT.
Somos aqueles que, em algum momento, pensaram que poderiam ajudar a melhorar o mundo para os nossos amigos, para os brasileiros, para os pobres, para os oprimidos.
Quanto fizemos em relação a isso?
Pouco, muito pouco.
Possivelmente, nada.
Talvez, como agora, apenas escrever uma crítica que poucos vão ler.
Queríamos mudar esse mundo, mas sempre o tratamos com um certo desprezo, como se fôssemos os únicos que conhecem a porta de saída.
No mais das vezes, olhamos com indiferença esse mundo em que não queríamos entrar, pois como no inferno de Dante, a condição para entrar é deixar toda a esperança do lado de fora.
Mas desde quando o mundo ficou assim tão chato para o nosso gosto?
Num artigo que escreveu esta semana, Tarso Genro, ao comentar o livro de Schiller, “ A educação estética do homem”, deu uma pista.
O mundo ficou assim porque não soubemos seguir a proposta do filósofo alemão, segundo a qual, a sabedoria e o sentimento – corretamente ajustados para saber contemplar de maneira adequada uma obra de arte – possibilitariam aos seres humanos chegarem a um estado moral que permitiria exercer todas suas virtudes cidadãs.
Vamos pensar um pouco na história do Brasil dentro dessa ótica que Tarso pinçou no livro de Schiller.
Até 1964, vivíamos uma época de intensa agitação cultural que, partindo dos segmentos mais intelectualizados da sociedade brasileira, de alguma forma contaminava toda a população.
Basta fazer um paralelo com os dias de hoje para percebermos a diferença.
Os meios de comunicação e principalmente o teatro e o cinema punham na ordem do dia a discussão sobre o melhor sistema social e político em que deveríamos viver.
A favor do socialismo ou contra, todos (pelo menos pensavam que era assim) tinham espaço para expor suas opiniões.
Hoje as redes sociais, como o facebook, são espaços cativos para toda sorte de banalidades. O que chama a atenção é aquele vídeo da cadela que alimenta sete gatinhos, do “nude” daquele cantor de rock ou aquela frase profundamente idiota, mas na qual muitos enxergam um pensamento profundo, tipo “sempre existirá um amanhã”.
Quem falava de ética e compromisso social era, no ado, Jean Paul Sartre. Hoje é o juiz Sérgio Moro. Um abismo intelectual imenso separa as duas figuras, mas são elas que, ontem e hoje, servem como referências.
Para toda uma geração de brasileiros, a última oportunidade foi dada em 1964. Um divisor, que deixou na esquerda os que não aceitaram o golpe; na direita, os que o aplaudiram, e num imenso espaço no meio, os que, não concordando, preferiram a omissão.
Dilma Rousseff, com todos os erros de sua ação como Presidente, tem uma glória que nunca é demais lembrar: ela tomou em armas contra os estupradores da nossa frágil democracia de então.
Ela fez aquilo que Karl Marx disse uma vez que era a missão dos novos filósofos: não mais explicar o mundo, mas tentar mudá-lo.
Nós, os que agora acham o mundo muito chato, preferimos mudar nossas vidas pessoais, alguns ganhando muito dinheiro, outros apenas sobrevivendo, concentrando nossos esforços e alegrias nas vitórias dos nossos times de futebol.
Os que conseguiram ganhar dinheiro, honestamente ou nem tanto assim, puderam justificar suas omissões com a desculpa que, enquanto foi possível, tentaram fazer sua parte.
Um deles, disse uma vez com certa ironia, quando sua conta bancária começou a crescer: “eu lutei muito pela chegada do comunismo, mas agora que começo a ficar rico, ele pode, já que demorou tanto a chegar, esperar mais um pouco”.
Voltando as conclusões de Tarso sobre sua leitura de Schiller: não é possível construir uma sociedade democrática, tendente à igualdade social, sem conhecimento, sem educação, sem uma cultura que democratize o conhecimento para todas as classes sociais.
Existe outra questão que o texto otimista de Tarso não aborda: como romper a imensa conspiração de silêncio de todos os meios de comunicação sobre qualquer proposta de ruptura da atual “pax americana”?
Ao lado de uma imensa massa de conformados, o que se vê em oposição a uma ordem, injusta socialmente, é o desespero das absurdas ações terroristas sob o ponto de vista coletivo ou a ação deletéria de delinquentes, sob a ótica individual.
Nenhuma das duas gera algum tipo de avanço social. Pelo contrário, aumentam a força dos poderosos de hoje.
Resta o campo da ação política.
Mas um olhar sobre essa área (e estamos voltando ao ponto de partida desse texto), nos mostra que são poucas as possibilidades de mudar este mundo chato em que vivemos.
No caso brasileiro, as opções políticas parecem se restringir hoje ao “Volta Dilma”, para provavelmente repetir todos os seus erros do ado, ou “Fica Temer”, para completar sua obra de entrega das riquezas do Brasil ao capital internacional.
Tarso diz no seu texto que o mais importante é a defesa de uma forma democrática (poder-se-ia dizer uma estética democrática), que inaugure uma nova hegemonia no âmbito das soluções para as crises da democracia representativa: elas devem ser resolvidas, sempre, com mais democracia, não com menos democracia.
Mas, quem quer mais democracia? Não serão Temer e o que Tarso chama com ironia de Confederação de Investigados e Denunciados. Não serão os grandes veículos de comunicação que comungam de uma visão muito peculiar do que chamam de democracia. Não serão os banqueiros, nem os empresários, nem os políticos conservadores.
Como pós 64, será novamente uma pequena minoria.
Acreditar que ela possa mudar a realidade brasileira pode ser uma utopia, mas parece ser a única opção que nos restar para tentar abrir uma brecha nesse mundo chato.
Os efeitos danosos do golpe 2q1t35
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff pela oligarquia política do congresso nacional, pela mídia dos grandes meios de comunicação social, pelo judiciário direitista ultraconservador e por grandes corporações capitalistas evidencia os seus efeitos em todos os espaços e em todos os setores. O que acontece no epicentro do poder em Brasília, os interesses que se escondem e as forças de poder se disseminam por toda a sociedade. Abordaremos no artigo que segue alguns desdobramentos sistêmicos do golpe e que sentimos duramente em todas as esferas nas quais nos encontramos.
O golpe tem um viés econômico que tem tudo a ver com o capitalismo internacional e nacional. Os atores do golpe são grandes elites capitalistas nacionais e internacionais diretamente interessadas em nossas riquezas naturais, tais como a Amazônia, o Pré-sal, os minérios, as terras etc. O fundo do golpe é uma nova fase do imperialismo capitalista internacional que visa transformar o Brasil em uma das colônias privilegiadas da voracidade devoradora da imensa fome capitalista. Diante desta força devoradora das grandes corporações capitalistas, qualquer projeto nacionalista, que envolve algumas das políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma fogem aos interesses privatistas dos golpistas. Este é um dos motivos basilares pelos quais a elite dominante depõe a Presidente Dilma e deseja acabar como PT.
A crise econômica que o país atravessa nos últimos tempos tem as marcas da elite golpista. Como o Brasil estava emergindo como uma nova potência mundial, impulsionada por algumas políticas estatais estruturantes, desestabilizaram mundialmente os preços do petróleo, dos minérios, da soja e outros produtos agrícolas, o que inevitavelmente colocou o país em crise. Soma-se a isto a crise hídrica que causou uma profunda restrição no setor elétrico, provocando o aumento considerável do preço da energia elétrica. Uma significativa classe social, amplamente beneficiada por Lula e Dilma, sentiu profundamente os efeitos de contingenciamentos e os meios de comunicação aproveitaram o descontentamento destas classes e incendiaram um onda de protestos contra Dilma. Assim, a profunda crise política na qual o Brasil atualmente está mergulhado inviabiliza qualquer perspectiva de retomada da atividade econômica em curto prazo, com a qual o povo sofre profundamente.
O golpe em curso tem efeitos danosos na política. Definitivamente, a política deixou de ser o poder do povo para o povo. Como a ética e a política foram cindidos, a política se transformou numa estratégia de domínio de uma pequena classe de privilegiados que explora a grande massa da população. Vimos no golpe em curso a força em coro de um grupo elitista nacional e internacional, através de um processo parlamentar que envolve o congresso nacional, o judiciário, os meios de comunicação, para inviabilizar a efetivação de qualquer projeto democrático. Os poderes do Estado, constituídos para salvaguardar a Constituição e a Democracia, são os primeiros a violentá-las e dissolvê-las. Em função da cisão estabelecida entre estes poderes e o povo brasileiro, transformaram-se em articuladores do golpe, numa ação política de extrema direita. As vozes do povo que emanam dos mecanismos políticos legitimamente estabelecidos se perdem e a política se transforma na voz dos mais fortes, tudo na legitimidade parlamentar e jurídica.
O golpe em curso tem consequências doutrinais e ideológicas. Estamos assistindo a volta de formas de pensamento autoritárias e conservadoras. Elas estão vindo com toda a força e se destinam a legitimar um estado de coisas existente, inviabilizando qualquer tentativa de transformação social. São fundamentalismos econômicos, religiosos, políticos e sociais. São facilmente perceptíveis dogmatismos neoliberais ligados ao privatismo econômico, ao mercado absoluto e dominador, ao individualismo consumista etc. Os dogmatismos religiosos são visíveis nos muitos fiéis que ostentam práticas devocionais, concepções superadas como o criacionismo e práticas religiosas separadas da realidade. A leitura fundamentalista da bíblia é uma das facetas deste dogmatismo. A faceta mais conservadora do fundamentalismo é concentrada num significativo grupo de políticos que habita o congresso nacional, que carrega a bíblia embaixo do braço e representa uma das facetas mais conservadoras da política brasileira. É uma forma de encobrir com a santa religião e com discurso moralista um conjunto de interesses econômicos.
O golpe protagoniza tensões e enfrentamentos extremos. É a tensão entre a casa grande e a senzala, entre o povo e a oligarquia dominante, entre o patriarcalismo de direita e as esquerdas políticas etc. Mas as supremas tensões carregam em si mesmas o fenômeno da indiferenciação e da indistinção. Esta indiferença se manifesta na massificação da opinião pública amplamente dominada pelos grandes meios de comunicação social, na postura religiosa ultraconservadora, no discurso fascista contra o PT e contra Lula, na voz unívoca dos meios de comunicação, na generalização de um discurso que retrata apenas uma pequena fração da realidade, sem permitir que ela apareça de forma abrangente. O que circula nos meios de comunicação, nas mentes das pessoas e o que é comentado no dia a dia caracteriza uma aparência imediata que esconde uma realidade muito mais ampla e complexa. Trata-se do fenômeno do cinismo generalizado e universalizado, expresso principalmente na dogmatização de uma visão imediata e parcial da realidade. Em outras palavras, a realidade é encoberta por um discurso imediato, não raras vezes expresso numa linguagem de deboche. Vê-se um discurso uniformizado, extremamente superficial, imediato, parcial e fragmentado, que tomou conta de toda a sociedade e se manifesta numa opinião pública intensamente massificada.
A massificação da opinião pública, em forma de cinismo social, é um ambiente propício para que os golpistas possam impor o seu projeto. Diante da massificação da informação intensamente interiorizada pela população, as vozes democráticas e os discursos que apontam para outra interpretação da realidade ficam sem força. Neste contexto, uma iniciativa de desmistificação dos interesses ideológicos que se escondem por debaixo do golpe, não vai ter expressão na opinião pública e não terá força de transformação social. Em outras palavras, um discurso místico e parcial toma conta da realidade, enquanto que um discurso mais crítico e abrangente fica proibido de ser dito. Os meios de comunicação exercem um papel central para que a opinião pública se configure desta maneira. Talvez seja esta a intenção de fundo para a implantação da dita escola sem partido, para excluir da escola toda a tentativa de gestação de um pensamento crítico e sistemático.
O fenômeno social aqui indicado precisa produzir a sua negação, a sua oposição, a sua contradição interna em tensões sociais com posições e práticas diferentes e opostas. A imensa superficialidade da opinião pública e o cinismo social precisam ser quebrados e produzir uma nova configuração e correlação de forças. Para a quebra da indiferença e imediatez social precisam aparecer novas forças de informação, novas forças políticas, novas concepções sociais, novos discursos capazes de penetrar na estrutura social. E esta oposição deve configurar-se em nova síntese social, em nova estrutura social para redimensionar o Estado e os poderes constituídos. Estes fenômenos devem dar outra função ao congresso nacional e ao supremo tribunal federal, no sentido de recuperarem a vanguarda da Democracia e da vontade popular. Mas, considerando o cenário nacional de hoje, com quase certeza devem aparecer fenômenos sociais intensos opostos ao que hoje vivenciamos e interpretamos epistemologicamente.
Mas os efeitos do golpe não param por aí. Ele tem consequências locais, nacionais e internacionais. Representa a ruptura de uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente no que concerne à Democracia e à liberdade dos povos. Uma geografia complexa de relações internacionais na qual o Brasil figura como um dos atores fundamentais pode ser dissolvida. Neste cenário, corremos o risco de voltar a um modelo de relação de dependência diante das grandes potências do norte e perder a soberania nacional. A plataforma de fundo de um golpe como aquele que estamos assistindo, no qual o que não é dito e não aparece na telinha da televisão, são os interesses capitalistas internacionais que representam os motivos fundamentais. Todos os dias observamos a tendência de dissolução de importantes conquistas do povo resultantes de muita luta, suor e sangue de muitas gerações. A condição de importante ator internacional conquistada pelo Brasil nos últimos anos tende a desaparecer e a se transformar, em pouco tempo, numa republiqueta sem expressão internacional.
Com estas considerações, as consequências do golpe aparecem na totalidade da estrutura social, na economia, na política, na religião, na cultura e no conhecimento. Tem a sua faceta na padronização da informação e na consequente massificação da opinião pública, que repete em toda a sua abrangência um discurso superficial e imediato. Uma possível força de contradição de uma opinião mais crítica e sistemática, por ora, não tem muita força. O golpe se transformou num fenômeno de muitas dimensões, pois penetra no interior das relações interpessoais mais restritas, no interior das famílias, dos grupos, e se estende para o cenário nacional e internacional.
A economia política da desfaçatez w3y2f
Duilio de Ávila Berni – Professor de economia política aposentado (UFSC e PUCRS), co-autor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Desfaçatez, substantivo feminino, observada nos atuais escalões decisórios da política econômica brasileira, sotaque café-com-leite, isto é, pronuncia-se como a dupla Aécio-Temer. Além da propaganda em torno da qualidade técnica do novo Mãos-de-Tesoura, o banqueiro aposentado e com hobby na política Henrique Meireles, o que vemos é um pacotaço de decisões abalando os fundamentos do já combalido estado de bem-estar social brasileiro. Podemos falar em uma economia política neoliberal sem desfaçatez? Difícil, especialmente quando vemos o governo interino apelar quase ipsis litteris ao receituário da candidatura mal urdida dentro do PSDB em 2014 e derrotada nas urnas pela finada aliança PT-PMDB. Em que consiste a economia política da desfaçatez?
Iniciemos considerando as posições de contrariedade entre mundos possíveis. A primeira delas talvez tenha sido realizada apenas nos alvores da humanidade, configurando o estado natural num mundo de liberdade individual absoluta. Cada um dá a sua existência o destino que bem entende, mas, por isso mesmo, vive uma vidinha solitária, pobre, repugnante, bruta e curta. Nesta descrição de pesadelo de Thomas Hobbes, não há muito espaço para a atividade econômica, pois numa terra de desrespeito a qualquer propriedade privada, inclusive a vida, os incentivos para a produção de riquezas são quase tão escassos quanto… no Brasil XXI. Tão impossível e indesejável quanto esta posição é o elogio ao “ir jogo das livres forças do mercado”. Desfaçatez.
A segunda posição extrema é mais moderna e carrega em seu âmago um mundo real em que – no dizer de Marx – “tudo vira mercadoria, inclusive a honra”, posição esta que foi levada ao limite por meio do conceito criado por Kenneth Arrow de seguros generalizados. O medo que nutrimos sobre o futuro, aquele medo que congela a vida societária no estado da natureza, não existe, pois cada cidadão pode contratar um seguro que lhe permite ser indenizado contra o risco de cair em situações desagradáveis, perniciosas ou mortais. Nesse mundo, estaremos seguros contra tudo, incêndios, tempestades, frustração de casamento, quebra de safra na lavoura, derrota no jogo de pôquer, golpes de estado, corrupção de políticos. E quem gosta, por exemplo, de risco e montanhismo, poderá contratar até mesmo um seguro de ressarcimento contra escaladas monótonas.
Em resumo, uma das posições extremas é o elogio da supremacia política a todas as demais dimensões da vida social, ao o que a outra é um arranjo econômico (atuarial), com o resguardo absoluto a qualquer abalo ao ramerrão, que pode ser até a vida sob risco de ausência de riscos. Nesses casos extremos, ninguém de nosso tempo escolheria viver naquele mundo hobbesiano. Ao mesmo tempo, muita gente abdicaria da vida no ambiente arrowiano, por considerar que uma existência sem risco é tão insípida quanto… a dupla Aécio-Temer. Parece que a solução judiciosa é a existência de um ambiente intermediário que limite nossa liberdade de fazer o que queremos à custa da liberdade dos outros que também permita pensarmos que um número finito de seguros pode induzir à realização de maior bem-estar social. Por exemplo, a sociedade poderia criar um seguro contra o desemprego cujo mecanismo de implantação não seria outro que a renda básica universal.
Mas é precisamente neste ponto que se vê uma enorme expressão de desfaçatez por parte de muitos economistas conhecedores da história econômica. Entusiasmados com a tarefa de destruir o estado de bem-estar social, eles negam a socialização do risco de desemprego. Ao mesmo tempo evitam pronunciar-se sobre o caráter malévolo do capitalismo no que diz respeito às questões distributivas, ao trato ambiental, e ao resgate de recursos humanos que vêm sendo desperdiçados há gerações por não terem relevância funcional para a manutenção do sistema.
No mundo em que vivemos, homens e mulheres, tal como os vemos nas ruas e campos, nós mesmos e nossos ancestrais, não existiríamos sem o abrigo da sociedade. Moldados pela sociedade, homens e mulheres são condicionados/convocados a expressar preferências sobre uma enormidade de cursos de ação, desde sair da cama na manhã fria, tirar o leite do refrigerador, ir ao trabalho, comprar um par de sapatos à vista ou a prestação. Um conjunto igualmente gigantesco destas preferências e escolhas é semelhante às que determinam escolhas feitas por subconjuntos de integrantes da sociedade. Ao longo do tempo, a própria sociedade vem criando várias formas de agregar as preferências de seus agentes.
Nova manifestação de desfaçatez pode ser observada neste contexto, quando o trio agregador de preferências individuais encapsulado pelo mercado, pelo estado e pela comunidade cede espaço ao monocórdio elogio ao mercado. No livro texto convencional, aprendemos como fazê-lo para o caso das funções de procura e oferta de mercado, a partir de curvas dos consumidores e produtores individuais. A desfaçatez esconde que, nos livros de nível intermediário, discutem-se os problemas carreados à sociedade por meio de imperfeições no funcionamento do mercado, como é o caso do monopólio e da produção de bens públicos (saneamento, segurança) e insuficiente provisão de bens de mérito (educação, saúde). A omissão em falar nos demais integrantes do tripé não pode ser prova de ignorância, pois quando são forçados a fazê-lo, os arautos dos interesses vinculados à destruição do breve estado de bem-estar social do lulismo pulam imediatamente para denunciar as imperfeições no funcionamento do estado, como é o caso do nepotismo, da corrupção ou da troca de votos nas câmaras legislativas. No contexto, ou melhor, fora dele, omite-se qualquer referência à agregação de preferências sociais pela comunidade, como é o caso dos clubes, sindicatos e igrejas. Portanto nem chegam ao começo do entendimento sobre formas de combater suas imperfeições, como a segregação racial, sexual ou religiosa e… os linchamentos. Em resumo, há diferentes graus de combinação sobre o grau de imperfeição no funcionamento nas três formas citadas de agregação de preferências sociais. Que dizer da discussão sobre formas honestas de superá-las?
Mais uma desfaçatez consiste em dizer que o estado é grande, quando sabem que os serviços que ele presta na produção de bens públicos ou de mérito são deficientes, ao mesmo tempo em que há uma profusão de funcionários governamentais enviesando os gastos públicos para um rumo desigualitário de “salários” estratosféricos. Ou seja, alardeiam problemas no lado da receita pública, ou seja, no simples ato que leva o governo a arrecadar tributos para financiar o gasto público. É desfaçatez sugerir que o problema do setor público brasileiro reside nos impostos, deixando omissa a referência a sua composição, que poderia substituir a enorme carga indireta pela taxação sobre a renda, o patrimônio e a herança. Ainda nesta linha, além do enorme gasto no pagamento dos serviços da dívida pública, transparece a visão elitista dos arautos da privatização. Sendo o Brasil um país de espantoso grau de desigualdade na distribuição da renda, privatizar significa retirar a propriedade diluída sobre a população e transferi-la à elite econômica. Qual o grau de isenção no processo, quando se considera que o Brasil é um país classificado como de renda média, mas com menos de 10% da população detendo meios para adquirir o que quer que seja além das despesas do cotidiano? Sem desfaçatez, podemos sugerir que, se é para reduzir a participação do governo nos setores produtivos, mais vale recorrer-se à criação de um fundo nacional de desenvolvimento, distribuindo uma e apenas uma cota intransferível a cada brasileiro, ainda que autorizando-o a alugá-la.
Vejamos outra prova da desfaçatez dos arautos do conservadorismo. Ao confrontar a liberdade pré-hobbesiana com seu moderno oposto arrowiano, torna-se claro que nenhuma dessas configurações é interessante no mundo em que vivemos. Por isto, pensar em atribuir aos mercados o caráter soberano na regulação das relações sociais é, para cientistas sociais educados, manifestação de desfaçatez. Ao mesmo tempo, sabendo da existência de falhas de mercado, governo e comunidade, não é sensato à sociedade desejar apoiar-se centralmente em algum dos elementos do tripé. A sabedoria exibida em alguns países, e inível a outros, localiza-se precisamente em uma combinação entre eles.
Mais desfaçatez aparece quando vemos a argumentação dos arautos do estado mínimo, por desprezarem o papel da política econômica nas áreas fiscal (gasto e tributos) e monetária (crédito ao empreendedorismo). Mesmo que o estado servisse apenas para, digamos, promover a segurança nacional e a diplomacia, ingressaríamos no debate sobre como financiar esse gasto. Mas, já que existe inarredável necessidade de tributação, começa-se a pensar sobre a conveniência de usar impostos diretos ou, por contraste, indiretos. Além disso, também devemos cogitar da conveniência da expansão dos atributos do estado, provendo o consumo de bens de mérito (insulina) e reduzindo o dos bens de demérito (aguardente).
Haverá maior desfaçatez do que a ação do senado federal de tornar Dilma ré? Ré de um crime de ficção, um crime controverso, um crime não-crime, uma acusação que não resiste a foros da decência. E que mostrou novamente a troca de favores do governo interino com os senadores, a influência do executivo sobre as verbas orçamentárias a distribuir aos senadores, também exibindo o caráter de políticos que se acovardaram, impedidos de pronunciar a palavra golpe.
É por tudo isso que, ao vermos as sucessivas medidas adotadas pelo programa de governo de Aécio-Temer, somos forçados a pensar em desfaçatez, devendo – ato contínuo – pensar nas formas de desmascará-los. Precisamos contribuir para que o povo tome consciência de suas precárias condições de vida num país de tão severas desigualdades. Como proporções da população, há mais ricos do que pobres vivendo como nababos, contrastando com a multidão formada mais por pobres do que por ricos vegetando nas prisões nacionais. Não há saída: a partir de suas precárias condições de existência é que deve surgir a organização destinada a preservar o lulismo contra sua substituição conservadora e golpista.
O império da sucata e a soberania nacional 3x563d
Fernando Rosa – jornalista
Em janeiro de 2009, o embaixador dos EUA no Brasil Clifford Sobel enviou telegramas ao governo Norte-Americano com duras críticas ao Plano Nacional de Defesa do Brasil, anunciado em dezembro de 2008 pelo presidente Lula, segundo noticiou o jornal Estadão, na época. A informação tinha como fonte um conjunto de telegramas vazados pelo site Wikileaks, também responsável por vazar trocas de informações entre o atual presidente Michel Temer e autoridades dos EUA. Segundo a matéria, o relato destacava a preocupação com “o interesse do Brasil em controlar tecnologia nos setores espacial, cibernético e nuclear”.
Os telegramas também evidenciavam a preocupação – e uma certa ironia – de Sobel com a palavra “independência” que, segundo ele, demonstravam a vontade do Brasil em controlar a produção de armamentos, e com prioridade para alianças com países que transferissem tecnologia. Sobel também destacava a preocupação dos brasileiros com as descobertas de petróleo no mar e a sua utilização como razão urgente para melhorar a segurança marítima. “Essa preocupação se fundiu à busca de duas décadas do Brasil por desenvolver um submarino nuclear, dando um novo ímpeto à pesquisa sobre um pequeno reator para propulsão naval”.
O embaixador norte-americano também manifestava contrariedade ao Plano pelo seu caráter mais amplo de visão e concepção de segurança nacional. Para ele, “algumas das propostas do plano têm menos a ver em melhorar a estrutura militar e mais com a integração da Segurança Nacional com o desenvolvimento do País”. Em sua “análise”, o plano batizado com o nome de “Paz e Segurança para o Brasil”, dava ênfase em benefícios sociais “em detrimento ao profissionalismo no serviço militar” com o objetivo de minimizar “a capacidade dos militares de se envolverem na área”.
Ao contrário das especulações do embaixador americano, e do tom de intriga perseguido, o Plano afirmava que “a disposição para mudar é o que a Nação está a exigir agora de seus marinheiros, soldados e aviadores. Não se trata apenas de financiar e de equipar as Forças Armadas. Trata-se de transformá-las, para melhor defenderem o Brasil”. Nesse sentido, o Plano definia que “projeto forte de defesa favorece projeto forte de desenvolvimento. Forte é o projeto de desenvolvimento que, sejam quais forem suas demais orientações, se guie pelos seguintes princípios:
a) Independência nacional, efetivada pela mobilização de recursos físicos, econômicos e humanos, para o investimento no potencial produtivo do País. Aproveitar a poupança estrangeira, sem dela depender;
b) Independência nacional, alcançada pela capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético e nuclear. Não é independente quem não tem o domínio das tecnologias sensíveis, tanto para a defesa como para o desenvolvimento;
e ) Independência nacional, assegurada pela democratização de oportunidades educativas e econômicas e pelas oportunidades para ampliar a participação popular nos processos decisórios da vida política e econômica do País. O Brasil não será independente enquanto faltar para parcela do seu povo condições para aprender, trabalhar e produzir.
A cada dia que a, mais claras se tornam as evidências do envolvimento externo nas operações golpistas – desde as ações de rua em 2013, ando pela Lava Jato, até o recente “encontro” de John Kerry com José Serra. As manifestações de rua tentaram reproduzir as “primaveras” golpistas, a operação Lava Jato mirou na Petrobras e no Pré-Sal, nas empreiteiras nacionais e no submarino nuclear. Ao mesmo tempo, os chefes do golpe apostam no alinhamento unilateral e suicida aos Estados Unidos, do que não deixa dúvidas a imediata visita do senador Aloysio Nunes (PSDB) ao Pentágono, logo após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo, é cada mais temerária a postura belicista norte-americana para impedir o desenvolvimento de países e regiões, do que são exemplos a destruição do Iraque e da Líbia, e as demais guerras no Oriente Médio. Os exércitos de China, Índia e Rússia, não por acaso três países do BRICS, por outro lado, junto com EUA e França serão as forças armadas mais poderosas do mundo em 15 anos, segundo publicação político-militar “The National Interest”. O que está em jogo, portanto, nesse momento, para os interesses nacionais, geopolíticos e militares, por certo, vai além dos temas da democracia e dos direitos sociais, embora fundamentais.
O povo brasileiro, em boa parte, nas ruas de todo o país, já demonstrou seu total repúdio ao golpe e aos golpistas interinos; enquanto outra parcela certamente reagirá ainda com mais vigor diante do “pacote de maldades” sociais previsto para o pós-impeachment, se vingar. O mundo, governos, lideranças intelectuais, políticos, artistas, até mesmo dos Estados Unidos, e a mídia internacional em sua grande maioria também identificam como um golpe de estado o que está em curso no país. A CNBB acaba de perguntar “para onde vamos?”, advertindo que “democracia é respeito à vontade do povo” e conclamando “ao diálogo e à busca de soluções democráticas que preservem as conquistas e os direitos do nosso povo”.
Em 1982, a Guerra das Malvinas sepultou a política de segurança nacional regional e mundial vigente até então, quando os Estados Unidos negaram munição à Argentina, deixando os argentinos à mercê da covarde e cruel agressão dos exércitos da Inglaterra. Da mesma forma o que os EUA pretendem agora, em ultima instância, é transformar o Brasil em comprador de suas sucatas e sobras de guerras superadas tecnologicamente. Pode ser uma ironia a visita do secretário de Estado John Kerry à equipe americana na Escola Naval, durante as Olimpíadas, no Rio de Janeiro, mas não tem nada de casualidade a perseguição e a absurda pena de 43 anos de prisão ao Almirante Othon, responsável pelo desenvolvimento do submarino nuclear brasileiro.
Nos anos 70, o general Ernesto Geisel já havia apostado na multipolaridade, ao abrir relações diplomáticas e comerciais com a China, e na independência tecnológica, ao romper o acordo de fornecimento de material bélico com os EUA, assinando o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que resultou nas usinas Angra I e II, dando início a moderna indústria bélica nacional. Em sua Política de Defesa Nacional, sancionada em 2005, pelo presidente Lula, o Brasil definiu que “a segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos se sentem livres de riscos, pressões ou ameaças, inclusive de necessidades extremas”. Neste momento em que tentam destruir o Poder e Estado nacional, assim como povo brasileiro, as FFAA não aceitarão o papel de “capitães do mato” do Império colonial, e honrarão a herança de Floriano Peixoto.
O Plano Nacional de Defesa
O risco de disrupção na estratégia de aniquilar o PT 45d17
Róber Iturriet Ávilla – Doutor em Economia, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística, diretor sindical do SEMAPI.
Além de tirar o PT do poder, os grupos mais conservadores querem banir o partido e tudo o que ele representa. Cabe a reflexão do que ocorrerá ao Brasil heterogêneo e desigual caso não haja um substituto à altura que, como a sigla, proponha apenas remédios e ajustes para maior justiça social e menor desequilíbrio econômico
Desde 2013 o Brasil vive momentos de tensão política e social. Indubitavelmente, o resultado desse processo foi uma derrota política retumbante do governo Dilma Rousseff, do seu partido, o PT, e da esquerda brasileira de uma maneira geral. Essa alteração é complexa e envolve uma miríade de variáveis, as quais podem ser categorizadas com profundidade. Análise essa que escapa dos objetivos deste pequeno texto.
Entretanto, é possível observar que houve uma derrota no campo das ideias e no imaginário da “opinião pública”, simbolicamente direcionada ao PT. De forma mais abrangente, é possível dizer que a esquerda brasileira perdeu corações e mentes no período recente. A despeito de seus enormes erros na condução do partido e dos governos, a transformação que se deu no poder foi paulatinamente construída pelos conservadores.
As ideias antagônicas foram constantemente plantadas, de maneira nítida a quem consegue enxergar além das obviedades: seja na mídia tradicional, seja nos partidos políticos, seja no enfoque pontual de problemas estruturais. É do jogo. A disputa de ideias e de versões é constante em qualquer sociedade minimamente sadia e organizada.
As disputas entre os “progressistas” e “conservadores” não conformam uma especificidade do nosso tempo e tampouco do Brasil. O PT apenas encabeçou um grupo que possui alguma articulação desde o PTB, pelo menos. Podemos chamar esse segmento de “centro-esquerda”, com enraizamento em setores populares. Quer dizer, não são grupos políticos e sociais que buscam acabar com o capitalismo, mas compreendem que existem distorções históricas e mesmo do próprio sistema que requerem interferências de políticas públicas e, portanto, do Estado.
No campo econômico, particularmente, tais grupos partem da visão de que é preciso correções na distribuição porque o livre mercado tende a concentrar a renda e a riqueza. Seja porque uns capitais são maiores do que outros, seja porque há assimetria na relação capital-trabalho, seja porque os países estão em estágios distintos de acúmulo de capital e, por consequência, de inserção tecnológica.
No caso do PT, ao longo dos últimos governos, houve uma identificação de grupos populares com as políticas implementadas, como as de transferência direta de renda, elevação do salário mínimo em termos reais e políticas de o à educação superior. Sejam esses grupos mais ou menos conscientes disto, os 13 anos de governo “do PT” proporcionaram uma inclusão social nunca ocorrida no Brasil.
Ao redor do mundo, há segmentos mais à direita que também patrocinam tais políticas. Não por acaso, desde o século XIX, traços social-democratas nasciam na direita e no conservadorismo, o caso alemão é icônico. Remediar os pobres e ampliar direitos sociais, trabalhistas e civis era uma forma de garantir a estabilidade social em um sistema que reproduz cronicamente a desigualdade.
Sob outra perspectiva, pode-se dizer que dominar grupos sociais exige sacrifício. Aqueles que exercem o poder precisam de consentimento dos dominados. A dominação não ocorre mais através da força bruta, como era nas sociedades mais primitivas. Os dominados precisam se sentir beneficiados com o sistema para que haja estabilidade. Coloquialmente, essa ideia está na analogia de entregar alguns anéis e preservar os dedos.
Contudo, no caso brasileiro, os grupos políticos que emergem ao poder não parecem ter tais intenções. Os sinais autoritários são claros. Na proibição de protestos nos estádios, na tentativa de restringir o pensamento crítico que contesta a ordem social posta (sob o rótulo de “escola sem partido”) , na constante tentativa de criminalizar e desqualificar a esquerda, seus representantes políticos e intelectuais.
Além de tirar o PT do poder, os grupos mais conservadores querem aniquilar com o partido e com tudo o que ele representa. O Ministro do STF Gilmar Mendes chegou a ensaiar um pedido de cassação do partido, tal qual ocorreu com os “comunistas” após o golpe de 1964. Eles não querem adversários que contestem seu poder, sua ordem e o modus operandi na Terra Brasilis.
Suas intenções no campo da organização são igualmente claras: privatizações, perda de direitos sociais e trabalhistas, enxugamento das políticas públicas como saúde, educação e assistência social, redução de salários, congelamento de gastos e sepultamento da constituição de 1988.
A derrota do PT parece irreversível. É bastante provável que haja uma disputa nas esquerdas pelo seu espólio, ou mesmo internamente, caso o partido sobreviva. Cabe a reflexão, entretanto, do que ocorrerá caso o partido seja banido e não haja um substituto à altura. Ora, o partido nunca foi revolucionário e sempre esteve de acordo com a ordem posta, ele propõe apenas remédios e ajustes para que haja maior justiça social e menor desequilíbrio econômico. É um partido que representa a conciliação de interesses, a partir da voz dos trabalhadores e dos mais excluídos. Sem esse campo político, sob o nome de “PT” ou sob outro agrupamento, a possibilidade de conciliação é mais difícil.
O Brasil é um país bastante heterogêneo, desigual, com um ivo social de 388 anos de escravidão, com periferias imensas nas principais capitais. É preciso ter em mente que 50% da população recebe menos de R$ 1.300,00 mensais! Na derruba recente, os grupos populares não saíram em massa às ruas para defender o governo, possivelmente por insatisfações diversas, já sentindo os efeitos do austericídio de 2015.
A partir do momento em que esses grupos sentirem na pele o que representa o aniquilamento da esquerda e sem uma direita consciente de que é preciso atender aos dominados, os riscos de disrupção social não são pequenos. Indaga-se se o caminho escolhido pela elite brasileira de destruir seus adversários é mesmo inteligente. Aniquilar a voz e os direitos dos dominados pode ter efeitos deletérios sobre os interesses de quem executa essas articulações.
Artigo originalmente publicado no site Brasil Debate
O xadrez dos movimentos radicais de uma democracia incompleta 226y45
Luis Nassif
O Brasil é o país dos extremos, vítima de movimentos pendulares radicais.
Determinadas tendências vão se radicalizando pela inércia, sem que sejam contidas por fatores moderadores. Quando assumem proporções intoleráveis, são sucedidas por movimentos contrários que, primeiro corrigem os excessos anteriores para, depois, promoverem sua própria radicalização. E não há freios, amortecedores para reduzir a intensidade desses movimentos.
Se alguém afirmar que o governo Dilma foi dos mais desastrosos da história, não vou discutir. Mas um sistema institucional robusto teria que dispor de instrumentos para ar incólume pelo desafio Dilma, permitir ajustes sem abrir espaço para aventuras golpistas. E o golpismo impediu os movimentos corretivos de Dilma.
A crise atual lança luzes sobre um conjunto de vulnerabilidade o da sociedade brasileira, permite identificar as correções a serem feitas, mas não se vislumbram agentes econômicos, sociais ou políticos para cumprir a função moderadora.
O subdesenvolvimento é uma construção de gerações, já se dizia.
Chave 1 – Agentes moderadores das políticas públicas
Os movimentos de política econômica costumam ser pendulares. A oposição torna-se governo criticando os exageros da política anterior. Há um movimento inicial, virtuoso, de correção de rumos, de trazer o pêndulo para o centro. Na medida em que se tem sucesso, o movimento tende a radicalizar para o outro extremo. Ou seja, o próprio sucesso do modelo planta as sementes dos exageros posteriores.
Com a eleição de Dilma Rousseff, após as ações anticíclicas vitoriosas de 2008, havia a esperança de que o país estaria imunizado contra movimentos radicais voluntaristas.
O que se viu foi o poder solitário de uma presidente produzindo um conjunto de medidas voluntaristas não tão drásticas quanto os vizinhos, mas suficiente para desmontar a economia, expondo o governo a uma oposição destrutiva.
Como conseguir o equilíbrio? A imprensa não tem capacidade ou maturidade para exercer esse papel moderador. Há décadas é presa ao refrão único dos juros altos, livre fluxo de capitais, Estado mínimo, alergia a qualquer forma de aprofundamento da democracia. É uma imprensa do nível da venezuelana.
Um Conselho Superior de Economia não só coibiria os exageros, como qualquer mudança de rota. Portanto, não seria aconselhável.
O grande problema do presidencialismo brasileiro não é apenas a dispersão de partidos. É também o poder absoluto do presidente. Quase tão absurdo quanto o golpe foi a atuação individual da presidente, inibindo a atuação de conselhos populares, de fóruns empresariais, não concedendo audiências a representantes de outros poderes e sequer se alinhando com seu próprio partido.
O ideal seria partidos políticos programáticos, com ideias claras sobre a economia e, principalmente, instrumentos para conter ímpetos voluntaristas dos seus candidatos eleitos.
O mínimo que se espera é que os atos do presidente sejam analisados, avalizados ou não, pelo seu partido ou base de apoio. Hoje em dia, nem partidos há.
A grande dicotomia a ser vencida é, de um lado, criar ferramentas que subordinem o presidente ao programa do partido e canais de participação técnica e popular. De outro, não inibir seu protagonismo.
Chave 2. O papel desestabilizador das corporações públicas.
O grupo que se apossou do poder – Michel Temer, Eliseu Padilha, Romero Jucá, Moreira Franco, Geddel Vieira Lima e Eduardo Cunha – deve sua vitória ao Procurador Geral da República Rodrigo Janot, ao Ministério Público Federal em geral e ao Tribunal de Contas da União. Eles foram os agentes finais, que ajudaram a desequilibrar o jogo, que colocaram a caneta mais poderosa da República nas mãos de Temer e Padilha, com um protagonismo político inaceitável em qualquer país civilizado.
Pior, o corporativismo impediu o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) de exercer o papel moderador. A procuradoria de coalizão – fruto da escolha do procurador mais votado para a PGR – faz com que os candidatos cada vez mais se afastem dos valores constitucionais do Ministério Público e se aproximem da ansiedade por poder da massa da corporação.
Por outro lado, sem o mecanismo da eleição direta para a lista tríplice, corre-se o risco de se voltar ao tempo do Ministério Público engavetador.
De alguma forma, se terá que encontrar o meio-termo, ou através da formação de um Conselho de Notáveis, com as figuras referenciais do próprio Ministério Público que, mesmo não tendo poder de veto, possa exercer moralmente um papel moderador.
É inacreditável que um poder, a PGR, que se vangloriava de contar com altos conselhos técnicos para qualquer tema, não tenha conseguido montar uma identidade simples:
Poder Executivo – Dilma Rousseff = Michel Temer + Eliseu Padilha + Geddel Vieira Lima + Moreira Franco + Eduardo Cunha = – Poder do MPF
Chave 3. A leniência com a ilegalidade
O jogo anterior à Lava Jato estimulava o malfeito. Apelações infinitas, uso indiscriminado do fruto podre para anular inquéritos, sentenças jamais cumpridas.
Aí o movimento pendular se inverte.
Os vazamentos de inquéritos sigilosos, com propósitos políticos, tornam-se uma constante. O uso de inquéritos policiais para represálias políticas, um novo normal. O uso abusivo de poder de Estado de qualquer procurador iniciante, representando contra grupos políticos, solicitando prisões midiáticas, vazando informações para a imprensa am a ser aceitos como normal. A incapacidade do STF de confrontar os abusos, infelizmente, tornou-se uma constante.
Ao tolerar vazamentos, o PGR Rodrigo Janot ajudou a criar um poder paralelo incontrolável, na parceria política mídia-procuradores. O que era uma prática coibida, considerada abusiva, torna-se o novo normal, inclusive na PGR.
Ao aceitar as gravações contra Delcídio do Amaral, o Ministro Teori Zavascki convalidou o grampo ilegal. E a falta de providências contra os vazamentos de escutas ilegais, no episódio dos diálogos da presidente, comprovou a subversão no sistema de hierarquia do Judiciário.
Os ataques montados pela parceria mídia-procuradores contra o Ministro Marcelo Navarro Ribeiro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), são de natureza pior do que os ataques apócrifos perpetrados contra a esposa do Ministro Luís Roberto Barroso, ou com a possível intimidação do Ministro Luiz Facchin, que praticamente imobilizaram o Supremo.
A história do “não é comigo” não cola. Esse quadro é de responsabilidade direta de Rodrigo Janot, Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, que permitiram que o STF asse a ter a cara de Gilmar Mendes e a se deixar conduzir pela Lava Jato. E menciono apenas aqueles dos quais se esperava algo.
Tem-se agora uma re-centralização política similar ao período da ditadura. Os estamentos brasilienses – Congresso, corporações públicas, MPF, Judiciário – avançando sobre o orçamento público, ao preço de arrebentar com a estrutura de despesas federais, saúde, educação, segurança, Previdência e outras funções de Estado.
Chave 4. O papel desestabilizador da Globo
Desde as campanhas de 2006 e 2010, ampliada pela campanha do mensalão, observou-se o papel deletério do cartelização da mídia. A cartelização produziu dois fenômenos opostos, mas correlatos. De um lado, a plena liberdade dos grupos oficiais de mídia para ass reputações, adulterar notícias, jogar vergonhosamente com a autoestima nacional, em episódios inaceitáveis para qualquer sociedade minimamente civilizada. De outro, uma ação pertinaz de esmagamento do discurso contrário, através de ações judiciais contra blogs e sites independentes..
A tendência dominante é o de enfraquecimento gradativo da mídia e aumento da atoarda representada pelas redes sociais. Mas o papel das Organizações Globo tornou-se uma questão de Estado. Sua influência sobre a opinião pública, o Judiciário e o Ministério Público criou um território indevassável, que conseguiu bloquear até a cooperação internacional do MPF com o FBI, nas investigações do caso FIFA, ou das contas no escritório Mossak Fonseca.
A regulação econômica da mídia e o uso correto das concessões públicas tornaram-se uma questão de sobrevivência da democracia brasileira.
PS – Agora à noite, ao solicitar que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) também investigue as contas de Aécio Neves, “por uma questão de isonomia”, a Ministra Maria Thereza de Assis Moura comprova a superioridade de gênero: mulher, fez o que Ministro nenhum tem ousado fazer, com receio da agressividade inaudita e do uso da mídia por Gilmar Mendes, deixando o Judiciário refém da falta de limites.
Publicado originalmente no site – site GGN – O jornal de todos os jornais