A população se apresenta na política brasileira 1h5d1r

No Brasil a sociedade aparece com sua população bastante irreverente. Grandes manifestações, início de articulação entre diversos setores sociais e o começo da construção de propostas políticas mostram aspectos neste sentido. É significativo que os alunos secundaristas de São Paulo, com a ocupação de escolas, conseguem obrigar o governador a derrubar o Secretário de Educação. O Governo Federal “fechou” e depois “abriu” em menos de dez dias o Ministério de Cultura, também em decorrência de pressões semelhantes. Hoje a participação do cidadão é decisiva para a construção de uma alternativa consistente ao país. 5c5a64

Mudou muito a estrutura e a dinâmica da sociedade. O simples crescimento contínuo do país como um todo e a política progressista que seu governo apresentava não respondem mais às exigências do momento. É necessário definir novas e profundas soluções ao seu desenvolvimento. O caminho da política conservadora é o golpe de Estado. Para a população a solução só com Democracia.

Hoje o domínio do capital financeiro é muito agudo sobre as Relações de Produção e impõe mudanças profundas nas Relações de Trabalho, Condições de Vida, Política, valores da Ideologia e Cultura. A exploração atual da mão de obra faz a resistência dos trabalhadores ficar fragilizada. O tempo de emprego do trabalho é curto, dispensável e exige qualificação profissional, o que gera concorrência através da utilização da tecnologia e do aumento do desemprego.

Mas outros fatores conduziram a este confronto. Com a aceleração do êxodo rural nos anos de 70 a 75, um terço da população do país se deslocou do campo para as concentrações urbanas e gerou graves alterações. A ditadura só respondeu com repressão e até hoje as respostas a estes desequilíbrios nas cidades e aos prejuízos da população são insuficientes. Hoje as Condições de Vida são fundamentais na inserção social dos brasileiros e determinantes para alcançar o Mercado de Trabalho. Este fator impõe definições e objetividades rápidas e precisas na vida dos cidadãos. Um elemento básico para as reações críticas das mobilizações sociais.

As manifestações “Fora Temer”, são imensas e continuadas. É o foco atual. Os objetivos maiores são no sentido de construirmos um “Sistema da Democracia”, com estrutura e valores participativos que respondam ao tipo de desenvolvimento de toda a sociedade. Os eventos públicos anteriores eram bastante grandes e realizavam uma disputa política entre os que propunham a queda da presidenta Dilma e os que a defendiam. O elemento inicial era só para enfrentar a corrupção. A ida às ruas realizava um debate na sociedade e cada vez mais ficou a necessidade do desenvolvimento com democracia.

É de alguns anos a origem destes movimentos sociais com forte significado político como agora. Para reiniciar a construção da Democracia tivemos as enormes manifestações “Diretas Já”. Não alcançou vitória em sua proposta naquele ano, mas modificou a escolha para presidente da República logo adiante. Antes, no final da década de 80, as grandes greves de trabalhadores em todo o Brasil foram decisivas para derrubar a ditadura, fortalecer os sindicatos e importante para a construção de um caminho popular em todo o país.

No ano de 2013 surgiu com espontaneidade um poderoso movimento, ainda pouco analisado, que alcançou dimensões enormes. O elemento inicial deste confronto foi o preço das agens de transporte público das cidades brasileiras. Em sua evolução houve uma ampliação grande com outros temas. Em relação ao deslocamento urbano surgiu um significativo desdobramento na proposta para “Um novo Sistema de Transporte”. Não ficou reduzido só à habitação/trabalho, mas ampliado ao direito de deslocamento em toda a área urbana e a todo o tempo.

Nos movimentos sociais recentes os partidos políticos não alcançaram uma significativa liderança. O candidato conservador a presidente da República e o governador de São Paulo foram vaiados pela população de suas tendências. Esta rejeição não ocorre nas manifestações progressistas. É necessário, entretanto, observar que foi realizada a unidade de muitas forças partidárias e as de representatividade social. Não é no momento a liderança só de um partido.

Muitas considerações alternativas têm aparecido em vários países. A organização política do PODEMOS na Espanha é um exemplo. Também são feitas observações à França que apresenta fortes confrontos dos ses com o governo que apresentou projeto de lei ao Congresso prejudicando a renda dos trabalhadores.

Existe a pergunta de como realizar maior participação dos moradores dos bairros da periferia urbana e também a articulação dos diversos setores atualmente em disputa social e muitos outros a serem incorporados. Bastante foi discutido sobre o sistema de representatividade no sistema político nacional. No atual momento é essencial também acrescentar a participação com poder de decisão direta da população. É fundamental propor a democratização de toda a sociedade e não limitar ao Estado.

Comportamento autoritário! 5z5t52

Voltamos a viver tempos de personalidades autoritárias e, no extremo, de fascistas e fundamentalistas violentos. Nas redes sociais o fenômeno se alastra e, como uma onda, ou um tsunami, arrasta a todos para um campo minado e perigoso.
Quem é e o que caracteriza a personalidade de atitude autoritária?
São pessoas que se apresentam do “bem”, que não desconfiam que seu ponto de vista é apenas o ponto de vista de um ponto, achando-se portadores de alguma revelação ou verdade especial. Apresentam-se do “bem”, e por isso estufam o peito em atitudes preconceituosas, falando abertamente contra negros, homossexuais, índios e pobres, como se essas categorias de humanos encarnassem algum mal a ser combatido.
Até pouco tempo o autoritário e intolerante estavam recolhidos ao armário da ignorância. Agora eles perderam a modéstia. Saíram do armário, com algumas frases prontas de algum outro autoritário inteligentinho, repetindo mantras de auto-justificação do tipo: “o politicamente correto não me representa”; “a esquerda usa negro, gays e pobres como massa de manobra”; os defensores dos direitos humanos são defensores de marginais”; “o politicamente correto é careta” etc.
A personalidade autoritária ouve pouco e, se houve, não escuta. Escutar é se colocar em atitude de abertura e acolhimento da voz e apelo que vem do outro. O autoritário nega-se ouvir, e nega-se sobretudo escutar. Finge ouvir e escutar, mas vive um diálogo esquizofrênico com a solidão, colocando-se numa posição prévia eivada de pré-conceitos. Entra em qualquer ambiente e discussão com pré-conceitos que não se sustentam à luz da razão e, por conta disso, se alguém rebater, vai logo para o ataque pessoal.
O autoritário que pouco houve e nada escuta, odeia e nega o diálogo, pois o diálogo desnudaria a sua insegurança e pretensão de já possuir o que só o diálogo verdadeiro pode descortinar: a verdade! O autoritário é cheio de verdade e vazio de dúvidas. Sem dúvidas, pra que dialogar?
É por isso que o autoritário ataca não as ideias do outro, mas ataca a moral e a pessoa do outro. O autoritário e intolerante não quer só vencer o outro, pretende eliminar o outro. Ele se afirma na morte do outro enquanto outro, não lhe permitindo que se expresse como tal. Por isso que daria para dizer que a postura autoritária é infantil, e mais do que isso, doente. Saudável é manter o outro como outro porque é do outro que emerge e se constitui o eu. A morte do outro sempre será empobrecedora, medrosa e patológica. Desejar a morte do outro é o que há de mais genuíno do homem bárbaro. Vivemos tempos de volta à barbárie!
A questão é: como tirar da barbárie para a civilização um homem que vive na civilização com os meios da civilização, desfrutando seus ganhos, mas negando-se a aceitar as regras do jogo civilizacional? Até onde a tolerância com o intolerante é saudável e faz parte do jogo democrático e até onde ela ultraa o limite do tolerável? A violência do autoritário se vence com dialética, com o diálogo, com a razão argumentativa, ou com as mesmas armas da ignorância que ele maneja? Se perdermos a esperança e fé na razão, já só um deus poderá nos salvar!
 

Meritocracia 6b6365

Meritocracia: eis uma palavra que temos ouvido bastante nos últimos tempos. Como conceito, a meritocracia tem sido usada, por um lado, para avalizar, no campo sociológico e ético, o neoliberalismo enquanto solução econômica e estrutural para o país; por outro lado, de forma complementar, a meritocracia surge ainda, reiteradamente, como argumento contra políticas públicas que almejem reduzir qualquer forma de desigualdade social.

Convidado para participar deste ciclo sobre Língua, Literatura e Autoridade, considerei que seria interessante usar o termo como objeto orientador de nossas considerações, pois me parece que poucas palavras têm mais força hoje, no ideário conservador e neoliberal, do que a noção de meritocracia.

Mas que noção é essa exatamente?

Procurando por uma definição de meritocracia pelo senso comum, encontrei, no site do Instituto Mises Brasil, uma matéria escrita, em 2015, por Joel Pinheiro da Fonseca, mestre em Filosofia pela USP (2014). O artigo de Fonseca, “Não é a meritocracia; é o valor que se cria”, serve muito bem à nossa discussão, visto que não só expõe sua visão (neo)liberal sobre o assunto, mas, em adição, parte exatamente do senso comum para tentar explicar (no caso dele, elogiosamente) o que é a meritocracia.

Fonseca inicia seu texto a partir de uma imagem, compartilhada nas redes sociais, em que se vê um homem velho sentado no chão, ao lado de uma bengala improvisada, pedindo dinheiro com a mão estendida. Nessa imagem, leem-se ainda os seguintes dizeres: “SEGUNDO A MERITOCRACIA QUE OS REAÇAS TANTO DEFENDEM ESSE HOMEM É POBRE PORQUE NÃO SE ESFORÇOU O SUFICIENTE”.

Essa crítica, posta na imagem, Fonseca nos afirma que ocorre porque alguns liberais defendem a ideia de que o mercado é gerido por uma lógica meritocrática. A desconstrução desse argumento, como o próprio Fonseca mostra, é muito fácil de ser feita. Ele diz: “[…] será verdade que o mercado premia justamente o mérito? Se for, caro liberal, então você está obrigado a defender que Gugu Liberato e Faustão têm mais mérito do que um professor realmente excelente e que realmente ensine coisas úteis.”

Para livrar-se desse problema, Fonseca defende duas ideias principais: (i) meritocracia não é algo inerente à lógica de mercado, mas, sim, um modelo de gestão (e não sem seus problemas e vícios internos, como o próprio autor ite); (ii) o mercado não premia o mérito, mas sim a geração de valor. Assim, um excelente professor é menos premiado do que Gugu ou Faustão pelo fato de que ele tem um alcance muito pequeno (algumas centenas de alunos por ano), ao o que essas celebridades teriam um alcance muito maior e gerariam muitíssimo valor para seus empregadores.

Apesar dessas distinções que Fonseca opera em seu texto, permanece uma confusão conceitual. Por um lado, ele diz que a lógica do mercado não é a de premiar o mérito, mas sim a de premiar a geração de valor. Por outro lado, usando uma comparação com a qual estamos dispostos a concordar (Gugu/Faustão vs algum ótimo professor), Fonseca faz um malabarismo com a noção do que é “mérito”, sem jamais definir o que seja. Ele inicia seu próprio texto exatamente nessa incerteza, dizendo: “Meritocracia é uma palavra bonita. Não. É uma palavra que remete a uma coisa bonita: que cada um receba de acordo com seu mérito, que em geral é igual a esforço, dedicação; às vezes se inclui a inteligência.”

Como Fonseca jamais define o que entende por mérito ou meritocracia, devemos tentar abstrair uma definição a partir do exemplo por ele usado. Na comparação entre Gugo/Faustão e algum excelente professor imaginário “que realmente ensine coisas úteis”, ficamos dispostos a concordar, pela ideia de excelência e utilidade, que o professor é mais meritório, ainda que tenha um menor salário. Fonseca cria, desse modo, uma equação que pode ser resumida da seguinte forma: a geração de valor é igual à qualidade do serviço/produto multiplicado por seu alcance. Assim, ainda que concordemos que o professor seja mais meritório do que os apresentadores de TV, visto que o serviço que ele presta tem melhor qualidade do que o daqueles, precisamos concordar também que a geração de valor dos apresentadores, no sentido financeiro, seja superior à do professor, pois dão muitíssimo mais lucro em virtude de seu alcance.

Com isso, Fonseca nos leva a crer que mérito, então, tenha a ver apenas com uma parte da equação, a qualidade do serviço ou do produto que oferecemos, sua excelência e utilidade. Se esse serviço ou produto não alcança ninguém (seja por indisponibilidade de oferta ou por falta de interesse em consumi-lo), nossa geração de valor será nula, mesmo que sejamos meritórios.

Assim, somos levados fazer a seguinte substituição:

de

geração de valor = qualidade do serviço/produto x alcance,

para

geração de valor = mérito x alcance.

Entretanto, com esse salto, ocultamos um problema conceitual, que também Fonseca oculta em seu texto. Explico.

Pensemos no exemplo de um artista cujas obras ontem eram ignoradas, mas hoje são descobertas como verdadeiros tesouros. Ontem, ninguém tinha interesse em comprar um de seus quadros; hoje, todos querem. Cada um desses quadros, enquanto objeto ível de ser possuído individualmente, permanece com o mesmo alcance, 1. Entretanto, para quem vende esses quadros, sua geração de valor é imensamente maior. Se o alcance não mudou, teria mudado então a qualidade?

Certamente não. O quadro permanece o mesmo. Suas qualidades são as mesmas. O que mudou foi o valor que atribuímos a essas qualidades. Logo, somos forçados a itir que mérito não é idêntico à qualidade de um serviço ou de um produto, mas, sim, ao valor que se atribui à qualidade daquele serviço ou produto.

Numa sociedade moldada pelo fetichismo, como a nossa, da noite para o dia, um produto ou serviço pode ter um enorme salto de valor, pois, mediante propaganda e manipulação da opinião pública, a percepção do que seja sua qualidade pode ser facilmente alterada. Ao mudar-se a percepção do que seja a qualidade desse produto ou desse serviço, muda-se também seu valor. A melhor acepção, portanto, que podemos dar à palavra mérito, dentro desse contexto, é a de valor.

É interessante, aliás, notar que mérito vem do Latim meritum, um derivado do verbo mereo, que indica a ideia de ser digno de algo. A partir dessa ideia inicial, mereo a a ter outras derivações de sentido, para expressar também o ato de receber algo ou mesmo de comprar algo. De mereo, herdamos a palavra meritum, que indica aquilo de que alguém é digno, por uma equivalência de valor. Você é digno de uma recompensa, de ter seu terreno, sua casa, ou o que for, por haver uma equivalência de valor entre sua pessoa e a coisa em questão.

Na equação que encontramos dentro do discurso de Fonseca, dissemos que a geração de valor (ou seja, o quanto de dinheiro as pessoas lhe pagam pelo que você faz) equivale ao mérito de seu serviço ou de seu trabalho (ou seja, o valor que se atribui a esse serviço ou trabalho) multiplicado pelo alcance que ele tem (ou seja, quantas pessoas pagarão por ele).

Ao dizer que a meritocracia é, na verdade, um modelo de gestão em que se premia o mérito de cada um, Fonseca parece dar a entender que ela é algo alheio à lógica do mercado. Devemos supor, então, que o mérito idealmente premiado na meritocracia seja diferente daquele encontrado na fórmula de geração de valor? Se é a geração de valor que orienta o mercado, como não seria também a geração de valor aquilo que a meritocracia premiaria? Mesmo quando se premia o mérito potencial de alguém, independentemente de seu alcance, não se faz esse prêmio justamente pensando no alcance que o trabalho desse indivíduo pode ter? Ou se um empregador premia um funcionário pelo alcance de seu trabalho, esperando qualificá-lo para melhorar a qualidade de seu serviço/produto, seu mérito, isso também não está inserido na mesma lógica descrita por Fonseca, que visa otimizar a geração de valor?

Para além do senso comum, o que Fonseca não nos diz é que o termo meritocracia foi cunhado em 1958 por Michael Young, em seu livro The Rise of the Meritocracy, a partir do termo latino meritum, que em Português nos legou “mérito”, e o termo grego κράτος (krátos), “força”. Apesar da adoção positiva que a palavra teve tanto em Inglês como em Português, é importante notar que ela surge, no livro de Young, dentro de um ambiente satírico, ambientado em uma sociedade distópica obcecada em identificar e premiar, desde cedo, por meio de uma educação especial, as pessoas mais inteligentes e esforçadas.

Pouco antes de morrer, em 2002, Young escreveu um artigo para o jornal The Guardian falando de sua frustração em ver como a ideia de meritocracia foi usurpada por pessoas como o então primeiro-ministro Tony Blair, que a usavam como um ideal a ser perseguido. A argumentação de Young nesse momento, já no fim da vida, era a de que, tomada da forma como foi, a ideia de meritocracia apenas serviu para fazer com que as pessoas que já detinham riqueza e poder se sentissem ainda mais legitimadas em recompensar-se tanto quanto possível.

A ideia do sociólogo inglês, que já era distópica em sua forma original, foi aproveitada de forma parcial e ainda mais distopicizante: adotou-se a recompensa do mérito e ou-se a alienar cada vez mais as massas de um o à educação e aos processos que selecionariam os mais inteligentes e esforçados. Reitero: mesmo se tivesse sido adotada do modo que Young a descrevia, a meritocracia era algo reservado para um futuro distópico. Adotadas a palavra e a ideia como foram, a realidade se tornou pior do que o pesadelo ficcional.

Sendo valor uma unidade subjetiva, dependente da opinião das pessoas, devemos entender a meritocracia simplesmente como o processo de reforço e manutenção de uma determinada ordem de valores. Os liberais, como Fonseca, acreditam que essa ordem de valores é imposta ao mercado por demandas racionais das pessoas, ignorando o poder que o mercado tem, por meio da publicidade, da propaganda, das formas de arte que ele próprio fomenta, de definir esses valores, bem como de levar as pessoas a tomar escolhas irracionais.

A meritocracia como a temos nada mais é do que o foco extremo em premiar cada um pelo seu mérito, entendido como valor dentro de uma equação de geração de valor, ignorando os processos pelos quais definimos esses valores. Mais do que isso, ousaria dizer que a meritocracia é exatamente o domínio da determinação de valores. No mundo meritocrático, aqueles que conseguem dobrar a opinião dos outros, que conseguem alterar a ordem de valores a seu favor, são exatamente os mais poderosos.

A meritocracia é o poder do valor.

Epílogo

A Grécia antiga foi um dos primeiros lugares no mundo em que alguém fincou uma pedra ou uma estaca no chão e disse: “este terreno é meu”. Esse acontecimento, aparentemente banal, dá origem a algo revolucionário: a partir disso, sugiram as primeiras cercas e a própria ideia de propriedade privada, ainda no neolítico, por volta de 9.000 anos atrás.

Esse o está intimamente ligado com o desenvolvimento da agricultura e com a necessidade de assentar-se em um lugar e protegê-lo, para cultivar a terra, em oposição à vida nômade de caça e coleta. Essa mudança de modo de vida, como aponta Joseph Campbell, ilustre estudioso de mitologia comparada, conduz também a uma mudança de modo de pensar, de concepção de mundo, de mitos e crenças que expliquem o funcionamento da realidade e o sentido da existência. Tais mudanças, como podemos esperar, efetuam-se no plano da linguagem, onde deixam marcas sensíveis.

Curiosamente, a mesma raiz de mereo, o verbo latino que nos legou mérito, também existe em Grego, onde dá origem, por exemplo, à palavra μέρος (méros), que designa a porção devida a cada um. Esse termo vem do verbo μείρομαι (meíromai), dividir. A mesma raiz dessas palavras origina também a palavra μοῖρα (moîra), que por vezes traduzimos por “destino”, “sorte”, “fado”, “quinhão” ou “lote”. A palavra μοῖρα refere-se à distribuição do destino individual dado a cada indivíduo. A tradução de μοῖρα por lote é especialmente interessante, por ligar a ideia de um destino dado também à ideia de posse territorial, pois chamamos um terreno cercado também de lote. Assim, lote pode se referir tanto à terra como ao destino que se tem. Essa tradução ajuda a evidenciar como o destino de uma pessoa está intimamente ligado à porção de propriedade que lhe é cabida, à sua μεριτεία (meriteía) – termo que designa a “distribuição de terra”. Quem não tem terra, por essa lógica, não tem destino.

Se compreendêssemos meritocracia pela acepção grega, teríamos a ideia de poder da propriedade privada. Seria apenas uma terrível casualidade se essas duas ideias, mérito e propriedade, não tivessem sempre andado de mãos dados na história da civilização ocidental. Afinal de contas, quem detém a terra detém também o poder e a capacidade de atribuir valor a cada coisa.

Referências

FONSECA, Joel Pinheiro da. “Não é a meritocracia; é o valor que se cria”. Artigo de 20 de outubro de 2015 para o Instituto Ludwig von Mises Brasil. Disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2054. o em 20/05/2016.

YOUNG, Michael. “Down with meritocracy: The man who coined the word four decades ago wishes Tony Blair would stop using it”. Artigo de 29 de junho de 2001 para The Guardian. Disponível em http://www.theguardian.com/politics/2001/jun/29/comment. o em 20/05/2016.

__________. The rise of the meritocracy, 1870-2033: An essay on education and inequality. London: Thames & Hudson, 1958.

Leonardo AntunesC. Leonardo B. Antunes Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras da UFRGS. Palestra proferida no Ciclo: Língua, Literatura e Autoridade: um revide ao golpe, em 08/06/2016, no Instituto de Letras.

A Cultura do estupro está no Congresso: bancadas conservadoras e os mitos ligados ao feminino 231l5o

O risco de retrocesso de décadas que estamos vivendo nesse momento é imenso, preocupante e mesmo desesperador para quem, como eu, tem lutado para avançar ainda mais, e não ter de lutar pelo que já é e já foi conquistado. Fica muito claro como Ernst Bloch, o filósofo utópico ligado à escola de Frankfurt, tinha razão: “Junto a cada esperança, há sempre um caixão à espera”, dizia ele. O caixão carregado pelos machistas, misóginos, reacionários, moralistas, cínicos, tolos, inocentes úteis, todos descompromissados com os valores da justiça, da igualdade e da solidariedade.
Exemplo disso – em meio a uma enxurrada de exemplos, especialmente depois que o interino assumiu através de um golpe na democracia – é a posição da nova secretária das mulheres, Fátima Pelaes, do PMDB, convertida a uma religião conservadora desde um naufrágio no rio Amazonas, em 2002 (típico, aliás, que a pasta que já teve status de ministério “caia” de posição para uma secretaria “subordinada” a um ministério chefiado por homens). Ela apoia o Estatuto do Nascituro e brada, aos prantos, que “nasceu de um estupro”. Ela e sua mãe têm direito a viver como bem entenderem, a terem filhos concebidos no horror da violência, se assim o desejarem; qualquer pessoa tem direito de viver segundo suas crenças e disposições pessoais. Mas ela não tem o direito de impor tamanho retrocesso a quem quer que seja.
Além do Estatuto do Nascituro, estão em tramitação no Congresso Nacional outros projetos de lei que afetam diretamente a todas as mulheres do país. O PL 5069/2013, por exemplo, proposto pelo trevoso e sabidamente corrupto Eduardo Cunha, coloca obstáculos ao atendimento das vítimas de estupro nas instituições de saúde. Tal projeto obriga uma mulher agredida, fragilizada, violentada e machucada a primeiro ter de registrar boletim de ocorrência na delegacia, ar pelo exame de corpo delito para só então poder ter o direito a ser atendida em uma unidade de saúde! Estou falando de casos onde a interrupção da gravidez é legal, como nos casos de estupro, anencefalia do embrião ou risco de vida da grávida por condições de saúde desta. Por isso trata-se de um retrocesso, de tornar a legislação mais restritiva.
A concepção de mulher que está por trás desse tipo de formulação é misógina, pois a toma como potencial mentirosa, ladina e que tenta “enganar” as autoridades mentindo que foi violentada quando na verdade teria tido um “comportamento promíscuo” e “depravado” (como já li em um comentário nas redes sociais), além de descuidado, que resultou em gravidez. E o descuido é sempre dela, o homem que a engravidou sempre desaparece da equação.
A Lilith perigosa e demoníaca, ou a serpente pérfida do mal, são mitos que emprestam sentido a certas representações da mulher, até os dias atuais. O real, meus caros e caras, é arquetípico. Nessa perspectiva, existe uma estrutura psíquica universal, presente em qualquer lugar ou cultura, em diferentes contextos sociais. O que se repete são os conteúdos, uma vez que as formas mudam conforme variam as formações culturais. Carl Gustav Jung, o grande psicanalista, escreveu que partilhamos no inconsciente coletivo “imagens primordiais”, conteúdos recheados de sentidos que a humanidade desenvolveu em milhões de anos, e vamos á-las conforme nossas circunstâncias existenciais e pessoais. Essas imagens e figuras podem remeter a temas mitológicos, aparecer em contos e histórias, lendas populares e crenças: são os arquétipos.
Aparecem nas cartas do tarô, bem como estão presentes em nossos sonhos e devaneios. E sustentam nossas crenças: a morte é um arquétipo poderoso e assustador, e amos a vida assombrados por ele. A santa, a ‘puta’, a virgem, a bruxa, a fada, a sereia (arquétipos ligados à figura feminina), o herói, o sábio, o ditador, o mago, o louco (ligados à masculina) etc. A lista de arquétipos é grande e cada um deles tem a sua carga e o seu poder. Talvez, em algum momento da vida, nos identifiquemos com muitos deles. Lembrando que, para Jung, todos têm uma dimensão feminina e uma masculina, pois no inconsciente do homem existe a presença da anima (o sentido feminino) e no inconsciente da mulher existe o animus (o sentido masculino), portanto os arquétipos todos nos habitam, independentemente do gênero sentido e praticado. Toda essa riqueza criativa determinou, aliás, sua ruptura com o mestre Freud, por incompatibilidade teórica!
Mas voltando ao nosso assunto, muitos mitos são tomados como definidores reais das mulheres, em sociedades conservadoras que tentam avançar nas transformações culturais emancipatórias e voltadas à igualdade. A Lilith ladina e perigosa, que “seduz” o “pobre” homem que cai nos seus encantos… ela é um demônio ligado à noite e aos ventos, nas tradições judaica e islâmica, tida também como a primeira mulher de Adão, inclusive sendo acusada de ser a serpente que levou Eva a comer a maçã (mas mesmo Eva, feita de uma costela, mais dócil e dependente, leva a pecha de ter desencaminhado Adão…). A prostituta usável, mas pouco confiável e descartável; a “mulher de Atenas”, Amélia que tudo a calada (esta foi cantada por Chico Buarque); a mãe santificada, assexuada e que é puro afeto, doação e nutrição: nomeie aqui seu arquétipo feminino predileto!
As religiões são todas povoadas de mitos e arquétipos, e não há a princípio nada de mal nisso; mas começa a haver quando elas se misturam com a política e se infiltram no Estado. Por isso o Estado tem de ser laico, ou seja, assegurar a liberdade de crença e prática religiosa, mas ele mesmo não pode ter nada a ver com religião! Nenhuma crença baseada em religião deve se misturar na gestão do Estado. Este precisa assegurar serviços básicos como saúde, educação, assistência social e segurança, todos baseados em critérios humanitários, filosóficos (bioéticos), científicos e políticos.
Portanto, para embasar políticas voltadas à saúde da mulher, há que levar em consideração campos como a epidemiologia, a psicologia e demais ciências sociais, a medicina, a enfermagem etc. Jamais arquétipos religiosos tomados como realidade política, isso é o mais completo absurdo e fere o princípio da laicidade do Estado. Este é uma instituição política, no sentido de gestão da Polis, a sociedade que regula e gere. Cidadãs e cidadãos precisam participar dessa gestão na esfera pública democrática, eleger seus representantes para câmaras, conselhos e senados, em todos os níveis, controlando como esses legislam e implementam políticas públicas que beneficiem a população. Esta é sua obrigação, aliás; o resto é obscurantismo, ignorância e fanatismo, sendo impostos de cima para baixo em uma sociedade aturdida – como a nossa hoje.
A mulher agredida e estuprada precisa ser acolhida com competência, humanidade, respeito e se possível carinho (algo que ela vai precisar), mas se impossível, apenas os três primeiros itens serão suficientes. Projetos no sentido contrário têm o meu mais completo repúdio e irei às ruas contra eles tantas vezes quantas forem necessárias, até derrubá-los. Nossas anteadas sufragistas comeram o pão que o diabo amassou nas ruas, com a polícia misógina em cima delas; não vamos ter medo agora que as coisas já avançaram um pouco. Pouco mesmo, deviam ter avançado muito mais, mas pelo menos hoje temos mais respaldo das leis (e da intelectualidade que não desistiu de melhorar o mundo).
São cinco mil mulheres mortas por ano, treze por dia, segundo dados da cartilha lançada pelo PSOL “A Luta das Mulheres Muda o Mundo”, publicação da Assembleia Legislativa de Porto Alegre (disponível aqui). A cada três horas uma mulher é estuprada no Brasil. Muitas vítimas não denunciam por medo, vergonha, solidão… Um crime sempre sem testemunhas, se a palavra da vítima não vale nada, tende a ser cada vez menos denunciado e mais subnotificado, levando à impunidade que o retroalimenta. Ou seja: esses projetos misóginos são mais um crime contra as mulheres no Brasil. Convido a todos e todas, para dizermos NÃO! Para gritarmos em uníssono, BASTA DE VIOLÊNCIA! Nos encontramos nas ruas e nas redes, espero vocês por lá.

Narrativas em combate 6q482x

O debate político do nosso século é muito diferente do que chamaríamos de debate político em um ado não tão recente. Nem por isso ele é mais inteligente ou mais pobre do que antes – como explicar a atitude ridícula de fãs de Bolsonaros que pedem golpe militar com s na Avaaz? É uma atitude que seria má explicada com palavras como “burrice” ou “fascismo”, que são as primeiras que vieram à minha mente. Por outro lado, é uma atitude que seria bem explicada com a palavra “bizarra”. “Uma atitude bizarra” é uma frase que diz mais do que “é uma atitude fascista”, pelo menos em minha opinião.

Retomando o fio da meada, e pegando o gancho de “o que diz mais” e “o que diz menos”, volto à questão da primeira frase deste texto: o que há de novo no debate político do século XXI?

Uma resposta satisfatória poderia render um artigo acadêmico ou uma tese de doutorado, dependendo da inspiração do autor. Mas como não quero cansar o leitor, vou direto ao ponto: o que há de novo no debate político é ele estar acontecendo a todo instante, em todos os lugares, de todas as formas, apaixonadamente ou não. A internet tira o monopólio do debate político das rádios e televisões e o trás para as mãos do cidadão comum. Toda notícia é compartilhada com os amigos junto com opiniões, que podem ir do clássico binarismo “sim ou não” até textos bem elaborados. A política está na nossa vida a todo instante – a menos que na sua timeline as pessoas só compartilhem fotos de cachorrinhos, o que também é legal.

A internet tirou o homem das relações sujeito-objeto e o colocou em uma posição anterior a essa relação. Estamos constantemente em um meio, mesmo quando achamos que estamos nas “pontas”. A internet é uma navegação infinita para lugar algum, embora os navegantes saibam exatamente para onde não ir: aonde não temos liberdade para continuarmos no meio, i.é., na internet, lá não estaremos!

Por isso, o ambiente online é o ideal para o jogo democrático de “dar e pedir razões” (usando o vocabulário do filósofo americano Richard Rorty). No nosso contexto atual, com uma crise política que torna constantemente mais difícil a vida daqueles que já têm respostas elaboradas, vale a pena fazer um breve estudo empírico da discussão política atual nos meios de comunicação e no que chamamos de “mundo real” (podemos deixar para a outro dia a discussão sobre a ideia de que ainda há alguma oposição entre real e virtual). A seguir, um rápido balanço das principais narrativas políticas que estão em jogo e que aparecem frequentemente nas redes sociais: a narrativa da esquerda governista, a da esquerda liberal e a da direita raivosa.

A narrativa da esquerda governista fala que existe um golpe em curso no Brasil, que o governo Dilma está caindo por culpa de um conjunto de agentes que conspiram em conjunto: o judiciário, o Ministério Público, a Globo, os empresários, os políticos, a Operação Lava Jato, a classe média, etc. Montou-se, basicamente, uma teoria da conspiração baseada em um forte apelo emotivo e em uma chantagem velada. Nada é explicitado com clareza, mas parece que o PT ainda representaria uma resistência às “forças capitalistas” que agora se voltam contra o partido.

É interessante notar que uma corrente minoritária da esquerda, representada principalmente por PSOL e PSTU, defende justamente que não há golpe em curso no Brasil exatamente porque o PT faz parte das forças capitalistas citadas acima. A queda de Dilma seria uma consequência inevitável da luta por poder que se trava no país sem foco algum na representação política.

Por outro lado, uma esquerda que surge no Brasil de viés mais liberal (por favor, não me diga que você não sabe que existe liberalismo de esquerda) não faz essa oposição entre “bem” (PT) e “mal” (o resto). Para essa corrente, o PT é o único responsável pela sua destruição, e se quisermos ficar ao lado da população, devemos lutar para que essa destruição termine de uma vez. Pois foi o PT que aderiu às práticas de corrupção, que ofereceu cargos para partidos de direita, que contribuiu para a matança de índios e quilombolas, que colocou o exército em favelas, entre outros tiros de canhão nos próprios pés. Por isso, Dilma cai merecidamente, Temer assume como consequência constitucional, também sem legitimidade, mas tudo isso faz parte de um mesmo movimento de “limpeza geral” que começa na vontade popular. O ideal seria o povo decidir por si mesmo quem deverá governar o país até 2018, sem imposições políticas ou constitucionais. Para que não me chamem de “isentão”, já digo que me encaixo nessa corrente, e escreverei sobre isso futuramente.

Por fim, a narrativa da direita raivosa: “#ForaPT, fim do Bolsa Família, morte aos comunistas, cidadãos de bem contra o Fórum de São Paulo”. É uma narrativa bem pobre, religiosa como a governista: encontre um demônio, eleja seu Deus protetor e comece a pregar. No caso, o demônio seria o PT, o Deus seria algum Bolsonaro da vida e os anjos seriam os “cidadãos de bem”. É simples e tosco, mas tem força.

Com exceção da última narrativa, que sempre nasce perdedora, é interessante colocar lado a lado todas essas narrativas e apontar suas incoerências. Se formos um pouco hegelianos, poderemos dizer que a história irá decidir qual narrativa será a vencedora. Por enquanto, só nos resta discutir, discutir e discutir. Só assim abandonaremos o dogmatismo da história.

 

O Brasil pelo qual lutamos: a propósito de crucifixos em tribunais 63v24

O tema aqui em pauta – a presença de crucifixos em tribunais – pode não ter qualquer relação com a situação política atual no Brasil. Gostaria de mostrar o contrário, a partir de um comentário de uma decisão recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Estão em jogo duas questões cuja discussão me parece fundamental para compreendermos e reagirmos ao quadro que tem como marco o governo interino presidido por Michel Temer: o Brasil que queremos vislumbrar e as formas de resistência a situações com as quais discordamos.
Em 2012, foi amplamente divulgada a decisão do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que ordenou a retirada de crucifixos e quaisquer outros símbolos religiosos das salas dos tribunais no estado gaúcho. Foram assim atendidas as demandas levantadas pela Liga Brasileira de Lésbicas e outras entidades feministas. Foi uma decisão inédita, uma vez que a tendência dominante no Judiciário brasileiro ia em direção contrária ou simplesmente considerava o assunto como de menor relevância. Agora em 2016, com repercussão muito menor, o CNJ, acionado por certos grupos, entre eles a Arquidiocese de o Fundo, revoga a decisão de 2012, com base em argumentos já expostos em momentos anteriores.
O principal dos argumentos para a manutenção de crucifixos em recintos estatais – como tribunais ou plenários de parlamentos – é que eles representam o papel do catolicismo na formação da nação brasileira. Esse papel é algo inegável. Com aspectos positivos e outros nem tanto. De toda forma, justificar dessa maneira a presença dos símbolos é optar por uma visão que consagra uma parte do nosso ado para falar da totalidade de nosso presente. O papel social do catolicismo é algo que pode ser reconhecido e contemplado por meio de instrumentos como as políticas de patrimônio e os conselhos de direitos. Templos e festas católicas têm sido objeto de tombamento e outras formas de patrimonialização. Expoentes católicos, ao lado de outros atores da sociedade civil, têm participado como membros de conselhos na área social, educacional, de saúde, etc. Por essas razões, não há necessidade de manter crucifixos em lugares como parlamentos ou tribunais para dar o devido reconhecimento ao papel do catolicismo na sociedade brasileira.
Diante disso, o que significa sua presença nesses recintos estatais? Significa optarmos por uma certa representação acerca do que seja o Brasil. Esses símbolos afirmam que o Brasil continua a ser cristão. O problema não está na afirmação em si, mas no que ela não nos deixa enxergar. Pois além de ser cristão, o Brasil é muitas outras coisas, mas os únicos símbolos religiosos que ganham o privilégio de serem vistos em parlamentos e tribunais são os crucifixos católicos. Em outras palavras, o Brasil que é representado pelos crucifixos não se define pela diversidade, e sim por uma imagem pretensamente homogênea, que recorre a uma condição do ado – o catolicismo que fez parte da formação nacional – para definir o presente. O Brasil dos crucifixos em recintos estatais corresponde, pois, a uma imagem semelhante àquela que vimos quando nos foi mostrada a foto do ministério formado por Temer. Em ambos os casos, temos um retrato muito parcial do que seja o Brasil do presente. É lamentável que um país que queira abraçar a diversidade como valor fique preso a imagens tão parciais.
Outro argumento levantado pelos que defendem a permanência de crucifixos em recintos estatais é de que sua presença não implica em coação sobre as consciências individuais. Os críticos da existência de crucifixos apontam que eles podem influenciar as decisões de juízes, parlamentares ou jurados. Concordo que essa alegação só às vezes corresponde aos fatos. Ela me parece tão limitada quanto a suposição – mantida pelos defensores dos crucifixos – de que estes podem inspirar legisladores e julgadores ou consolar réus. Mas a impossibilidade de supormos uma coação generalizada não anula a possibilidade de cidadãos específicos expressarem seu incômodo e seu desacordo com a presença desses objetos.
É importante deixar claro que desacordo e incômodo podem se fundamentar em motivos e condições diversas. Temos visto coletivos de feministas, defensoras de direitos sexuais, associações de valorização do ateísmo e do agnosticismo se posicionarem, em nome de certa concepção de laicidade, contra a presença de símbolos religiosos em recintos estatais. Mas um posicionamento na mesma direção pode ser percebido em grupos e pessoas religiosas. Por exemplo, há protestantes ou evangélicos que estranham o privilégio a um símbolo católico. E mesmo entre católicos, há os que pensam que crucifixos ficam melhor em outros lugares e que em tribunais e parlamentos acabam perdendo o sentido e a sacralidade que deveriam ter. Seria muito importante que esses religiosos descontentes tivessem suas opiniões mais enunciadas e disseminadas.
Em suma, há vários motivos para fundamentar desacordo ou incômodo com a presença de crucifixos em tribunais e parlamentos. Fica então a sugestão: que os dissidentes e incomodados expressem suas opiniões. Mais especificamente: que isso seja feito nos próprios recintos onde estão esses objetos durante as atividades para as quais são previstos. Se você for um jurado ou um advogado, expresse sua discordância e peça para o crucifixo ser retirado enquanto atuar ali. Se você for convidado a estar em um parlamento, expresse seu incômodo e o transmita aos vereadores, deputados e senadores. Talvez a insistência propicie o que o CNJ e outras instâncias se recusam a decidir. Pois aqueles que fazem questão de ter símbolos religiosos em tribunais ou parlamentos podem trazê-los em seus corpos – como muitos católicos fazem com crucifixos. E assim a todos fica assistido um direito sem privilégios.
No quadro atual, a resistência aos argumentos que defendem a presença de símbolos religiosos em recintos estatais ganha novos sentidos. Ela significa a afirmação de um Brasil plural, com um futuro que não se limita a repetir o ado. Ela significa a afirmação de nossa capacidade crítica, exercitada diante do que nos incomoda ou contraria, a mesma capacidade que nos faz refutar a legitimidade das medidas de um governo que atua como se não fosse provisório.

Carta aos apoiadores do golpe 2y3x9

Celi Regina Pinto
De março de 2015 até hoje, nestes mais de dois anos, muitas coisas se aram na política brasileira. 2015 refere -se às primeiras grandes manifestações a favor do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, os dias atuais referem-se às manifestações em favor da volta da Presidenta ao governo do país. E vocês estiveram presentes em muitos destes eventos, aos gritos, batendo as, usando palavrões. Vocês sempre estiveram lá. E agora? vocês ganharam? Estão contente com o resultado da cruzada das as?
Entre estes dois momentos foram muitos os eventos que resultaram no assalto ao poder por parte da banda podre do PMDB, segundado pelas eminências pardas de sempre, como o Senador Antonio Anastasia do PSDB, que há anos faz este papel na vida do neto de Tancredo Neves. E que agora repete seu trágico papel de moço bem comportado para salvaguardar os interesses escusos da ocasião. Era isto que vocês queriam?
A multiplicidade de eventos que resultou no assalto ao Planalto teve sempre popularidade. As manifestações no começo aconteciam nos bairros chiques das grandes cidades, mas levaram ao longo de dois anos, milhões de pessoas para as ruas. O que todos queriam vocês? Os grandes promotores dos eventos , que certamente não foram para as ruas, sabiam que o queriam: Rede Globo e FIESP. O que eles queriam era um governo que redesenhasse o capitalismo a se gosto. Simples como isto. A participação política destes dois atores foi sabiamente ideológica e precisou apenas de uma coleção de patos para se realizar, um grande, amarelo e de borracha no meio da Av Paulista, outros de gravata ou salto alto nos horários nobres da TV.
Ao lado de quem sabia o que queria, participou uma massa de pessoas de classe média alta, com uma falsa ideologia de classe, pois confunde seus privilégios pequenos burgueses oriundos de uma sociedade oligárquica e escravocrata com posições burguesas. Funciona muito bem como comissão de frente dos interesses da burguesia, mas esquece que os mesmos que os incomodam como companheiros de poltrona no avião, também compram serviços de toda a sorte vendidos por eles. São sempre os mesmos ao longo da História do Brasil, gritam contra a corrupção, mas parece que na verdade se revoltam contra o baile para o qual não foram convidados.
Houve também setores populares gritando a favor do impeachment. Como me disse outro dia um motorista de táxi : “eles não descobriram nada contra ela, mas que ela roubou, roubou”. Argumentei que se eles procuraram tanto e não acharam ela não deveria ter roubado. E ele me responde “é , eu nunca tinha pensado nisto” E este grupo representa muitas coisas, a frustração com a crise econômica, os próprios sonhos não realizados, uma indignação real com a corrupção e até um machismo primário contra a mulher Dilma Rousseff.
Mas mesmo assim, eu lhes pergunto: vocês venceram? e agora? Era com Temer e seus ministros acusados na Lava Jato que vocês sonhavam? O que vocês esperam de um governo que se coloca contra as leis trabalhistas, contra o SUS, contra a educação pública e gratuita, contra o direito das mulheres, contra o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo?
Vocês poderão me responder que não sabiam. E eu acredito, a Rede Globo sabia, a FIESP sabia, mas o povo nas ruas não sabia, porque vocês pensavam que estavam participando da política, mas vocês não estavam, porque não existe participação sem discussão, sem lideranças políticas, sem ideias, sem propostas, sem informação livre. Gritos, urros aços não são expressões da participação política democrática. São apenas gritos, urros e palavrões, muito adequados para os interesses dos grandes promotores.
Mas há lições a aprender, vocês têm de aprender a participar da política! Lamento!
Permitam-me dar-lhes um conselho, não façam nada, mas observem, observem muito, observem as ocupações pelos estudantes das escolas públicas no Rio Grande do Sul, observem o movimento dos Lanceiros Negros em Porto Alegre, observem as discussões nas reuniões dos muitos grupos organizados para defender a democracia no Brasil, observem os movimentos dos professores grevistas, observem o sindicato dos petroleiros, observem as aulas públicas acontecendo por todo o país, os manifestos escritos a favor da democracia, observem a Presidenta Dilma recorrendo o país e falando às pessoas, defendendo-se, colocando-se politicamente. Isto, só isto, observem!!!
Porque agora se está fazendo política. Vocês possivelmente estão com medo do que está acontecendo e desta vez vocês estão certos, vocês devem temer (com ou sem Temer), porque a democracia é um jogo difícil de ser jogado. E vocês vão ter de jogar este jogo e aí meus caros apoiadores do golpe gritos, urros, palavrões e aços é muito pouco. Só serve para botar um usurpador e uma gang de ministros suspeitos no poder, por pouco tempo!

Discurso político da mídia 626x3z

No imaginário popular, a informação trazida pela grande mídia, seja escrita seja rádio-televisiva, caracteriza-se pela objetividade e neutralidade. A própria mídia reafirma reiteradamente o caráter deontológico de sua atuação.
No entanto, a realidade é bem diferente. Todas as sociedades, inclusive a brasileira, são compostas de classes com condições de vida, interesses econômicos e visões de mundo antagônicos. Nelas, os aparelhos políticos servem predominantemente para permitir que setores economicamente dominantes mantenham seu poder, o que implica a possibilidade de subalternizar e explorar outras classes. As grandes empresas, essencialmente dedicadas ao lucro e que vendem informação, servem para manter essa “ordem constituída”.
Porém o lucro dessas empresas, que advém, sobretudo, da venda de publicidade e propaganda, repousa essencialmente na audiência. Audiência que representa igualmente uma imensa massa de eleitores e consumidores potenciais cujas consciências precisam ser moldadas. Para tanto, a mídia necessita apresentar os fatos de modo tal a convencer a maioria dessa massa de auditores, telespectadores e leitores da pertinência de certos fatos e de certas ideias.
Para atingir esse objetivo, toda a grande mídia, esse verdadeiro “poder não eleito”, tende a usar mais ou menos as mesmas técnicas: seleciona as notícias; enfatiza certos fatos em detrimento de outros; prestigia acontecimentos, discursos, eventos – dando-lhes muito espaço – ou, ao contrário, minimiza-os, apresentando-os sob forma de flashes intercalados com notícias de menor interesse, etc.
Mídia e linguagem
Nesse combate político, cultural e ideológico, a linguagem em geral [imagens, mímicas…] e a linguagem verbal em particular têm um papel central. Entre os recursos linguístico-discursivos usados, um dos mais relevantes – e que engloba muitos outros – é o fato de ela produzir e reproduzir uma linguagem e um discurso “de massa”, empobrecido, no qual, sobretudo, palavras semanticamente complexas são usadas apenas com um de seus conteúdos referenciais. Na televisão especialmente, isso se dá até mesmo em programas de variedade ou de esporte.
Além disso, a mídia consegue, através da nomeação, criar fatos (as guerras de conquista de territórios e de matérias-primas am a ser guerras humanitárias) e categorias sociais (os rebeldes no Iraque ocupado pelos EUA, congêneres dos partisans, résistants, partigiani da luta contra o nazi-fascismo na Europa, aram a ser chamados de terroristas). Nomeando, ela cria sentimentos de aversão em relação a certos setores sociais. Ao chamar, sistematicamente, alguns moradores de bairros pobres que cometem ou são suspeitos de cometer atos ilícitos, de sujeitos, indivíduos, elementos, ela aproxima-os dos marginais, ladrões, foras da lei, dentre outros. Ao contrário, quando exponentes das classes dominantes cometem delitos, continuam sendo chamados de deputados, senadores, juízes, executivos, diretores, etc. Retomando Bourdieu, em alguns contextos de enunciação, as palavras “fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente, falsas representações” . (BOURDIEU, 1996, 19).
Isso pode culminar, em situações de forte contraste social, político e econômico, em um poder da mídia tão grande que a “atualidade argumentativa a a ser essencialmente tributária das escolhas feitas pelos meios de comunicação dominantes.” (SCHEPENS, 2006, 1). Tivemos um exemplo paradigmático disso quando a mídia brasileira, com raríssimas exceções, promoveu e defendeu com unhas e dentes o impedimento da presidenta Dilma Roussef, eleita em final de 2014, com 54% dos votos. Nesse caso, a atualidade argumentativa criada pela mídia, e mais especificamente pela Rede Globo, deu-se através da imposição da palavra inglesa impeachment, que refletiria uma ação prevista pela constituição brasileira, em contraste com a realidade objetiva, descrita de modo mais pertinente pela palavra golpe.
Tendências
Após a concretização desse processo anticonstitucional e a posse de um presidente e de um governo interinos, a mídia brasileira serve-se agora de outros recursos para confirmar o fundamento de suas escolhas anteriores e impedir que novas leituras possam ser feitas acerca do governo interino. Esses recursos dizem respeito não apenas ao uso de palavras, mas também a aspectos morfossintáticos, paraverbais – como a entonação – e não verbais – tais como a mímica. Vejamos algumas das tendências de construção desse discurso.
A eufemização, que serve para relativizar, ocultar e justificar medidas antissociais, golpistas, ilegais, anticonstitucionais e antipopulares do governo interino, assim como dos setores econômicos que os apoiam. Assim, o que está em curso não seria uma reforma trabalhista, mas uma modernização trabalhista, com uma diversificação profissional do trabalhador, conforme anunciado na maior parte dos grandes veículos. A manchete do jornal O GLOBO de 17 de maio anunciava que “Temer vai propor flexibilizar jornada de trabalho e salário”, justificando essa medida no subtítulo “Reforma trabalhista daria mais força às negociações coletivas”, quando sabemos que é exatamente o contrário que está sendo proposto.
A nova conjuntura política e econômica decorrente do golpe institucional contra a presidenta Dilma é positivada e supervalorizada, por meio do uso de palavras com conotação positiva, consideradas “bonitas” pelo sentimento linguístico da maioria. Fala-se em novo governo, retomada econômica, retomada da confiança, aumento dos investimentos, expectativa da sociedade e dos mercados, recuperação do poder de compra, salvação do país, etc.
Os tropeços, irregularidades, ações ilícitas, etc. do governo interino são amenizados e apresentados de modo a torná-los menos transparentes e a confundir o telespectador ou leitor. Logo após a divulgação das conversas comprometedoras entre o então ministro Romero Jucá com Sérgio Machado, o Jornal Nacional da Globo, de 23 de maio, noticiou: “Romero Jucá é levado a se licenciar”. A forma iva tem como efeito retirar ou diminuir a responsabilidade do sujeito da frase, colocando-o quase numa posição de vítima da ação de outra entidade. E, na sequência, o âncora relatou que Jucá foi elogiado por Temer por sua atuação enquanto ministro, numa tentativa de amenizar a possível culpa do personagem. Ainda durante os poucos minutos em que divulgou a notícia ainda recente da revelação da conversa entre Jucá e Machado, o âncora do JN acentuou a má qualidade do áudio e o fato de a Folha de São Paulo não ter publicado a totalidade da conversa, fragilizando assim o enunciado e fortalecendo o enunciador das “conversas gravadas [que] derruba[ra]m o ministro do planejamento do PMDB”.
Os malfeitos do governo interino são acobertados pela mídia dispersando seu registro em meio a notícias de provável forte efeito sobre a grande massa dos telespectadores ou contrapondo aqueles malfeitos aos de partidos da agora oposição. No mesmo programa de notícias do dia 23 de maio, as revelações da Folha de São Paulo foram rapidamente anunciadas em flashes dispersos, em meio a outras notícias, entre elas a denúncia contra o governador de Minas Gerais, do PT.
Assim como aconteceu com essa última notícia sobre o governador Fernando Pimentel, que quase se sobrepôs à gravação de conversas comprometedoras do ministro do planejamento Jucá, muito mais relevantes no atual contexto político, tende a haver, na mídia, um transbordamento dos tropeços, atuais e ados, da presidenta Dilma, de seus ministros e aliados. Notícias sobre esses erros ou supostos erros invadem todas as instâncias das notícias. O governo destituído, também graças à ação da mídia, como vimos, continua sendo demonizado e desprestigiado, assim como seus membros e seu entorno (CUT, MST, etc.), por meio de palavras negativamente conotadas, inseridas em contextos enunciativos relacionados sobretudo à crise econômica. A mídia focaliza situações difíceis, fenômenos negativos, etc. como exclusivamente decorrentes dos governos do PT. Fala-se, por exemplo, da perda de leitos nos hospitais, durante o governo da Dilma; da queda de confiança, nas últimas décadas; da situação complicada comparada com outros países do Mercosul; do esgotamento de um modelo, etc.
Em muitos casos, o descrédito recai, covardemente, sobre a individualidade dos protagonistas do governo destituído. Durante o processo de impeachment, a revista Isto É (abril 2016) apresentou, numa reportagem que atingiu o auge da misoginia, a presidenta Dilma como uma “histérica”, propensa a “explosões nervosas”, a “surtos de descontrole”, por causa da iminência de seu afastamento (sic), que grita, xinga, ataca, tendo perdido condições emocionais para conduzir o país”.
A política externa dos governos do PT, ainda que não tenha sofrido variações ao longo desses 14 anos, é hoje chamada de política “partidária”, irresponsável”; além disso, muitos dos governos da América Latina com os quais o Brasil mantinha relações são chamados agora de governos esquerdistas.
O que a mídia tem procurado mais escamotear, menosprezar e desqualificar, após o início do processo de golpe institucional contra a presidenta Dilma, são os inúmeros e variados atos promovidos pela população em protesto contra o golpe e, agora, contra o governo usurpador. As técnicas usadas são mais sutis porque, até recentemente, atos públicos a favor do impeachment eram supervalorizados e apresentados como democráticos e populares. As atuais manifestações, apesar de serem mais frequentes, maiores e mais universais, ganham muito pouco espaço na mídia, quando não são literalmente ignoradas. É mais uma vez através da manipulação dos conteúdos referenciais de determinadas palavras que a mídia tem conseguido desqualificar esse movimento multitudinário. A mídia tem desqualificado sistematicamente essas manifestações por advirem de movimentos sociais, especificando tratar-se de sindicatos (CUT), partidos (PT, entre outros) e outras organizações, como o MST e o MTST. É mais uma estratégia para impor à massa de telespectadores e leitores apenas uma acepção do lexema “movimento social”, muito mais amplo, cunhado como foi através da história das ações coletivas de homens e mulheres na defesa de seus direitos, na luta contra as injustiças e os desequilíbrios sociais.
Essa estratégia da mídia não só desqualifica os homens e as mulheres que saem às ruas para protestar, mas menospreza toda a esquerda, assimilando-a a uma grande massa de manobra, alienada, de um partido político ou de organizações específicas. Por outro lado, esses atos são mostrados a partir de ângulos geralmente desfavoráveis e sem jamais entrevistar os participantes e dar a eles a possibilidade de evidenciar sua heterogeneidade, a seriedade de suas reivindicações e a riqueza de seus pontos de vista sobre os fatos políticos em curso.
Do conjunto dessas estratégias de manipulação das informações, o que fica para o telespectador desinformado é uma visão simplista, generalizante, preconceituosa da situação social e política do Brasil.
Florence CarboniFlorence Carboni – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Patrícia ReuillardPatrícia Reuillard – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Crônica da Resistência ao Golpe de 2016 611m9

* José Carlos Moreira da Silva Filho
Dia 03/06 foi um dia histórico para Porto Alegre! No Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, mesmo palco no qual no dia 25 de agosto de 1961 Leonel de Moura Brizola iniciou a Campanha da Legalidade! Tive a honra de ser um dos autores do livro que estava sendo lançado, intitulado “A Resistência ao Golpe de 2016”, juntamente com Tarso Genro e Magda Biavaschi, a realizar uma fala antes do belo e inspirado discurso da Presidenta Dilma.
No mesmo palco estavam inúmeros Movimentos Sociais, Deputados Federais da esquerda, O ex-Governador Olívio Dutra (que me prestigiou com um cumprimento após minha fala), representações dos diversos Comitês pela Democracia e Resistência que se espalham pelo Estado. Na plateia também outros autores do livro: Guto Pedrollo, Katarina Peixoto, Paulo Pimenta e a Maria Tereza (que me ajudou a escrever o meu artigo). Ao final entregamos um exemplar autografado por tod@s à Dilma.
O evento foi comandado pela Katia Suman, sempre ótima, e particularmente linda foi a performance do Nei Lisboa. Cantou duas músicas: uma composição em homenagem à Dilma (música belíssima) e a clássica “E a Revolução”. Nesta hora foi difícil segurar a emoção. Aqui compartilho além das fotos desse momentaço um vídeo feito de parte da minha fala.

Após a homenagem que eu fiz ao Ico Lisboa (parte em que o vídeo foi cortado – já perdoei a patroa por não ter gravado tudo, he he he), fiz uma homenagem aos que lutaram antes e agora lutam de novo ao nosso lado, personificando na Dilma, exemplo de altivez, dignidade, coragem e, sobretudo, generosidade, por estar mais uma vez lutando e colocando a cara à tapa

Também lembrei da memória do lugar, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul na Campanha da Legalidade. Registrei ainda o a falácia e o vazio que é o combate à corrupção divorciado de qualquer preocupação quanto a um projeto político popular para o país. Como é falso derrubar um governo em nome do combate à corrupção sem se preocupar com o principal problema que temos e que é o verdadeiro gerador de toda a corrupção: a desigualdade social. Finalizei com um #ForaTemer e um #VoltaDilma.

Depois todos saíram para a Esquina Democrática, onde já estava montado um palco no qual Dilma repetiu o seu discurso, seguido de falas de uma parlamentar do PSOL (não consegui ver quem era) e da nossa querida Jussara Cony. E para finalizar mais uma bela performance do meu querido amigo e grande artista da nossa cidade e do nosso país Raul Ellwanger.

Milhares de pessoas na Esquina Democrática para homenagear Dilma Rousseff
Milhares de pessoas na Esquina Democrática para homenagear Dilma Rousseff

Dali iniciou-se uma caminhada pela cidade que reuniu dezenas de milhares de pessoas, com palavras de ordem, batucadas, muita animação. Pena que na Independência, para homenagear a ocupação do IPHAN, eu já estava sem bateria no celular. A Independência foi tomada pela multidão. Lindo de se ver. Andamos em lugares mais populares como o terminal de ônibus do Mercado Público e a Rodoviária (não pude deixar de perceber o contraste do povo mobilizado pelas ruas e o povo esperando ônibus, que me pareceu apático, bovino, indiferente e alguns até de cara amarrada – foi quando eu disse: “Acordem! São os direitos de vocês também que estão destroçados e atacados por este desgoverno ilegítimo!”).
Em frente a uma Igreja Universal na Farrapos o povaréu se ajoelhou e simulou uma reza, para depois cantar em coro: “Eu beijo homem, beijo mulher, tenho direito de beijar quem eu quiser!” Na altura da Fernandes Vieira eu dispersei, mas soube que o povo desfilou na Padre Chagas, coração da burguesada porto-alegrense, e que diante de algumas as que se insurgiram gritaram algo assim: “Mas que vergonha, bate a, mas quem lava é a empregada!”
Enfim, dia histórico, orgulhoso de ter feito parte. Teremos algo bem concreto e significativo para mostrar pras nossas filhas no futuro, mostrar que fizemos parte da resistência democrática diante de um golpe sórdido, espúrio e que ameaça as conquistas populares!
José Carlos Moreira da Silva Filho* Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (mestrado e doutorado) http://lattes.cnpq.br/0410429186457225

Uma crítica por esquerda aos militantes ainda vinculados ao governo deposto – 1 6q2u2t

Bruno Lima Rocha*
Iniciar um debate como esse é sempre um tema delicado. Nos espaços onde publico e circulam ideias por mim difundidas, percebo que as críticas são bem recebidas e, ao mesmo tempo, posso estar abrindo feridas políticas com interpretações que podem ser bastante sectárias. Ainda que reconheça este risco, estou abrindo uma nova série, compartilhando tanto a crítica à nova direita que cresce na onda reacionária a tomar conta de parte do Brasil, como fazendo a crítica por esquerda, de forma, mas sincera.
Inicio pelo óbvio. Por mais boa vontade e sinceridade política que tenham centenas de milhares de militantes contra o golpe, não há como varrer as práticas políticas condenáveis para debaixo do tapete. Entendo que o abandono de mínimas posições classistas levou a uma espécie de paralisia política, onde o mecanismo de “cálculo político” operado pelos oligarcas de sempre, entrou na mentalidade da direção do partido de governo (PT) e seus aliados, de modo que contas de mal menor estivessem sempre na ordem do dia. Não cabe neste primeiro momento apontar supostos “erros ou acertos” dos governos de Lula e Dilma e sim debater, a dimensão estratégica, ou a ausência desta dimensão, quando apontada ao médio e longo prazo.
Neste texto, levamos em conta o conceito de André Singer a respeito do lulismo, considerando-o um pacto conservador, um jogo do “ganha-ganha”, com as seguintes características: o Brasil aproveita o crescimento econômico chinês e indiano; tenta estabelecer uma aliança de classes com os campões do capitalismo nacional; não atinge de forma direta os interesses do capital financeiro e especulativo; aposta na política de exportação de commodities agrícolas, minerais e extrativistas; e, simultaneamente, abre cunhas de alianças com setores reacionários, em troca da gigantesca promoção de melhora nas condições materiais de vida. Logo, o que pode se observar é que, embora as mudanças materiais tenham sido consideráveis, não houve alteração nas estruturas de poder assentadas no Brasil, tanto àquelas de nível doméstico como na correlação com as forças externas. Logo, por mais que tenhamos praticado uma correta política externa de tipo “autonomia pela diversificação e inserção soberana”, a postura nacional e internacional foi coerente com o pacto de classes. Assim, tanto a inserção soberana no cenário internacional é o mal menor e não uma proposta de mudança na ordem mundial, como era nos anos ’80 do século XX; como aceitar a melhoria material como uma espécie de solução mágica para problemas estruturais de dominação foram o cadafalso da política lulista no Brasil.
Ao promover a melhoria da condição de mais de 44 milhões de pessoas, o que seria minimamente desejável seria a afirmação de estruturas de contra-poder, ou ao menos, uma capacidade de mobilização popular promotora de um poder de veto das maiorias por sobre os acórdãos oligárquicos e o viciado jogo burocrático-institucional. Ao contrário de fazer o afirmado aqui, o partido de governo reforçou o poder de seu líder político e eleitoral (Lula) e apostou toda a acumulação na vitória pelas urnas e não na construção de um novo consenso político-cultural, entregando a ideia de hegemonia societária para as estruturas pré-existentes. Deste modo, a inação levou a que nenhuma das estruturas centrais de poder no Brasil fosse alterada, ao contrário, se expandiram sob os narizes dos dirigentes petistas, tais como: o agronegócio e latifúndio; as “igrejas” neopentecostais; o poder da mídia corporativa; a financeirização da economia brasileira; a concentração econômica nos oligopólios nacionais (através de uma espécie de Bismarckismo tropical, já deveras elogiado por Eike Batista); a presença de capitais transnacionais nas telecomunicações; a divisão de poder no mundo do trabalho com as centrais pelegas; loteamento do primeiro, segundo, terceiro e quarto escalões do governo federal com oligarquias mercenárias; e, não menos grave, a negativa em modificar minimamente as instituições de segurança de Estado, verdadeiras máquinas de matar a própria população, acumulando entulho autoritário e violência endêmica na base de nossa pirâmide social.
Definitivamente, tais práticas de conciliação de classes e acomodação de forças são tão ou mais danosas do que a degeneração promovida pelo loteamento e rateio de práticas corruptas, ou do silenciar de investigações que poderiam cortar a cabeça da serpente, como as operações da PF Macuco, Farol da Colina, Chacal e Satiagraha. Para desespero de centenas de militantes com boa vontade, são as relações estruturais e as práticas políticas as atitudes definidoras da balança do poder interno e não, algumas acertadas políticas públicas, como as de renda mínima, de reconhecimento ou expansão das bases do ensino público.
A autocrítica necessária ou a desconfiança permanente
Expostas as feridas, é preciso falar em linguagem direta. Considerando tudo o que fora citado acima, entendo que, ou os dirigentes do PT, de seus partidos aliados (como o PC do B), das centrais sindicais que apoiaram o lulismo (como CUT e CTB), e setores afins fazem uma profunda autocrítica de suas práticas e alianças dos últimos 14 anos, ou toda esta indignação coletiva contra o golpe será jogada pelo ralo na próxima agenda eleitoral e eleitoreira. Esta crítica também vale para os movimentos componentes da Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo. Se este não é o momento para crítica e autocrítica então quando será? Para quem tem leitura da história política brasileira ou vivera o fim do ciclo populista, peço que seja lembrado o triste papel do PCB após 1964 e seus rachas sem fim até em função de sua inação diante do golpe evidente.
Afirmo que nem tudo está perdido e que há uma esquerda no Brasil, eleitoral e também não eleitoral e não é a este último setor, ao qual pertenço, para onde este texto se dirige. Hámuma conta a ser paga e a mesma é salgada. Sei que este tema atinge afetos e amizades, mas o faço de maneira fraterna e direta. Ou a esquerda social restante (como a Via Campesina e as bases ainda mobilizadas da Teologia da Libertação) assume seus erros e parte para um projeto político de democracia com justiça social, pluripartidarismo e igualdade sócioeconômica ou a parcela hoje ainda majoritária (a da centro-esquerda oficialista e de apoio incondicional ao governo que caíra) ficará apelando para debates místicos e escapistas como: “a história não para e as relações são dialéticas” e sem debater a fundo um PROJETO DE PODER. Se este debate não começar a ser feito com a devida radicalidade e lucidez nos próximos meses, repito, toda esta indignação será jogada pelo ralo diante dos oportunismos do próximo ciclo eleitoral dos municípios. O tema é urgente e seguirei neste debate nas próximas semanas.
bruno_KQ* Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais  www.estrategiaeanalise.com.br / [email protected]