Paulo Timm Economista Outro dia li uma advertência de um analista dizendo que a esquerda brasileira devia ler mais Becket. : “Fracasse outra vez. Fracasse melhor!” Prefiro recomendar Sartre, meio esquecido das gerações mais jovens mas que teve um papel fundamental na minha. Preconizava ele que não éramos apenas livres, mas seres condenados à liberdade, mas não uma liberdade vazia, uma liberdade irmã gêmea da responsabilidade. Esta ideia está muito bem ilustrada em sua peça AS MÃOS SUJAS, da qual retiro a citação abaixo. Mas aproveito para ilustrar o caso com a lembrança de um filme da Alemanha Oriental, cujo nome já não me lembro, que vi há muitas décadas. O filme retrata um campo de concentração, reduto último da barbárie humana. Nele, há a necessidade de haver alguém que organize o desespero e negocie com os nazis questões tanto cotidianas, como vitais, inclusive os escolhidos para o chuveiro da morte. Quem era este personagem? Um velho comunista. Ele, além de um homem livre e consciente, sabia que lhe cabia a dura responsabilidade do ofício que o destino lhe reservara. Sartre nos ajudou, com Malraux, mais do que os Manuais da URSS de Marxismo Leninimso, o que signficava SER COMUNISTA. ———–… Mãos sujas http://mitosemetaforas. blogspot.com.br/20…/…/maos- sujas.html “Na peça de teatro “As mãos sujas”, Jean-Paul Sartre apresenta o choque entre as visões políticas pragmática e idealista. Hugo, jovem idealista, recebe ordem de seu partido para matar Hoederer, líder da mesma facção, considerado traidor dos ideais revolucionários, por ter feito conchavos com os adversários. Para cumprir sua missão, ele vai trabalhar como secretário de Hoederer. Porém, aproximando-se deste, a a irá-lo, embora discorde de sua estratégia política. A política, segundo Hugo, é uma ciência capaz de demonstrar que uma pessoa tem razão e que as outras se enganam. Para ele é inaceitável que um partido revolucionário chegue ao poder à custa de traficâncias, e que Hoederer se utilize do partido para fazer uma política colaboracionista, afrontando o programa partidário de implantação do socialismo por meio da luta de classes. O jovem, que não esconde sua opinião diante do chefe, ouve deste o seguinte”: 3x3m27
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Meu voto nulo 1z6253
L. A. T. Grassi
Engenheiro
Quando escrevo, faz poucos minutos que foi aprovada em primeira votação, pela Câmara Federal, a PEC 141, também chamada PEC da Morte ou da Paralisia, que subordina aos interesses das finanças internacionais, o crescimento da economia e o resgate social brasileiros. É mais um lance da grande operação destinada a repor o Brasil na rota determinada pelo Império, executada interiormente pela vis e subservientes “elites” parlamentar, judiciária, policial, financeira e empresarial com o apoio da imprensa servil.
Há poucos dias, foi a entrega do petróleo e, com ele, todas as expectativas de redenção da educação, da saúde e da previdência social.
E antes, o processo que abriu caminho para tudo isso, o golpe travestido de rito legal enfeitado com missangas judiciárias e rotos véus pseudolegais.
A consolidação do governo ilegítimo e do cumprimento de seus desmandos foi favorecido com a coincidência não tão ocasional com o período das campanhas eleitorais dos municípios. Essas próprias campanhas já tinham sido, com a “mini-reforma política”, reduzidas aos propósitos despolizantes dos novos poderosos (com o impedimento de verdadeiro debate político) e com a campanha midiática em favor dos “novos gestores”, com seu ícone máximo, o prefeito eleito de São Paulo. O processo eleitoral municipal ofereceu, além da distração, para o eleitorado, da preocupação com o grande desmanche nacional, o espetáculo de, mais uma vez, as esquerdas perderem a oportunidade de avançar para uma unidade, mesmo que provisória, em termos de prioridades comuns e tentativas de alianças que efetivamente fizessem frente ao avanço do retrocesso.
No segundo turno, seguem as eleições municipais a ocupar o lugar privilegiado no debate político. Segue a disputa entre os defensores do “útil” com os que defendem a negação de voto a qualquer um dos candidatos da direita. Os graves e sucessivos acontecimentos nacionais ficam em segundo plano.
Defendi, imediatamente após a vitória, em Porto Alegre, dos candidatos identificados com o lado golpista, que o mais sensato e politicamente oportuno seria um movimento unitário, suprapartidário, em favor de um voto nulo bem definido, politicamente, contra esse retrocesso que nos leva às piores previsões. Os dois candidatos e seus apoiadores representam exatamente a mesma reprovação e negação de todos os esforços, de todas as medidas, de todas as conquistas e de todas as expectativas vividas nos últimos treze anos. O processo do segundo turno poderia oportunizar a denúncia do que eles representam, as outras faces da tragédia política que vivemos e uma alimentação à retomada da mobilização e, de outra parte, das discussões e reflexões necessárias à qualificação da militância. O voto nulo poderia sinalizar, coletivamente, a oposição a cada uma das medidas já tomadas, ou por tomar, para destruir o projeto de um país mais inclusivo e menos injusto.
As diversas fases do processo de impeachment oportunizaram, contra todas as dificuldades, ações e movimentos de mobilização e de conscientização (com todos os percalços, com os pequenos ganhos e com as grandes derrotas que ocorreram). Movimentos sociais despolitizados, atores políticos subordinados ao pragmatismo dos acordos e uma militância adormecida, quase toda uma geração encantada por avanços sociais efetivos e indicadores econômicos animadores, muitos desses atores ou segmentos foram despertados, a partir do movimento golpista, para um renascimento de participação e de reencontro com o protagonismo político.
O susto do processo do impeachment, vestido de legalismo e alimentado pelo messianismo lava-jatista e pela mídia comprometida, trouxe à tona uma nova vitalidade da esquerda que já esquecera o que é luta social.
Mas a mobilização através das manifestações de rua, de ocupações, de manifestos e de atos culturais, como debates, palestras, lançamento de livros, de comunicação pelas redes sociais etc, tudo isso, que pode e deve continuar, também apresenta seus limites. O “Fora Temer” pode ser ainda válido, mas não basta por si só. Nesse contexto, o movimento pelo voto nulo, como oportunidade de mobilização ganharia sentido de alimentar, em Porto Alegre e algumas outras cidade, uma nova fase da luta contra o golpe e, mais ainda, contra a operação mencionada inicialmente, de reocupação dos destinos nacionais por interesses externos.
A essas alturas, já ficou bem evidente que a dita operação já obteve mais um êxito, ocasional ou não, ao menos em termos locais. O “grande debate”, a “grande luta” foi substituída pela disputa entre os “pragmáticos” e os “nulistas” (em evidente depreciação do que poderia até ser um debate instrutivo, se auto-limitado).
E ganha destaque não o debate sobre a tragédia crescente, mas a comparação entre o grau de prejuízo local de cada um dos candidatos. Discutem-se seus currículos políticos, ideológicos, istrativos, suas biografias e até a herança paterna do pretensamente mais moderno. Coteja-se o grau de “populismo” ou de “elitismo” de cada um. Importam os apoios e a possibilidade de contradições nas chapas (em uma; a convivência entre o partido que fez o golpe e o que foi contra; em outra, entre o partido que quer se implantar no estado e o que já está implantado mas não na capital).. Supõe-se que o “menos pior” poderá mudar os rumos de uma política local que tem representado a projeção local dos desmandos estaduais e nacionais.
Faz-se o prognóstico de que, sem os votos de esquerda, ganhará o “mais pior”, embora não haja nenhuma pesquisa que aponte o favorito. E se já houver esse favorito, não se sabe porquê os ditos votos de esquerda poderão inverter a situação.
A essas alturas, mais uma vez as esquerdas (é sintomático que se as nomeie assim, enquanto se fala em “a” direita) estão conseguindo o consenso da desunião. Faltando uns vinte dias para o segundo turno, obviamente perdeu-se a oportunidade de um movimento unitário de resistência ao bloco biface que representa, localmente, todas as forças contra as quais a militância, movimentos sociais e muita gente que foi tocada pela gravidade do golpe foi às ruas, reuniu-se, comunicou-se, lutou e, acima de tudo, manteve as esperanças.
Certamente, ganhe quem ganhar, mesmo seu projeto local não contemplará mais participação, gestão ambiental, qualificação da educação, política habitacional justa, política urbana não subordinada aos interesses especulativos, sistema de transporte coletivo adequado, redução da violência, atendimento a pessoas em situação de rua etc. Qualquer das chapas concorrente está longe de corresponder a essas expectativas. E no contexto da política de austeridade, de negação à participação e de privatização incentivadas pelo poder central, essa negação da democracia participativa será acentuada e demandará mais resistência, denúncia e oposição.
Resta a expectativa de que, adas as eleições, a cidade volte a ser motivada por todos que lutam contra os golpes contra a educação, a previdência social, a saúde e, com toda a probabilidade dentro em pouco, contra outros atentados à legalidade democrática e aos direitos de cidadania. E que, mesmo os que votaram contra “o menos pior”, tenha ganhado ou não, possam voltar a incluir, nas lutas de nível nacional ou estadual, a luta por uma cidade que possa voltar a ser a cidade da esperança e do “outro mundo possível” que já foi um dia.
Meu voto nulo tem esse significado.
A geografia do golpe 14m36
João Alberto Wohlfart – Professor de filosofia
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff, e que decretou o sepultamento da Constituição de 1988, da Democracia e do Estado de Direito, já se apresenta com uma estrutura gigantesca, uma força insuperável e uma penetração intensa em todos os setores da sociedade. Trata-se de um movimento que atinge o campo das mais íntimas relações humanas e familiares, a por todas as instâncias sociais até as estruturas macroeconômicas transnacionais e transcontinentais. No presente artigo vamos tentar montar o desenho do golpe, a sua abrangência e as suas consequências para a sociedade brasileira.
O movimento estrutural do golpe começa “longe”, nos países do primeiro mundo, no epicentro do sistema macroeconômico capitalista mundial, imensamente sedento de matéria-prima e de energia para a sua própria sobrevivência. Nos espaços “centrais” do planeta onde está instalado não encontra mais matéria-prima para a exploração capitalista, tendo que apropriar-se de suas reservas em outros espaços e explorá-los intensamente para assegurar o que justifica o sistema capitalista, o lucro sem medida. O golpe está diretamente ligado ao fato de que no chamado primeiro mundo não há mais recursos naturais, num gigantesco movimento de apropriação de megaempresas mundiais na busca destes recursos para a exploração. No momento atual estamos invisivelmente encurralados por um monstro capitalista pronto para explorar e expropriar os recursos subterrâneos, as águas, as terras, as florestas, os rios, os recursos energéticos e aquáticos, a força de trabalho e a inteligência e incorporar tudo na lógica absoluta e incondicional do capital.
Em termos teóricos, esta configuração econômica é a materialização da ideologia neoliberal, que tem na propriedade privada, na superconcentração de renda, nas privatizações, na financeirização da economia e no espírito individualista os seus dogmas absolutos. Na atualidade, a hegemonia desta posição é tão intensa e assumiu contornos de autoritarismo militar, pulverizando por baixo todas as outras concepções e possibilidades de organização social. Na atualidade, a absoluta hegemonia da ideologia neoliberal se manifesta na privatização global de recursos públicos, na avassaladora introdução de seus fundamentos educacionais nas escolas e universidades e no autoritarismo arbitrário dos poderes estatais.
O imenso poderio econômico e empresarial de um conjunto de forças econômicas multinacionais está acampando em solos brasileiros. O território nacional está transformado numa base informe destinada à desmesurada exploração capitalista, reduzido a uma colônia sem povo, sem Constituição e sem Direito expropriados pelo grande capital. É a mais gigantesca estrutura de dominação e de exploração jamais vista na história da humanidade, com imensa força para desequilibrar o universo dos nossos ecossistemas, transformar o povo numa massa sem inteligência, aniquilar qualquer tentativa de crítica e de reação e entregar o Brasil nas mãos de poucos grandes proprietários capitalistas. O golpe caracteriza a fome da voracidade capitalista, numa nova fase do neoliberalismo internacional de assalto sobre o Sistema Terra, de intensa massificação das populações e de desconfiguração total da organização social planetária.
O mostro capitalista aqui em consideração tem as suas representações internas. O alvo direto é viabilizar a exploração dos nossos recursos naturais e a completa alienação da população. Internamente, este sistema é representado pela ultraconservadora configuração do congresso nacional, onde habitam integrantes do neopentecostalismo, do agronegócio, das empreiteiras, das indústrias petrolíferas e do grande sistema privado. Este covil de bandidos políticos legitima legalmente a consolidação da venda do Brasil ao capital estrangeiro e expropriar os recursos que pertencem de direito ao povo brasileiro. O governo federal, que tomou de assalto o mandato da Presidente Dilma Rousseff através da farsa do golpe parlamentar, está aplicando visivelmente os dogmas da política neoliberal, com ações escandalosas que vemos todos os dias. O judiciário e o ministério público federal estão protagonizando uma caçada judicial ao PT e às suas principais lideranças, cujo objetivo explícito é eliminar esta força política.
Na geografia do golpe não podem ser esquecidos os meios de comunicação social. Numa absoluta monopolização, padronização e uniformização da informação, esboçaram um intenso ataque contra o Governo Dilma, contra o PT e contra Lula, num tom de diabolização e de condenação permanente que incutiu na opinião pública a convicção de que o PT acabou com o país e é responsável único pela corrupção. A população foi de tal maneira imbecilizada e mediocrizada que as conversas entre as pessoas se reduziram a jargões como “faliram a Petrobrás”, “os filhos de Lula são ricos”, “os militares precisam voltar ao poder”… Com a estratégia contínua de ataques contra Lula e o PT, os meios de comunicação social conseguiram ocultar aos olhos do povo a corrupção praticada pelos grupos políticos de direita e a corrupção sistêmica como aquela praticada pelas políticas neoliberais. Os meios de comunicação são decisivos para a ação seletiva do judiciário que coloca na cadeia lideranças de esquerda a partir de boatos e protege os corruptos que habitam os partidos de direita.
O golpe imbecilizou e mediocrizou a população brasileira. Estamos envolvidos numa cegueira epistemológica absoluta que impossibilita a construção de qualquer conhecimento crítico diante da ditadura na qual vivemos. O povo está cego diante do desmanche do Estado, da entrega de bandeja das riquezas nacionais ao capital estrangeiro, da política de concentração de renda e da retirada de direitos. A cegueira absoluta se completa com o desaparecimento da memória histórica, pois ninguém se lembra dos acontecimentos das décadas de 80 e 90 quando as palavras-chave eram dívida externa, FMI, Banco Mundial e miséria absoluta. Ninguém se lembra das conquistas com o governo Lula, tais como a quintuplicação do Produto Interno Bruto, a formação de significativas reservas internacionais e a superação da dívida externa, a construção de uma nova política internacional com a integração do Brasil na lógica da horizontalização das relações internacionais, a formação de uma ampla classe média, a superação da fome e da miséria e tantas outras. A ignorância absoluta se completa com a legitimação por parte do povo do projeto golpista estabelecido, pois quando fala de corrupção e contra o PT, os falantes repõem exponencialmente a corrupção e sustenta o assalto do país pelo grande capital.
O golpe desestruturou o perfil da estrutura social brasileira. Os órgãos públicos responsáveis pela guarda da Constituição e do Estado de Direito, tais como o supremo tribunal federal, o judiciário e o ministério público federal a dissolveram e decretaram a sua morte. Estes órgãos se transformaram num partido ultraconservador de direita e viabilizam a destruição da nação com a sua venda e alienação. Já é perceptível a desintegração das relações sociais através de uma intensa massificação da opinião e da incapacidade de organização social. Esperava-se uma espécie de luta de classes, a partir da qual as bases se organizam para lutar contra o projeto de desmantelamento de direitos historicamente adquiridos, mas o povo assiste ivamente e em silêncio, sem capacidade de compreensão e problematização. Seguramente, o discurso antipetista obscurece os olhos do povo e inviabiliza a organização. A organização das bases foi substituída pelo ódio da classe dominante do Povo e da Democracia e pela paradoxal postura de adoração dos dominados em relação as dominadores.
Está em jogo a ruptura do contrato social e a entrega incondicional do país à política econômica neoliberal. A política dos juros altos é o principal mecanismo desta política. O povo está sendo expropriado pelos juros que corroem a base econômica e canaliza os recursos para os bilionários da sociedade. É uma lógica econômica invisível, desconhecida, mas caracteriza o principal mecanismo de exploração das massas sociais e de concentração de renda no Brasil e no mundo. A especulação financeira mundial, altamente concentrada no Brasil, é um fator de desequilíbrios sociais, de desequilíbrios ecológicos e de desequilíbrios econômicos em escala global. A principal antinomia dos tempos atuais está polarizada entre o capital financeiro e a estrutura social. No Brasil esta polarização é muito mais profunda, porque a concentração de renda que ela proporciona corrói e dissolve as relações sociais.
A lógica do golpe atinge diretamente o campo educacional. O modelo de escola, de pedagogia, de conhecimento e de aprendizagem correspondem com o sistema econômico estabelecido, para dar-lhe legitimidade e evitar que seja objeto de qualquer crítica. O projeto escola sem partido é a expressão mais clara desta tendência, pois impõe autoritariamente uma lógica de doutrinação na qual o professor apenas rea conteúdos. Querem, e isto se escutou falar por aí, a obrigatoriedade do ensino do criacionismo, uma visão conservadora de mundo na qual se sustenta que o mundo está dado pela vontade divina, portanto não pode ser transformado. Fala-se também da neutralidade científica, como se o conhecimento científico e as várias teorias científicas não tivessem nada a ver com a realidade histórica dos homens e com as diferentes concepções de mundo e de sociedade. Num cenário de ditadura como o nosso, a escola se transforma numa referência legitimadora da sociedade estabelecida ao reproduzir os interesses que a movem.
Depois de conquistarmos com os governos Lula e Dilma um posição privilegiada no cenário internacional, involuímos séculos e nos transformamos numa colônia informe de quinto mundo. O nosso rico sistema de ecossistemas e de biodiversidade se transforma numa materialidade bruta a ser devorada pela voracidade da exploração capitalista. O povo brasileiro, órfão de lideranças e de mediações políticas, se transforma numa massa manipulada sem memória, sem conhecimento sistematizado e sem direitos. Neste contexto de radical ruptura institucional, a tendência é que o povo será amplamente favorável diante das arbitrariedades praticadas pelo governo golpista. Internamente, sobra-nos um cinismo social resultante de uma ampla manipulação da mídia, com a radical dissolução do sistema de relações sociais. No cenário internacional, dissolveram-se as relações fundamentais do Brasil com vários blocos econômicos e políticos, e nos transformamos numa republiqueta de fundo de quintal sem relações internacionais consistentes.
Todas estas reflexões conduzem à evidência de um pandemônio que está em cima de nós, como uma ave de rapina posicionada para roubar as nossas riquezas. Este gigante de mão invisível tem como corpo o capital financeiro cuja seiva o move, e como estrutura material as megaestruturas empresariais capitalistas transnacionais quase invisivelmente distribuídas por todo o planeta. A sua ação consiste em explorar os recursos naturais ainda existentes, particularmente de olho nos ecossistemas naturais do Brasil e na alienação das massas. Este sistema possui gigantescos tentáculos que multiplicam a sua força invasora e neutraliza qualquer tentativa de resistência. Um tentáculo é o sistema do Estado como um todo, em seus poderes executivo, legislativo e judiciário em conluio para introduzir a sua versão atual arquitetada pelo golpe. Os oponentes são cassados por uma perseguição judicial, rotulados de corruptos e presos sem provas. Outro tentáculo deste sistema são os meios de comunicação social que padronizam a informação e imbecilizam a população o suficiente para se submeter cegamente ao roubo neoliberal. Outro tentáculo são as religiões, que com o seu proselitismo revestem com pele de ovelha e tornam invisível este pandemônio. Outro tentáculo é a mentalidade burguesa, com discurso moralizador, que com o cinismo generalizado reproduz dentro da sociedade este sistema diabólico.
Contra o Retrocesso – Por uma Frente Popular e Democrática em Porto Alegre 3q5v11
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e outros
O Brasil vive um momento político extremamente grave. O Golpe parlamentar contra a Presidenta eleita foi realizado por uma potente articulação de forças contrárias aos direitos sociais, civis e democráticos. A entrega dos recursos do pré-sal para o grande capital internacional, o afastamento do Brasil de seus parceiros latino-americanos e africanos, a perda de protagonismo do país no contexto mundial, o corte de gastos nas áreas da saúde e da educação, a flexibilização das regras trabalhistas e o abuso da violência estatal e do encarceramento como políticas de Estado mostram que o golpe segue em curso, colocando para o campo democrático e popular o desafio de barrar o seu avanço.
Há um clima de ódio e de violência instalado no país. O processo de criminalização seletiva e de espetacularização das denúncias contra os integrantes de apenas um partido político, promovido por setores importantes do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal, em aliança com as grandes mídias corporativas, tem como objetivo claro transformar as esquerdas e principalmente o PT e suas lideranças nos “grandes inimigos do povo”.
A discricionariedade na aplicação da Justiça, que desconsidera as graves denúncias envolvendo figuras destacadas do PSDB, do PMDB e do PP, bem como o engajamento do próprio STF na retirada progressiva das garantias processuais e dos direitos individuais revelam o perigo iminente da fascistização das relações sociais e das instituições públicas em curso no Brasil. É nesse contexto que ocorrerá o 2º turno da eleição para a Prefeitura de Porto Alegre, quando deveremos nos posicionar frente aos dois projetos políticos para a cidade mais votados no 1º turno.
Temos, de um lado, a candidatura de Marchezan Jr., do PSDB, aliado ao PP, que representa um programa de retrocesso em relação não só às conquistas sociais, políticas e econômicas da última década, mas também em relação aos direitos e garantias assegurados pela Constituição de 1988. Essa candidatura tenta angariar votos e conquistar o eleitorado para propostas de submissão das políticas públicas aos princípios da iniciativa privada: privatização do patrimônio público, enxugamento da máquina pública, arrocho do funcionalismo e rebaixamento dos direitos de cidadania a uma pura e simples relação de clientela entre os cidadãos e o Estado, numa postura assistencialista. A vitória dessa candidatura, que conta com forças políticas oriundas da antiga ARENA, significaria a obtenção de uma base sólida na capital do estado para o aprofundamento do golpe e a consolidação do campo neoliberal no Rio Grande do Sul, com todo o retrocesso social, político e econômico que ele representa.
A coligação Melo e Juliana, por outro lado, em que pesem problemas da cidade não enfrentados pela gestão municipal nos últimos 12 anos e, ainda, a vinculação do partido do candidato a Prefeito ao golpe perpetrado contra a democracia por meio do impeachment, é mais plural, na medida em que conta com a presença de uma liderança do PDT no cargo de vice-prefeita. O PDT posicionou-se nacionalmente contra o golpe e reconhece a importância da participação popular na gestão pública. A origem pessoal e o vínculo de Melo com setores populares, a trajetória do Prefeito José Fortunatti, afiançador da chapa e historicamente vinculado ao campo democrático e popular, assim como a presença de Juliana Brizola como vice-prefeita, herdeira das propostas avançadas do Brizolismo para a emancipação da cidadania e a afirmação da democracia e da legalidade, não deixam dúvida sobre as diferenças entre as duas candidaturas em disputa. Frente ao retrocesso em curso no país após o golpe e o risco da fascistização crescente de nossas instituições, é fundamental que sejamos capazes, do espaço municipal ao nacional, de somar forças para a defesa da democracia e do Estado de Direito no país.
Para que Porto Alegre tenha uma perspectiva efetivamente popular e democrática, propomos a constituição de uma frente ampla para barrar o avanço do neoliberalismo mais retrógrado e elitista representado pela candidatura Marchezan, que reúne as forças mais à direita do espectro de posições políticas do Rio Grande do Sul.
Uma frente popular e democrática em Porto Alegre precisa ter como perspectiva enfrentar com mais determinação os problemas da cidade.
Porto Alegre precisa enfrentar com firmeza a gestão ambiental do Guaíba e da qualidade da água, dos resíduos sólidos e da qualidade do ar. Nas últimas istrações, a cidade tem sofrido uma espécie de falência da gestão ambiental, que precisa ser revertida diante dos desafios do aquecimento global e do desenvolvimento sustentável.
A educação municipal, que já foi motivo de orgulho, precisa avançar na qualificação dos professores e na educação de tempo integral. Os projetos de Educação de jovens e adultos (EJA) também merecem investimento e revitalização. As escolas precisam ser capacitadas para se tornarem centros de saberes locais e promotoras da identidade das comunidades.
A política urbana de Porto Alegre deve retomar o combate à retenção especulativa de imóveis urbanos, a fim de garantir o cumprimento da função social da propriedade e das funções sociais da cidade. Na política habitacional, os projetos de Regularização Fundiária de assentamentos irregulares precisam ser retomados, já que o direito à cidade depende, em boa medida, da segurança da posse na terra conquistada para fins de moradia. As áreas ocupadas por comunidades tradicionais, como os quilombos urbanos, as terras indígenas e os povos de terreiro, são ainda mais vulneráveis ao assédio do mercado imobiliário e necessitam de urgente atenção na dotação de infraestrutura e serviços, bem como na titulação e proteção contra despejos forçados.
Da mesma forma, é importante ampliar as possibilidades de o regular ao solo urbano para as famílias de baixa renda por meio da oferta de lotes urbanizados em áreas já dotadas de infraestrutura. Porto Alegre precisa ampliar o debate acerca da utilização dos espaços públicos, particularmente em áreas de especial interesse ambiental e cultural, como, por exemplo, o Cais Mauá, devolvendo aos cidadãos o processo de tomada de decisão.
No plano das políticas para as mulheres, a desqualificação do transporte coletivo e as ameaças de redução de recursos para o SUS e para o ensino público afetam de forma particular as mulheres trabalhadoras da cidade, exigindo a retomada de programas da rede de assistência social e a ampliação das políticas de enfrentamento à violência doméstica e familiar.
A violência urbana reduz direitos de cidadania de homens, mulheres e jovens que têm o espaço público reduzido pelo medo e pela criminalidade organizada. É cada dia mais urgente a rediscussão do papel do município nas políticas de prevenção à violência, com a ampliação da guarda municipal, integrada com a Brigada Militar na realização do policiamento ostensivo, com características de policiamento comunitário e de proximidade, capaz de istrar conflitos e garantir a ação efetiva do Estado na prevenção ao crime. O mesmo desafio se coloca em relação aos moradores de rua, aos imigrantes e refugiados, pela vulnerabilidade de sua condição de cidadania.
Algumas políticas específicas precisam ser ampliadas e reforçadas, como o investimento em ciclovias para a criação de alternativas para a mobilidade urbana e a política de proteção animal, voltada para o controle populacional, o tratamento de doenças e o resgate e a adoção de animais em situação de rua, incorporando de forma definitiva novas demandas sociais às políticas públicas do município.
A retomada da política cultural, com o desenvolvimento de projetos avançados de ocupação do espaço urbano, com a descentralização da produção artística direcionada para os bairros da cidade, é fundamental para estimular o convívio social. Com isso, Porto Alegre poderá retomar suas cores e não sucumbir ao cinza de uma cidade desumanizada, triste e amedrontada.
Estes são alguns dos principais desafios colocados para a gestão da cidade. Para enfrentá-los, é preciso que seja construída uma frente democrática e popular, contra o retrocesso. Acreditamos que, para construí-la, o único caminho possível no 2º turno das eleições municipais é o voto em Melo e Juliana, para que Porto Alegre possa resistir ao retrocesso jurídico, político e social e se mantenha na defesa da legalidade democrática e das conquistas populares.
Assinam:
Ana Costa – Auditora fiscal do trabalho
Ângela Tavares – Programadora de computador aposentada e militante em movimentos sociais
Benedito Tadeu César – Cientista Político
Bernardo Lewgoy – Antropólogo e professor da UFRGS
Betânia de Moraes Alfonsin – Advogada e professora da PUCRS e da FMP
Carmen S. de Oliveira – Psicóloga e militante de direitos humanos
Cátia Simon – Professora da RME/PMPA
Diego Pautasso – Professor Universitário
Eny R. Dalmaso – Profa. de História e Filosofia, militante do ers Sindicato e movimentos sociais
Fábio Dal Molin – Psicólogo e professor da FURG
Gentil Corazza – Economista, professor da UFRGS
Ivaldo Gehlen – Sociólogo e professor da UFRGS
Jorge Garcia – Advogado
Jucemara Beltrame – Advogada
Júlio Bernardes – Professor de Filosofia, coordenador do Curso de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da UNISC
Luis Stephanou – Sociólogo
Maria da Glória Lopes Kopp – Historiadora, doutoranda em Ciências Sociais PUCRS
Maria Regina Jacob Pilla – Tradutora e escritora
Marília Veríssimo Veronese – Psicóloga Social e professora da Unisinos
Mário Madureira – Advogado
Milena Dugacsek – Etnomusicóloga
Patrícia Reuillard – Tradutora e professora da UFRGS
Paulo de Tarso Carneiro – Bancário aposentado, fundador do PT
Paulo Timm – Economista
Rafael Machado Madeira – Cientista Político e professor da PUCRS
Reginete Souza Bispo – Cientista Social e militante do Movimento de Mulheres Negras
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Sociólogo e professor da PUCRS
Rualdo Menegat – Geólogo e professor da UFRGS
Soraya Vargas Cortes – Socióloga e professora da UFRGS
Tagore Vieira Rodrigues – Historiador
Tamara Hauck – Jornalista
Vinicius Galleazzi – Engenheiro Civil
Walter Morales Aragão – Professor universitário
Zoravia Bettiol – Artista plástica
Obviedades 5q4o1q
ZK Moreira
Professor universitário
As análises feitas sobre as recentes eleições municipais que não as contextualizem no cenário da ruptura institucional são falaciosas, pois pressupõem a existência de uma normalidade democrática que não temos mais.
Uma coisa é a contraposição de projetos políticos e ideológicos distintos, representados por exemplo, pelo PSDB e pelo PT, os protagonistas centrais dos embates eleitorais das duas últimas décadas, e identificar no embate entre ambos a alternância no poder. Outra coisa é este processo ter sido interrompido abruptamente mediante a deposição de uma Presidenta eleita sem que houvesse fundamento legal para isto, e reforçado por uma implacável seletividade midiática e judicial orientada para demonizar e anular apenas uma dessas duas grandes forças políticas, o PT, enquanto se favorece plenamente o outro pólo do embate político: o PSDB, com o PMDB oscilando para o lado que melhor favorece os seus interesses fisiologistas.
O critério democrático central de definição das forças políticas vencedoras foi descartado. A maior evidência disto é que em pouco mais de um ano após as eleições, os perdedores do pleito estavam no poder, orientando nomeações e políticas desde a interinidade do governo Temer, sendo resultado de um processo que desde o primeiro dia do segundo governo Dilma foi anunciado despudoramente pelo candidato derrotado Aécio Neves e outros arautos do PSDB. O fundamento apresentado para o golpe é algo menos do que fraco. Destaco três aspectos básicos que explicitam isto:
- a inexistência de tipicidade que configure tais práticas como crime de responsabilidade;
- a inexistência de prejuízo ao erário público pelas práticas fiscais do governo Dilma e o fato de tal prática ser comum em governos anteriores e em diversos governos estaduais;
- a mudança de entendimento do Tribunal de Contas da União ser posterior à prática dos atos;
Claro está que o golpe foi sustentado não apenas nessas desrazões técnicas, mas também por outras que os deputados e senadores não hesitaram em alardear ao longo do processo de julgamento do impeachment fraudulento, tais como:
- juízo de exceção, apoiado pelas instâncias superiores a despeito das inúmeras violações legais, baseado tão somente em delações extorquidas de pessoas presas e narrativas frágeis cheias de convicções mas sem provas;
- ausência de qualquer prisão ou constrangimento de políticos do PSDB e do PMDB, não importando quantas vezes citados e quantos documentos e provas bem mais consistentes contra eles existam;
- argumento de que a corrupção é um mal criado e propagado pelo PT, quando até os minerais sabem (ou deveriam saber) que é um problema tão antigo quanto o país, generalizado e disseminado de modo muito mais volumoso e contundente em outros partidos;
Não se pode esquecer também a incrível simetria da Operação Lava-Jato que, em geral, um ou dois dias após notícias ou fatos que poderiam enfraquecer o golpe institucional e o processo de demonização do PT e das esquerdas, lança suas operações de nomes criativos para reforçar a seletividade política, com ampla, intensa e parcial cobertura midiática. Não menciono a obviedade do show midiático contra Lula tão logo o golpe se consolidou, fico com alguns fatos ainda mais recentes.
Um dia após a cassação do Cunha na Câmara dos Deputados e duas semanas antes das eleições municipais, Moro ordena em nome da “ordem pública” a prisão do Guido Mantega, ex-Ministro da Fazenda da Dilma, quando ele estava acompanhando sua mulher em tratamento contra um câncer no Hospital e, atestando o arbítrio e a inexistência de fundamento para a medida, o manda soltar logo em seguida. Uma semana depois manda prender o ex-Ministro da Fazenda do Lula, o Palocci, o que ocorre um dia após o Ministro da Justiça Alexandre Moraes avisar em meio a um comício do PSDB em Ribeirão Preto, cidade de Palocci na qual o candidato do PT estava bem cotado nas pesquisas, que “teria mais” da Operação Lava-Jato na semana que viria. Curioso também é que esta prisão do Palocci ocorreu exatamente um dia antes da vedação legal de qualquer prisão que não seja em flagrante, em razão das eleições que se avizinhavam, sendo que ele estava sendo investigado há meses. Mas ainda “teria mais” antes dos cidadãos e cidadãs brasileir@s irem às urnas no último domingo: o STF aceitou denúncia criminal oferecida pelo MPF contra a Senadora do PT Gleisi Hoffmann e seu marido Paulo Bernardo, Ex-Ministro de Planejamento do governo Lula.
Teríamos que ser muito inocentes, dizendo o mínimo, para acharmos que essas ações não têm relação com a disputa eleitoral. Uma pergunta simples é: por que não esperaram ar as eleições para deflagrar tais ações? Afinal, esperou-se tanto tempo para suspender o Cunha da Presidência da Câmara e depois cassá-lo não é mesmo? Repito, analisar as últimas eleições sem levar em conta o quadro golpista, parcial e persecutório é dar vazão a uma miopia política.
Sem dúvida que se impõe às forças de esquerda no Brasil uma análise dos erros políticos assumidos pelas suas expressões, em especial pelo PT, mas uma coisa é fazer esta autocrítica em um ambiente de normalidade democrática e institucional, e outra é fazer isto em meio a um quadro de ruptura democrática, ativismo judicial seletivo, cobertura midiática parcial e militante, parlamento corrupto de fortes tendências fascistas, galopantes retrocessos de direitos, manipulação clara do processo eleitoral e aprofundamento repressivo.
Aparentemente grande parte da sociedade brasileira, independente dos erros do PT, se deixou levar por um quadro falacioso e parcial que entende que “política nova” é a política dos velhos setores elitistas da sociedade que se escondem atrás do discurso apolítico, o mais político de todos, diga-se de agem. Em Porto Alegre, por exemplo, o Marchezan é associado ao “novo” na política, mas na verdade ele é herdeiro do mesmo pensamento político do seu pai, o pensamento da Arena, partido de sustentação da ditadura civil-militar. Não há nada de “novo” na sua atitude e nas suas ideias. O discurso do “Partido Novo” e do MBL também não traz nenhuma novidade, e evoca, na verdade, ideário presente no “Estado Novo”, ditadura de corte fascista implantada por Getúlio Vargas em 1937. O adjetivo de “novo” que tais movimentos ostentam, e por mais bem intencionados que alguns dos seus integrantes possa ser, não consegue evitar a velha hipocrisia, visto que não esconde suas preferências políticas e partidárias, apoiando em peso os partidos que hoje se situam à extrema direita do espectro político.
Estamos longe de um ambiente saudável de disputa democrática. A corrupção sempre foi um problema para nós, e deve ser combatida, mas não nos impediu de termos vinte e poucos anos de normalidade institucional e inúmeros avanços nas conquistas de direitos e de participação política da sociedade. O que temos agora não é mais o ambiente de tolerância e liberdade de ideias, mas sim o aprofundamento de uma caça às bruxas e a imposição a fórceps de um projeto político neoliberal, no qual em nome do combate à corrupção juízes e tribunais rasgam a Constituição e instauram declaradamente a exceção (como justificou o TRF da 4° Região), Ministério Público intervém escancaradamente no processo político escorado em fragilidades probatórias, narrativas forçadas e extrema seletividade, a mídia nativa aumenta em várias oitavas o tom de manipulação de fatos e propagação de factóides, políticos eleitos sentem-se à vontade para propagar discursos de ódio e estimular sectarismos, e fala-se sem cerimônia na sociedade e nos órgãos públicos voltados ao tema da educação em se instituir escolas nas quais o debate político, filosófico, histórico e sociológico seja simplesmente censurado.
Não nos enganemos, o verdadeiro alvo de todo esse processo não é a corrupção, que aliás está sendo aprofundada no governo Temer, e não será diferente enquanto o seu pretenso combate favorecer justamente as forças mais retrógradas da sociedade. No Brasil não há nada de novo em se demonizar visões de esquerda, em se reforçar visões elitistas da sociedade e em limitar direitos, garantias e liberdades. Se tem alguma coisa de novo nesta história toda é justamente o que mais uma vez encontra o seu ocaso: a democracia. Durou pouco. A transição política incompleta e controlada que nos tirou da ditadura para a redemocratização gerada a partir da lei de anistia de 1979 e da Constituição de 1988 agora cobra o seu preço. Recomeça a luta pela democracia no Brasil. Mais uma vez voltamos várias casas. Continuaremos jogando com esperança, sempre.
Criança Feliz: uma nova condicionalidade para o programa Bolsa Família? 2s445z
Fernanda Bittencourt Ribeiro – Antropóloga e professora universitária.
Foi lançado na quarta-feira, 5 de outubro, o programa Criança Feliz já descrito como o “mais ousado programa social” do governo federal pós-impeachment1. O programa está vinculado ao Ministério de desenvolvimento social e agrário e foi proposto por seu ministro Osmar Terra, médico e deputado federal pelo PMDB. Compilando as notícias veiculadas até o presente na web, e que trazem, sobretudo declarações do próprio ministro, sabe-se que se trata de um “programa de estimulação precoce para o desenvolvimento de habilidades e competências nos primeiros anos de vida”. Sua principal referência é o programa Primeira Infância Melhor (PIM) criado no Rio Grande do Sul em 2003, quando Osmar Terra foi secretário de saúde. Para coloca-lo em prática pretende-se contratar cerca de 80 mil pessoas com ensino médio para fazer o atendimento presencial aos filhos de beneficiários do programa Bolsa Família, o que equivaleria a 4 milhões de casas. Serão os chamados visitadores que farão visitas semanais ou quinzenais às famílias, para acompanhar o desenvolvimento das crianças e contribuir para que “tenham um futuro melhor e ajudem suas famílias a sair da pobreza”. Para dar início ao programa, em 2016, serão destinados 80 milhões de reais e a previsão é de que seu pleno funcionamento custe 2 bilhões de reais ao ano.
A intenção declarada do governo com o lançamento deste programa seria afastar a acusação de que não se preocupa com a área social. Para este fim a preocupação com as crianças é normalmente bastante eficiente, pois a infância como uma causa, parece estar acima de diferenças ideológicas ou visões de sociedade. No entanto, especialistas em políticas públicas começam a chamar atenção para algumas escolhas que dizem respeito ao programa. Conforme o Centro de Referências em Educação Integral, até recentemente, as políticas públicas destinadas a crianças de 0 a 3 anos convergiam para o Plano Nacional de Educação. Elas sustentavam-se na ideia de que, independentemente de classe social, as crianças nesta faixa etária têm direito à creche com professores qualificados e infraestrutura de qualidade. Como uma política intersetorial, a educação infantil estaria articulada a políticas de saúde e de assistência social. Alguns especialistas consultados para a reportagem Novas medidas alteram foco das políticas educativas para a primeira infância2 manifestam preocupação com a possibilidade de que esta lógica de intervenção, centrada na educação, esteja sendo substituída pela assistência social. Em reforço a esta hipótese citam o enfraquecimento do Proinfância (Programa Nacional de reestruturação e aquisição de equipamentos para a rede escolar pública de educação infantil) cuja continuidade estaria ameaçada pelo fim do ree de verbas. A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Ensino (Undime) prevê que a medida provisória 729, recentemente aprovada pelo senado federal, acarrete para muitas cidades, a redução de até 50% dos recursos destinados às creches e crie uma situação de instabilidade e imprevisibilidade quanto ao valor das verbas. Esta medida provisória diz respeito ao programa Brasil Carinhoso que rea recursos para o funcionamento de creches que atendem, justamente, crianças cujos pais são beneficiários do Bolsa Família. Em acordo com a análise de Claudia Fonseca3 sobre dois “coletivos de pensamento” que disputam os rumos das políticas para a primeira infância, a orientação deste programa situa-se na perspectiva que prioriza a intervenção domiciliar com ênfase no estímulo cerebral, no lugar do reforço à qualificação profissional e a ampliação da oferta de creches que favorece a escolaridade e a inserção de mulheres no mercado de trabalho.
A estas leituras sobre a dimensão política dos modos de gestão da primeira infância, eu gostaria de agregar uma pergunta referente à especificidade do público-alvo deste programa e que a meu ver tem ado despercebida. A saber, as famílias beneficiárias do Bolsa Família. Minha pergunta é a seguinte: receber o benefício do Bolsa Família e ter crianças até três anos significará integrar compulsoriamente o Criança Feliz? Se assim for, é preciso considerar que este programa poderá significar também uma nova condicionalidade para o Bolsa Família. É isto mesmo? Não seria a primeira vez que o nome de Osmar Terra associa-se ao tema da compulsoriedade como modo de o a políticas públicas. É de sua autoria o projeto de lei que institui a internação compulsória dos usuários de drogas ilícitas, na contramão de outra perspectiva que vê na medida de internação uma alternativa individualizada e de exceção, jamais empregada de modo coletivo4. Em relação às designações “usuários de drogas ilícitas” ou “famílias que recebem o Bolsa Família” a compulsoriedade da internação ou da visita domiciliar indicam uma mesma tendência a tratar como um coletivo homogêneo, populações muito diversas. Quanto “as famílias que recebem o Bolsa Família” lembremos que participam de um programa de transferência de renda já condicionada à frequência escolar das crianças, ao cumprimento de cuidados básicos em saúde tais como o calendário de vacinação (para as crianças de zero a sete anos) e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e nutrizes. O possível acréscimo de condicionalidade representado pelo Criança Feliz, se confirmado, estaria também na contracorrente da discussão travada internacionalmente acerca da dispensa de condicionalidades em programas de renda mínima. Esta posição é defendida pelos que entendem que a um direito não deve haver a imposição de contrapartidas. Mas, independentemente deste debate controverso, a visitação compulsória de famílias beneficiárias do Bolsa Família com crianças até três anos, a meu ver, coloca em evidência um estereótipo generalista sobre a incapacidade das famílias pobres (e mais precisamente das mães) de criarem e educarem seus filhos de forma adequada. Aliás, este estereótipo serve para explicar muitos de seus problemas, desde a dificuldade de alfabetização das crianças até a violência social e a própria condição de pobreza. A dimensão tutelar da participação compulsória também contraria o processo de autonomização e empoderamento das mulheres identificado por estudos qualitativos que jogam luz sobre as vidas das famílias participantes do programa Bolsa Família5. Em que pese uma grande variedade de arranjos e diferentes dinâmicas familiares, estes estudos ressaltam o caráter generalizado da precariedade das condições de moradia, dos equipamentos públicos com que se conta, inclusive daqueles relacionados às condicionalidades do próprio Bolsa Família, a escola e o posto de saúde. Ressalta-se também as grandes dificuldades enfrentadas pelas mulheres beneficiárias para ingressarem no mercado de trabalho. Como observa Mercedes Rabelo em sua tese de doutorado, todas estas condições são fatores que obstaculizam a ascensão social, causam desestímulo às crianças e contribuem para a reprodução da pobreza6.
Finalmente, uma das notícias sobre o novo programa acrescenta-lhe uma dimensão simbólica que merece ser observada à luz do foco na intervenção domiciliar e pedagógica que o caracteriza. A saber, que a primeira-dama (sim, esta denominação ainda está em uso) atuará como sua embaixadora junto aos municípios. Logo após ter lido esta notícia, deparei-me com a capa da revista Piauí do mês de setembro. Nela, Caio Borges retrata a nova família presidencial à moda anos 50 e com todos os seus ingredientes: uma família de classe média, nuclear, branca, heterossexual, na qual a esposa dedica-se ao lar, ao cuidado das crianças e espera, alegremente, seu marido provedor voltar do trabalho. A justificativa de um “auxiliar presidencial” para a escolha da primeira-dama para o cargo foi a de que “ela é mãe e tem todos os predicados para ajudar nesta área”7. Este argumento me fez lembrar a velha aliança entre o médico e a mãe que marcaram a assistência social na Europa do século 198 e que tanto influenciou o ideal de uma “maternidade educada” característico das iniciativas de proteção à infância na América Latina, sobretudo no início do século 209. Associar ao programa Criança Feliz a imagem de uma maternidade “bela, recatada e do lar” e condicionar o o a uma política de renda mínima à participação no programa, soa-me como uma nova velha forma de tutela das mulheres/mães pobres em nome de um suposto “bem estar infantil”.
[1] <fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/07/20/michel-temer-lanca-programa-crianca-feliz-ao-custo-de-r-2-bilhoes-ao-ano/>
[2]<educacaointegral.org.br/noticias/novas-medidas-alteram-foco-das-politicas-educativas-para-primeira-infancia/>
[3] FONSECA, Claudia. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância. In: FONSECA, Claudia; ROHDEN, Fabíola; MACHADO; Paula Sandrine. Ciências na vida: antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.
[4] A questão das drogas em perspectiva: uma entrevista com Taniele Rui, Maurício Fiore, Heitor Frúgoli Jr. e Bruno Ramos Gomes. Áskesis, v. 3, n. 1, 2014. p. 250-263 < http://neip.info/novo/wp-content/s/2015/04/entrevista-a-questao-das-drogas-com-taniele-rui-et-al-aeskesis-2014.pdf>
[5] Política & Trabalho, n. 38, 2013 <periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/issue/view/1249>. Dossiê 10 anos do Programa Bolsa Família.
[6] RABELO, Maria Mercedes. Redistribuição e reconhecimento no Programa Bolsa Família: a voz das beneficiárias. Porto Alegre, 2011. Tese de doutorado em Sociologia, PPGS/Ufrgs <lume.ufrgs.br/handle/10183/36059>.
[7] < brasilpost.com.br/2016/09/01/marcela-temer-area-social_n_11820852.html>.
[8] DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986.
[9] ROJAS NOVOA, María Soledad. Relaciones de género, instituciones de poder: tensiones em el saber sobre la protección de la infancia en America (1910-1930) < http://cdsa.aacademica.org/000-038/652>.
Para não chorar as mortes que virão z1b12
Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS.
Publicado originalmente na coluna Democracia e Política do site Estado de Direito.
Conjuntura nacional
A derrota do PT e do PSOL em Porto Alegre, onde nenhum partido foi capaz de conquistar um lugar no segundo turno da campanha eleitoral, caracteriza uma conjuntura nacional de recuo da esquerda e ascensão da direita. No futuro, quando as próximas gerações vierem ao espaço público, frente a uma realidade sem direito algum e sob o domínio do Capital, nossos filhos se perguntarão como perguntou Al Gore na conclusão de seu filme Uma verdade inconveniente “- Em que pensavam nossos pais? Porque não acordaram enquanto ainda podiam fazê-lo?” A questão, colocada pelo filósofo Jean-Pierre Dupuy serve de mensagem endereçada a toda esquerda.
O autor, na obra coletiva “O futuro não é mais o que era” organizada por Adauto Novaes (Editora Senac, 2013), também traz outro exemplo que permite entender o lugar da esquerda no segundo turno, ao lembrar a atitude dos responsáveis pelo Greenpeace em dezembro de 2009, na cúpula de Copenhague, onde se manifestaram pelo mundo em que viviam. Lá, os manifestantes ergueram seus cartazes para dizer aos capitalistas um constrangido “Desculpe-nos. Era possível evitar a catástrofe climática. Mas nós nada fizemos”. Da mesma forma, a esquerda que vê atônica representantes da centro-direita e extrema direita assumirem (estou aqui considerando mais os candidatos do que seus partidos) a disputa do segundo turno em Porto Alegre e já sinaliza votar nulo para decidir o Prefeito da capital, e paradoxalmente, esquece a injunção defendida pelos militantes do Greenpeace em seguida no mesmo cartaz: “Aja agora e mude o futuro”.
Sorte moral
Há um enorme paradoxo no sentido que assume este texto, que é de justificar para a esquerda de Porto Alegre porque mudaria o futuro da cidade se votar sim em um dos candidatos que não lhe a pela boca do estômago. Para a esquerda, o futuro da capital já está definido, ele está na disputa de dois projetos de direita, e portanto, de atraso para a cidade, seja de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) ou Sebastião Melo (PMDB), e portanto, é um futuro que já não é possível mudar, mesmo que ainda não se tornou presente.
Para Dupuy, ao contrário, o futuro nos contempla e nos julga agora, e por isso devemos tentar afetar seja lá o que o futuro seja, mesmo nos piores prognósticos. O autor de “O Tempo das Catástrofes” diz que o conceito de sorte moral é o único apoio que temos para apoiar nossa decisão, quer dizer, se temos uma ação a fazer marcada pela incerteza – é melhor votar no candidato da continuidade ou em quem representa os interesses do grande capital? – então precisamos apostar nos acontecimentos futuros que não podem ser previstos no momento de agir. Isso significa para a esquerda, abandonar a ética racional que julga sua decisão de voto por sua ideologia nas eleições do segundo turno em Porto Alegre.
Redução de danos
Defendo que frente a uma disputa entre Marchezan e Melo, a esquerda não deve deixar-se guiar pela emoção mas reconhecer que estamos diante de um mundo de apostas onde “o futuro é incerto e arriscado” (Dupuy, p. 193). Escrevi sobre as razões que considero o projeto de Marchezan ruim para a Prefeitura no Jornal O Estado de Direito e peço que o leitor retorne a eles (http://bit.ly/2d6pfB3 e http://bit.ly/2cued2U) pois é com base nesta análise que estou aqui defendendo que a esquerda vote em Sebastião Melo como forma de “redução de danos” ao serviço público da capital.
Foto: Pedro França/Agência Senado
Explico-me. Todo o problema para mim reside no fato de que a esquerda deverá julgar se é certo abandonar suas crenças e votar no “menos pior” dos candidatos, que para mim é Sebastião Melo, mas só poderá avaliar isso retrospectivamente, isto é, depois que ele por ventura seja eleito. Quer dizer, para mim, a decisão dolorosa para a esquerda é de defender o voto em Sebastião Melo (PMDB) e não em Nelson Marchezan Jr (PSDB) porque ela só conta com a ideia de sorte moral para apoiá-la em sua decisão diante de um futuro incerto. Infelizmente, diz Dupuy, a sina da sorte moral é a mesma que serviu para Joseph Goebbells, que teria dito:” Nos entraremos na história ou como os maiores homens de Estado de todos os tempos ou como os maiores criminosos”. O que significa em termos práticos sorte moral? Que uma mesma ação, aqui no caso votar no candidato centro-direita em Porto Alegre, será julgada moralmente boa se Melo ceder e atender pautas da esquerda e será julgada moralmente errada se Melo pactuar com a esquerda e a trair.
Porque a esquerda teme apoiar Melo? É como na fábula do filósofo alemão Gunther Anders (1902-1992), citada por Dupuy, onde é contada a história do episódio bíblico do dilúvio “quando o dilúvio tiver levado tudo o que é, tudo o que terá sido, será tarde demais para lembrar porque não existirá mais ninguém”. Não é exatamente esta a situação da esquerda, vivendo com o dilúvio de direita de norte a sul do país, a sensação de que, quando isto tudo terminar, nada mais existirá do que um dia já foi seu? Para Dupuy, o problema dos profetas da catástrofe petista está no fato de que suas criticas não penetram no sistema de crenças da esquerda – ok, a esquerda perdeu o primeiro turno, deve afastar-se (leia-se voto nulo) porque não há mais nada a fazer, este mundo não lhe pertence mais – mas é justamente o “porque não existirá mais ninguém” que exige que a esquerda faça alguma coisa para não “chorar os mortos de amanhã” (Dupuy, apud Anders, p. 196), ou seja, suas vítimas. Ou como noutro exemplo de Dupuy, reiterado pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, assim como há mais de um quarto de século sabemos as consequências climáticas do aquecimento mas pouco fazemos para mudar nosso meio ambiente, da mesma forma sabemos como se comporta o desejo neoliberal mas teimamos em reconduzir a direita neoliberal ao poder.
Encruzilhada da estratégia política
Prefeitura de Porto Alegre
Foto: Rhcastilhos/Wikipedia
O ponto que resta, portanto, é que em politica, a negociação é uma moeda forte para a conquista do poder. Primo Levi afirmava que “as coisas cuja existência parece moralmente impossível não podem existir”, e isso tem um profundo significado para a esquerda da capital , ela precisa reagir a cegueira da evidência de que nada mais há o que fazer: mesmos governos de direita podem ser legitimados pelo voto, o que significa que, ao contrário do que diz Levi, que o que parece moralmente impossível de acontecer, as vezes acontece. Quer dizer, a esquerda está numa encruzilhada da estratégia política. Ela precisa discutir como conquistará nas próximas eleições o poder baseada na única alternativa possível, a frente ampla, já que as iniciativas isoladas mostram eleição após eleição que a esquerda fragmentada não tem forças para disputar sozinha o poder. O quadro foi resumido por Luis Felipe Miguel, autor de Desigualdades e Democracia (Unesp, 2016, leiam!): para ele está mais do que claro que precisamos de uma “frente ampla de esquerda para unificar a resistência no Brasil”. Ela só ocorrerá quando a extrema esquerda reconhecer que precisa do PT para compô-la e que não pode partir sozinha como fez Luciana Genro (PSOL).
Reconhecer os erros
O PT precisa também reconhecer seus erros, que “conciliou demais da conta, chafurdou na lama, incorreu em práticas lastimáveis, foi oportunista, aliou-se a alguns dos nomes mais sujos da política brasileira e, pior ainda, permitiu que alguns deles se tornassem petistas “, e a ausência desse mea-culpa foi o que que produziu o distanciamento do PT das demais correntes da esquerda, opinião de Miguel com a qual concordo. Ela ocorreu porque ainda há “um rastro de ressentimentos mais do que justificáveis”, mas o fato é que o partido ainda tem um importante peso nos movimentos sociais. Miguel também vê com criticas as “aspirações do PSOL de ser o PT do futuro”, o que implica em competição entre as esquerdas, que, no nosso entendimento, foi a grande razão da derrota da esquerda em Porto Alegre. Finalmente, Miguel considera que deve haver aproximação dos dois lados, tanto do PT como do PSOL, que vão ter de “aprender a conversar de igual para igual com as outras forças” , diz. Isso a longo prazo.
No curto prazo, a esquerda tem uma eleição municipal da capital para definir sua posição: se optar pelo voto nulo, para mim, que sou servidor público, estará elegendo o candidato de extrema direita, Nelson Marchezan Jr e tudo o que ele significa para este campo, como arrocho salarial dos servidores, perseguições (como fez com a Cristalvox), parcelamento de salários e terceirização, etc. A esquerda precisa saber que ainda tem responsabilidade pelos próximos quatro anos, que não tem o direito de lavar as mãos, pois deve solidariedade aos cidadãos na próxima legislatura, as “gerações futuras”, de que fala Dupuy e, se não os considera, deve solidariedade ao menos os servidores públicos municipais, que mantém a cidade. Se os servidores estiverem mal, a cidade estará mal. Todo o servidor é um cumpridor do seu dever, mas o servidor é um ser humano e fica mais difícil trabalhar com salários parcelados, retirada de direitos, ausência de reajuste salarial, engessamento de progressões, retirada do difícil o e outros direitos garantidos em lei.
Lutar por uma istração menos pior
Isso reflete, queiramos ou não, na qualidade dos serviços públicos na saúde pública e nas escolas. É só olhar a condição dos trabalhadores do Estado. Não se trata de corporativismo do servidor, se trata de defender princípios de justiça numa sociedade democrática e junto aos trabalhadores do município: a esquerda, ao recusar lutar por uma istração “menos pior” acredita que não há reciprocidade entre os eleitores atuais e das próximas eleições, e por isso, pode abandoná-los a sua própria sorte na expectativa de que aprendam a lição do que acontece quando elegem um prefeito de extrema direita. Mas esquece que é a máquina pública está em perigo se Marchezan for eleito! É esta geração de eleitores que está sendo abandonada pela esquerda: por isso a esquerda precisa voltar ao cenário político neste segundo turno, precisa negociar, precisa fazer valer algo do projeto de esquerda mesmo entre os inimigos declarados.
É possível, ainda que improvável, que Melo tenha uma personalidade não submissa ao PMDB; é difícil, mas não impossível, que Melo cumpra acordos com a esquerda e incorpore parcela de uma agenda acordada em sua gestão. Melo deu provas de que é um : os servidores da Câmara Municipal , onde foi presidente, elogiam sua istração devido os avanços que implementou e as reformas que fez. Na Câmara, de fato, era um presidente de diálogo e sua posição de vice-prefeito não permitiu essa face emergir na relação com os servidores. Isso reforça a ideia de que o ideal de marketing adotado por sua campanha, de que era verdade qie havia ali um trabalhador. A esquerda acredita que Melo e Marchezan são iguais: eles não são, simplesmente porque suas personalidades são diferentes. Resgatar um autêntico PMDB nas veias de Melo é como encontrar o lado bom de Darth Vader – mas como no filme, no fundo, no fundo, ele estava lá. Melo é o Darth Vader da esquerda.
Foto: Esteban Duarte/CMPA
Nossa questão é que a esquerda deve evitar uma catástrofe maior. Isso quer dizer que a esquerda deve deixar de acreditar que sua luta contra o neoliberalismo e portanto a luta contra os candidatos que encarnam o ideal de mercado não se faz mais neste momento, mas nas próximas eleições? É claro que não! Por exemplo, a esquerda pode incluir em sua agenda, na eventual possibilidade de um apoio, que defendo, além da defesa dos direitos sociais, o projeto de contratação de guardas e outras medidas defendidas ou por Raul ou por Luciana. Pode incluir também a defesa da extinção da INVEST POA, fundação criada no governo Fortunati com o objetivo de investir no mercado de ações, usando para isso o patrimônio da Prefeitura – esta não foi uma das ações mais neoliberais de seu governo? Se Melo concordar em interromper suas atividades por 4 anos, já terá sido uma vitória!
Não há reivindicações com mais peso que as outras, mas há a possibilidade de construção de uma agenda comum compartilhada com setores da esquerda, produto de negociação para condução de Melo ao segundo turno. Redução de danos. Para a esquerda, os interesses políticos de centro-direita e esquerda são iguais, para mim não porque considera o fato de que as personalidades das lideranças importam e por esta razão, ainda que integrantes de partidos de posições semelhantes, podem ser diferentes as gestões. Ao menos, a esquerda tem a obrigação de continuar na mesa do contrato social, a esquerda precisa ter consciência de que o voto do povo na extrema-direita (Marchezan) traz como destino, para mim, a destruição do serviço público municipal como conhecemos, e portanto, impõe-se de forma absoluta lutar contra as consequências. Ainda não terminou o tempo de negociar nestas eleições, e em Porto Alegre, isso significa abandonar a postura ional que impulsiona a esquerda a votar nulo e retornar a mesa de negociações: Melo precisa de votos por esta razão precisa ceder em uma negociação com a esquerda. E ele cederá.
Obrigação de prestar contas
A esquerda perdeu a chance de participar do segundo turno e tem obrigações de prestar contas. Perdeu por seus erros, perdeu pelas decisões estratégicas que tomou. Não é possível colocar tudo no mérito da direita, ou do apoio da RBS, ou qualquer outro veículo. A esquerda colaborou para seu fracasso e tem de prestar contas do que fará de agora em diante. Toda a parábola retrabalhada por Anders sobre Noé e citada por Dupuy quer realçar o luto das mortes que ainda não se produziram, imagem simbólica que serve para falar da política local para as perdas que se seguirão. Ela sugere que ainda é possível a inversão do tempo na política, de que é possível colocá-la no ciclo onde, mesmo com as previsões que se produzem do futuro, da desgraça anunciada, que elas possam não se realizar, mas para isso, não pode “abandonar o barco”. Como no caso de Noé, onde o anúncio da catástrofe serviu para que inúmeros trabalhadores viessem ajudá-lo a construir a barca, o mesmo vale para a esquerda, onde seu seu objetivo é “precisamente motivar uma tomada de consciência e agir para que a catástrofe não se produza”.
Por isso, quando dizemos que a esquerda é capaz de prever a catástrofe que se avizinha com a eleição da direita para Porto Alegre, que a catástrofe é maior com a eleição de Nelson Marchezan Jr do que com Sebastião Melo, é uma pre-visão, no sentido apontado Dupuy: ” ele não pretende dizer o que será o futuro, mas simplesmente dizer o que teria sido o futuro se não se tomasse cuidado”(Dupuy, p. 201). Aqui, isso significa que o futuro imaginado com a vitória de Sebastião Melo é um futuro ruim possível, mas pode ser mais familiar, ao menos para os servidores públicos municipais, do que o futuro prometido por Nelson Marchezan Jr. Se a ação da esquerda for eficaz, o pior futuro não se realizará e isto será um alento: será menor o número de empresas públicas vendidas, será menor o número de direitos dos servidores públicos retirados, etc, etc, o que está no horizonte ideológico ou simplesmente nos….sonhos do candidato Marchezan.
Jogar com o fogo
A salvação da esquerda está em usar a astúcia da visão do destino catastrófico da cidade com a extrema direita. Afastar o pior caminho, retardar seu inicio, desejando escapar por um triz do pior projeto possível, eis a missão da esquerda no segundo turno das eleições municipais em Porto Alegre. Será sábia a esquerda que evitar a emoção do momento e jogar com o fogo: “não nos aproximamos demais dele porque corremos o perigo de nos queimar: também não nos afastamos demais porque ele nos protege, lembrando-nos sem cessar o perigo ao qual ele nos expõe. Em outros termos, como dizia o poeta Hölderlin, o que pode nos salvar é o mesmo que nos ameaça: lá onde cresce o perigo cresce também o que salva”(Dupuy, p. 207).
As estruturas não descem às ruas 4c1e6s
Paulo Timm – Economista
“Se erros foram cometidos devem ser corrigidos e não mais repetidos”
( Ex-senador E. Suplicy, ao comentar sua eleição recente para a Câmara de Vereadores de S.Paulo; foi o mais votado com mais de 300 mil votos)
1. Encerrado o primeiro turno das Eleições 2016 três observações se impõem preliminarmente: primeira, o grande vencedor deste pleito foi a rejeição de 40 milhões de eleitores, entre Abstenções + Nulos + Votos em Branco, ao que aí está, o que é um nítido alerta para a urgência de Reforma Política e Eleitoral; segunda, o PT levou uma surra, talvez mais por rejeição às suas práticas do que pela “revoada liberal”, tanto nas capitais como no Nordeste, devendo alertá-lo para uma renovação no discurso de suas lideranças no sentido de avaliar as razões internas para este refluxo e não apenas acusações a terceiros; terceira: o sistema pluripartidário, tão criticado por dificultar a governabilidade, está consagrado no país.
2. Quanto à derrocada do PT, fato mais marcante do pleito de 2016, não se deve falar nem em alvorada de um novo tempo, nem em crepúsculo da sigla. Nem invenção, nem reinvenção. Apenas percalços. Internamente, será muito difícil este Partido mudar sua dinâmica interna, com a acirrada disputa de correntes, algumas delas francamente principistas quanto ao caráter de “classe” do Partido, voltado ao cumprimento de missão messiânica, e quanto à sua vocação para a construção do “socialismo”. Externamente, no contexto político nacional, o PT, apesar de ter perdido milhões de eleitores e metade das prefeituras que ocupou em 2012, continuará a ser um grande partido. PMDB e PT, aliás, continuarão a ser os dois maiores Partidos no país – e por longo tempo. Quase “irreversíveis”. Se organizaram, ao longo do tempo, no vasto território nacional e detêm, ambos, importantes canais de controle do processo eleitoral. Voto não é apenas um apertar solitário de botão na calada da urna. É uma “rede”, sempre mais ou menos aprisionada à “interesses”. Não é fácil montar e manter isso. Fica aqui a lembrança para que se assista com atenção duas séries no NETFLIX: “Marselha” e “House of Cards”. Tratam do assunto.
3. Quanto aos outros Partidos, o PSDB, segundo em votos e controle de Prefeituras, mas “terceiro” na hierarquia simbólica, até pelo peso de seus grandes nomes, dentre eles o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla José Serra/Aécio Neves, ambos ex candidatos à Presidência da República com 50 milhões de votos, e agora o Governador de São Paulo, já está com maior número de eleitores, mas ainda não conseguiu se organizar nacionalmente. O PSOL, em contrapartida, surpresa da vez, pela vitória relativa do deputado Freixo, que disputará, com desvantagem, com Marcelo Crivella o segundo turno na cidade do Rio, ainda é um fenômeno urbano, tipo PODEMOS na Espanha. Deverá até se consolidar como uma alternativa de esquerda mais consistente e sem os pecados do PT, mas, tendo saído de seu ventre, padece de vícios semelhantes, como a disputa interna marcada pela intolerância doutrinária, pela qual perdeu até ex candidata à Presidência em 2006, Heloísa Helena. Mas o PSOL não tem uma liderança popular de massas, não tem visão para a construção de um Projeto Nacional, não tem articulação com movimentos sociais e sindicatos, não tem envergadura no país para ocupar o vazio deixado pelo PT. Pior: terá, no máximo, duas Prefeituras…
4. Uma característica pouco notada destas Eleições Municipais 2016 foi a consagração de um conjunto de partidos com forte expressão eleitoral, além dos tradicionais PMDB – PT – PSDB , que dominam há mais de três décadas a vida pública do país. Ela é o resultado de duas medidas: a flexibilização para a fundação e funcionamento dos Partidos, sem qualquer cláusula de restrição, e do apoio financeiro do Governo, através, não só do generoso Fundo Partidário, cujo Orçamento já beira o R$ 1 bilhão, mas também ao subsídio que dá às emissoras de rádio e TV para custear a propaganda eleitoral obrigatória. O PSD, o PDT, o PSB, o PR , o DEM e o PTB controlarão entre 200 e 400 municipalidades cada um. Outro grupo menor, o PPS, PRB, PV, PSD e PCdoB , em torno de 100. Ora, isso revela uma diversificação partidária muito grande que está combinando opções de caráter ideológico com alternativas de interesses até pessoais. Debita-se à essa diversificação permissiva a ingovernabilidade do país e que agora estará se deslocando para “Prefeituras de Coalização”, agravando o loteamento de cargos e do Estado. Talvez. Mas há que se considerar, também, que este processo é uma porta à abertura de lideranças que, de outra forma, seriam sufocadas pelas oligarquias que dominam os partidos mais antigos e mais fortes. Nesse sentido, ainda que paradoxalmente, a diversificação partidária é uma válvula à democratização da vida pública e, por vias tortas, um dos mecanismo de reforma política no país.
5. É possível se falar em retrocesso da esquerda, à vista do fracasso do PT, nessas eleições, como consequência de uma onda conservadora que varre a América Latina? Depende do que se entende como “esquerda”, tal como o PT a empolgou. Certamente, os brasileiros disseram um rotundo “Não” ao discurso do “Nós contra Eles” do PT que acompanhou a estigmatização da classe média, tão cara ao empreendedorismo, à meritocracia e aos valores republicanos. Contudo, várias pesquisas continuam afirmando que os brasileiros almejam um modelo político-econômico com economia de mercado e forte intervenção do Estado como instrumento de regulação, promoção da cidadania e defesa dos mais vulneráveis, justamente o que os petistas diziam defender. Daí, aliás, os cuidados do Presidente Temer quanto às “Reformas” inseridas no seu “Ponte para o Futuro”, tão proclamadas, mas em rigoroso ponto morto. Não há clima na nação, nem no Congresso Nacional, para aventuras liberalizantes, ao gosto do novo PSDB de João Dória, Prefeito eleito de São Paulo. Sua vitória acachapante na quase totalidade das zonas eleitorais da cidade se, por um lado, consagra a tendência politicamente mais conservadora desta capital frente ao Rio, Porto Alegre e Recife, históricos redutos da esquerda, por outro, sugere a incapacidade do Prefeito Haddad para se firmar na periferia, com seus projetos urbanisticamente avançados. O espaço aberto foi ocupado pela astúcia tucana. E falando nos redutos históricos da esquerda, veja-se: o Rio, mantém sua tradição rebelde, ao levar Freixo para o segundo turno, Recife sustentou o próprio PT no segundo turno e vai disputar com outro candidato de esquerda e apenas em Porto Alegre e outras cidades de maior porte do cenário rio-grandense, percebe-se, mesmo um retrocesso da esquerda. Isso me lembra uma velha queixa dos maragatos, que combatiam em armas os chimangos, arautos da esquerda no Estado do RS, instalados no Palácio Piratini entre 1889 até 1930, inicialmente pela mão de ferro de Júlio de Castilhos, depois de Borges de Medeiros, depois Getúlio Vargas: “Não é por acaso que eles são autoritários…” Lembre-se, entretanto, voltando à cena nacional, que o PCdoB, aliado incondicional do PT, ou de 51 para 80 prefeituras, o PDT, outro aliado, embora mais vacilante, cresceu de 330 para 334, o PSB fez 414, as quais, somadas as 256 vitórias do PT perfazem 1/5 do total das municipalidades do país. O que não é pouco. Não carece de se falar em grande retrocesso da esquerda no país. Além dos resultados eleitorais, aí estão os movimentos sociais em inédito protagonismo, principalmente jovens estudantes. Estamos, sim, diante de uma nova realidade na esquerda brasileira frente à perda de hegemonia do PT e emergência de novos protagonismos aos quais deverá se articular, de uma ou outra maneira, o PPS, em nova rota, a REDE de Marina Silva, embora em declínio, e o próprio PV, sempre cioso de sua maior independência. Isso sem falar na esquerda peemedebista, à la Requião no Paraná.
Conclusão
ada a “tempestade” destas eleições – surpreendentes em todo sentido – , do impacto do Impeachment de Dilma, d aLAVAJATO, que daqui a pouco serena seu ímpeto deixando uma sequência de sentenciados em suas poltronas sob o controle de meras tornezeleiras eletrônicas, da brutal recessão econômica que o PT ainda se recusa a itir e de itir sua parcela de responsabilidade, voltaremos às ” estruturas”, marcadas pela presença, à esquerda, pelo PT e movimentos sociais e, oxalá, novos agentes, ao centro pelo PMDB, suas Prefeituras e amplas classes médias ao longo do país e , à direita, pelo PSDB, apoiado pela grande mídia e grandes fortunas. Elas, as “estruturas”, aliás, como diziam os estruturalistas teóricos em maio de 68, na Paris convulsionada, “não descem às ruas”. Mas estão lá…E se não aprenderem a conviver com um mínimo de civilidade republicana, não construiremos a democracia.
Com a recuperação do bom senso, daqui a pouco estaremos, todos, discutindo a sucessão presidencial de 2018.
Primeiras reflexões sobre as eleições de 2016 3w2zn
Algumas impressões e reflexões sobre o dia de ontem. Chamou-me a atenção o alto número de votos brancos/nulos e abstenções. Tudo leva a crer que de fato estamos nos aprofundando em um processo que traz duas faces: de um lado a criminalização da política, de outro a busca, ainda tateante, de uma nova política. Parte da juventude que foi às ruas em 2013, especialmente os grupos que iniciaram as Jornadas em Porto Alegre, São Paulo e depois outras capitais, representa a insatisfação com a democracia representativa e a velha política dos partidos, devem somar-se a esses jovens os secundaristas que ativamente se mobilizaram ao longo de 2015 e 2016. Nota-se nesta turma toda uma grande paixão política, uma vontade de construir uma ação política com P maiúsculo, mas que ainda não encontrou sua forma mais estável. Foi ao ver tais jovens em ação que fiquei feliz nos primeiros lances de 2013.
Por outro lado, no rastro aberto pelo início das Jornadas vieram as consequências de uma velha política que se disfarça no Brasil, mas que não tem nada de nova (a Revolução de 30 foi uma insurgência contra a “democracia” da República Velha, o discurso da política corrupta e generalizada favoreceu os militares, vistos como não políticos, e foi a ruína de Getúlio, Jango, JK e agora Lula): a construção da imagem de que a democracia é um engodo, de que políticos são dinossauros corruptos, que política, direito e moral devem todos ser a mesma coisa, e que a melhor leitura disto é o modelo de indivíduo atomizado e isolado, assim cada qual que se responsabilize pela própria desgraça. Tal imagem social é aprofundada entre nós pela forte investida religiosa fundamentalista no campo público.
Vejam que além do alto número de votos nulos/brancos/abstenções verificou-se uma grande dificuldade de as situações se manterem (o que atingiu o PT mas também o próprio PMDB). João Dória em Sampa foi eleito sob a aparência de não ser um político, o mesmo aconteceu com Sartori no RS (“meu partido é o Rio Grande”).
Vejo que se prepara cada vez mais no Brasil o terreno para uma Berlusconização do país. Alguém que não seja da política tradicional, que represente para a grande parcela da população, teleguiada pela mídia hegemônica, um salvador da pátria. Ontem foram os militares, hoje podem ser os juízes. Não me iraria se alguém como Moro ou Joaquim Barbosa for eleito Presidente do Brasil em 2018.
Para as esquerdas, o desafio é duplo. De um lado, deve resistir ao processo de criminalização da política e dos retrocessos sociais que podem vir daí, dos quais o pior, sem sombra de dúvida, é a descrença das pessoas em qualquer trabalho coletivo, comunitário e solidário, restando apenas a razão cínica, calculatória, egoísta e predatória, favorecida pela lógica do salve-se quem puder. De outro lado, a esquerda deve se reinventar, para além da dinâmica partidária, deve novamente ressurgir das bases, dar lugar para as novas gerações e suas novas gramáticas, saber dialogar com essas novas forças emancipatórias, não estabilizadas ou institucionalizadas. A nova unidade de esquerda deve vir desse processo das bases. Dificilmente virá de conciliações quase impossíveis entre os braços partidarizados da esquerda brasileira, mas deve ar também por aí. Este é o verdadeiro trabalho de reconstrução das esquerdas, que no Brasil devem sim trabalhar com o imponderável de 2018, mas sem deixar que este front paralise todo o resto, pois, sinceramente, penso que o “resto” é o que mais importa agora para a retomada de um projeto inclusivo, plural e democrático para o Brasil.
Golpe e religião 3o2ks
João Alberto Wohlfart
Com o golpe aplicado na Presidenta Dilma Rousseff e na caça às bruxas contra o ex-Presidente Lula e contra o PT, há um forte ingrediente religioso que nos ajuda a compreender o que está acontecendo. No Golpe militar de 1964 muitos bispos, padres e cristãos louvaram o ato como uma dádiva divina que salvaria o país do terror do Comunismo. Entre os golpes de 1964 e 2016 há um sutil diferença, pois naquele o inimigo absoluto era o Comunismo, enquanto neste os inimigos absolutos são Lula e o PT. Na caçada ao inimigo absoluto e na tipificação do demônio, a Religião exerce um papel fundamental inteligentemente empregado pelas classes dominantes que aplicaram o golpe.
A Religião é um fenômeno de muitas facetas, além do pluralismo religioso como uma das marcas de nosso tempo. Sabemos da forte presença da Igreja Católica na História do Brasil e da sua incidência decisiva na formação social e cultural do país. A História do Brasil e a formação do ethos cultural brasileiro tem a marca histórica do batismo cristão. Durante séculos, a presença do Catolicismo não tem nenhum aspecto crítico, mas a marca da cruz e da espada assinala a benção divina ao colonialismo, ao neocolonialismo, ao imperialismo, ao machismo, ao racismo e ao patrimonialismo. E é pelo batismo cristão que os índios e os negros não têm alma, são semisselvagens e não se prestam para as mais nobres castas católicas, tais como a santidade cristã e o sacerdócio.
Ao longo da história do Brasil a Religião Católica teve presença invisível e decidida para a afirmação e consolidação da sociedade patriarcal machista. A atual classe dominante deve agradecer à religião por tão grande dádiva e que contribuiu decididamente para inscrever no interior da sociedade brasileira tal estrutura. Tem tudo a ver a antinomia entre a casta sacerdotal cristã e a massa escrava com a atual casta do judiciário e o ódio da classe dominante da Democracia e do Povo. Durante os séculos de História Brasileira a Religião Cristã imprimiu na sociedade uma profunda convicção segundo a qual a estrutura social é formada a partir da vontade pura e soberana de Deus, portanto imutável. Em função desta influência, ainda não conseguimos quebrar o modelo social patriarca que se se formou historicamente segundo a vontade divina.
Durante o período da ditadura militar a postura da Igreja Católica muda radicalmente. Impulsionada pelo Concílio Vaticano II e pelas Conferências latino-americanas, formam-se significativas lideranças populares e a Igreja Católica a a ocupar-se de temas como a transformação social, a justiça social, a reforma agrária, a presença na política, a dívida externa etc. Durante algumas décadas, a ação da Igreja foi inseparável da ação política da conscientização das massas diante das estruturas dominantes. Durante as décadas de 70, 80 e 90, a Igreja saiu da sacristia, não se preocupou tanto com a salvação das almas e vinculou a evangelização à ação de transformação social. Nestes tempos, a presença da Igreja teve um viés social, ético e político decisivos para a formação da consciência e politização das massas. Numa ação que teve como carro-chefe as comunidades eclesiais de base, os círculos bíblicos e a ação política, o catolicismo lançou profundamente as suas raízes na base social, o que criou as condições para um efetivo caminho de transformações sociais. Este processo teve como desdobramento político a fundação do PT e a eleição de Lula para a Presidência da República, em 2002. O trabalho de base também contribuiu para a abertura democrática do país e dos principais eventos que o constituíram.
As décadas de 70 e 80 foram especialmente férteis de uma base intelectual libertadora e emancipadora. Tiveram intensa efervescência a Teologia da Libertação, a Filosofia da Libertação, as Pedagogias Crítico Sociais e Dialéticas, em intelectuais como Paulo Freire e Ernani Maria Fiori expressam a fecundidade do período. Mas, dentro da Igreja Católica, aconteceu uma reviravolta radical na monarquia romana com a eleição de um patriarca polonês ao papado, quando chegou ao comando da Igreja Católica um polonês vindo da reação ao Comunismo. A ação deste Papa foi duríssima, no silenciamento de centenas de intelectuais católicos, no radical enfraquecimento do viés político da ação da Igreja, na romanização, na centralização e unificação da doutrina, na reviravolta ortodoxa e ultraconservadora da religião.
Entre os monarcas absolutistas João Paulo II e Bento XVI o catolicismo viveu quase 35 anos de ditadura, com a imbecilização e mediocrização de seus fiéis e a condenação de muitos de seus intelectuais. No Brasil, percebeu-se o progressivo enfraquecimento do viés político da evangelização da Igreja e a sua volta à grande disciplina e à sacristia. O modelo de Igreja construído por estes dois patriarcas contribuiu muito para desqualificar a ação política e para rotular autoritariamente os integrantes das esquerdas de comunistas. Nos últimos tempos os padres e os políticos comunistas quase desapareceram… Na atualidade, a presença da Igreja Católica na sociedade brasileira é caracterizada por um significativo grau de moralidade e credibilidade social, mas com insignificante presença no processo de transformação social.
O acentuado ritualismo litúrgico e devocionismo do catolicismo brasileiro cedeu espaço para as religiões neopentecostais repletas de fiéis. Isto é evidente e visível pela chamada bancada evangélica do congresso nacional e na inexistência de uma bancada católica no mesmo parlamento. O progressivo recolhimento católico nos espaços sagrados das sacristias e das igrejas corresponde com a ocupação destes mesmos espaços pela religiões neopentecostais atualmente presentes de forma intensiva nas bases sociais e nas instâncias políticas. Atualmente, estas religiões estão ramificadas nas instâncias políticas de todas as esferas da federação, em vários partidos políticos, em vários setores da economia e em vários órgãos estatais. Líderes religiosos são donos de meios de comunicação, fazendas, empresas, com incidência decisiva nos rumos da economia e da política. Preocupante é o viés ultraconservador que as religiões atualmente proporcionam para a sociedade, um ingrediente decisivo para o domínio neoliberal.
A ramificação da religiões para dentro da sociedade, na atualidade, é comparável com a circulação do sangue por todas as partes do corpo. Talvez, na atual configuração da conjuntura brasileira, a religião não é um componente da superestrutura da estrutura econômica, como pretendia Marx, mas infraestrutura da estrutura social e econômica. Ela proporciona uma visão ultraconservadora necessária para a legitimação do modelo econômico neoliberal e dos interesses econômicos das elites que mandam no país. A religião não proporciona uma visão de mundo sistematizada e uma intelectualidade esclarecida, mas estende a santidade sacerdotal às castas do judiciário, do ministério público federal, das câmaras federal e estaduais e em todas as esferas da política. a decisivamente pela religião a formação de uma casta social autodenominada “homens de bem”, uma classe de perfeitos que se inspiram na bíblica e na “justiça”, para se justificar diante da sociedade.
Numa situação paradoxal diante da sociedade secularizada, a forte incidência religiosa resulta na formação de uma casta sacerdotal social, de homens perfeitos e de bem, e condena ao ostracismo uma grande maioria social. Neste universo encontram-se os negros, os índios, o MST, os trabalhadores, os homoafetivos, as mulheres, os nordestinos etc. Com facilidade, estas classes se transformam em réus dos procedimentos tipicamente judiciais e as suas organizações são criminalizadas. Com o golpe, como os parâmetros de Justiça e de Direito foram jogados na lata de lixo, sobrou uma casta sacerdotal que condena os infratores, destacadamente os de esquerda e os comunistas.
Na atualidade, a tendência religiosa neopentecostal não apenas caracteriza uma determinada confissão religiosa, mas ela está infiltrada em todas as religiões. Como a pregação está baseada na prosperidade material, e como no Brasil houve uma significativa ascensão social, estas religiões encontram um terreno fértil para a seu desejado sucesso na sociedade. A prosperidade material que aconteceu nos últimos anos não é dada aos governos que promoveram as políticas para que isto fosse possível, mas muitos acham que é uma dádiva divina. Por outro lado, a Igreja Católica, mesmo presente em todo o território nacional, atualmente não tem força para fomentar um processo efetivo de transformação social.
Está muito claro que a ditadura que vivemos atualmente é muito pior que aquela que se instaurou em 1964. Dentre as muitas diferenças, uma nos parece fundamental. É claro que naquele contexto os religiosos católicos apoiaram o golpe como uma dádiva divina e como uma vitória contra o grande demônio do comunismo. Mas expressivas lideranças católicas se deram conta da farsa, denunciaram a ditadura e implantaram uma intensa força popular para a conquista da liberdade. Na ditadura atual, contrariamente, o conjunto das religiões se transformou na grande aliada. As forças mais conservadoras do país estabeleceram o casamento entre os seguidores da bíblia e o neoliberalismo, entre religião e capital, entre homens de bem e a direita raivosa.
No atual contexto do golpe não há vozes proféticas provenientes das religiões, especialmente da católica. Grande parte dos católicos não têm consciência esclarecida dos fatos e louvam os golpistas, repetindo, em grande intensidade, o discurso dos meios de comunicação. Como foi perdida completamente a base social crítica dos anos 70 e 80, e com ela o viés político do catolicismo, os cristãos estão perdidos e mediocrizados no senso comum religioso e na ignorância política. Na contramão da sociedade secularizada, que se torna indiferente à religião e a critica como uma espécie de alienação social, encontramo-nos numa sociedade profundamente religiosa que usa o sentimento religioso como uma poderosa ferramenta para encobrir a lógica capitalista de exploração.
O fenômeno religioso em geral, e nela se incluem todas as religiões, têm influência decisiva na formação da “moralidade” social. É o moralismo dos homens de bem, dos homens perfeitos, dos moralizadores da sociedade, contra os condenados sociais. O nome destes condenados não precisa ser colocado aqui, que pode ser resumido na larga base social dos historicamente excluídos. Alguns eventos que envolvem o golpe, dentre os quais o fatídico 17 de abril quando o nome de Deus foi amplamente invocado, mostram que a nossa sociedade é historicamente teocrática. A histórica estrutura teocrática da sociedade é legitimadora do patriarcalismo, do neocolonialismo, do machismo, do escravagismo, do imperialismo capitalista, do maniqueísmo social. Na atualidade, há poucos sinais na religião que apontam para a sua potencialidade humanizadora, crítica e transformadora, mas ela sempre é usada para sustentar ditaduras e encobrir formas de exploração. No Brasil da história e da atualidade, há uma radical proximidade entre a intensa religiosidade e o estrutural patriarcalismo.
Ao ver claramente o papel que a religião está exercendo no atual contexto de golpe e de ditadura, nada mais significativo que invocar o conhecido ditado proferido pelo velho filósofo Karl Marx: “a religião é o ópio do povo”. Está claro que no contexto atual nenhuma religião está focada na libertação e na transformação social, como a Igreja Católica nos anos 70 e 80. O tipo de consciência religiosa e de fé das religiões atuais nada mais representa que uma legitimação do golpe e do projeto ditatorial que vivemos. O misticismo religioso é o que o sistema econômico e os ditadores precisam para silenciar o povo e legitimar os seus interesses.