A moralização dos pobres 1f1k4r

 Marilia Verissimo Veronese Doutora em Psicologia Social pela PUCRS. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS As classes médias e altas estão sempre prontas a uma cruzada pela moralização dos pobres. Para elas, existe o bom pobre e o mau pobre: o primeiro é humilde, servil, respeitoso com “os de cima”, aceita trabalhar à exaustão por uma remuneração baixíssima, não reclama da sua condição. Está sempre agradecido/a pelo (pouco) que lhe concedem os mais aquinhoados. Se ganha roupas que saíram do armário de seus patrões (mais para liberar espaço do que para aquecer alguém), fica agradecido e deixa-os com a sensação agradável de serem boa gente, gente caridosa. Toma o elevador de serviço, exclusivamente, e concorda que mobilidade social só através de muito trabalho duro (sem, obviamente, comentar que trabalha duríssimo a vida toda e a mobilidade raramente vem). Se for religioso e atribuir à vontade de deus a desigualdade social, tanto melhor! E se contar como, na favela ou periferia onde reside, alguns de seus vizinhos são preguiçosos e não gostam de serviço pesado, am o dia a tomar cerveja fiada no boteco e por isso é que não vão pra frente, ganha o prêmio de “pobre ideal”! Ninguém comenta que ele/a trabalha duro pra caramba e também mora ali, não conseguindo se mudar para mais perto do trabalho. E toma ônibus lotado e demorado todo dia. As mães de filhos de pais diferentes são apontadas como responsáveis pelo abandono dos homens com quem se envolveram, afinal, “não se deram ao respeito”. Se, desesperada e exausta, ela apela para um aborto clandestino na oitava gravidez e morre de hemorragia, dirão: “Bem feito. Assassina”. Poucos falam do homem que a abandonou, e ninguém comenta que a filha ou esposa do patrão também já fizeram aborto, pagando 5.000 reais na clínica chique do doutor rico que sai nas colunas sociais; para essas, afinal, está liberado. E segue a hipocrisia. As classes abastadas são protegidas por vários privilégios, como uso de sofisticados – e caros – recursos jurídicos para evitar a imputabilidade de crimes*. Não por acaso as prisões estão cheias de pobres. Tolamente, acredita o senso comum que pobre comete mais crime. Tsc, tsc, tsc… a ingenuidade beira a idiotice, às vezes. Enfim, o bom/a boa pobre entra quietinho/a pela porta dos fundos, limpa a privada da madame e não reclama nunca. Faz hora extra sem receber pagamento extra nem adicional noturno, vai no sábado “quebrar um galho” lavando a louça na festa pela qual receberá pouco e… pronto! Medalha no peito pelos serviços prestados à ideologia justificadora da realidade social baseada numa falsa meritocracia – que na verdade é muito mais por herança do que por esforço. E não me refiro somente à herança em bens ou dinheiro, casas e carros; mas também a herança de um capital social/cultural e de um preparo para “vencer na vida” que começa quando se está ainda dentro do útero materno. Desde então, em classes favorecidas socioeconomicamente, já está sendo planejado para o bebê que vai nascer um futuro, uma formação cuidadosa e segurança afetivo-financeira. Isso tudo será transmitido pelo afeto, no cotidiano, antes da idade escolar. O valor atribuído pelo sujeito a si mesmo – ou suas expectativas em relação ao que pode alcançar na vida – são construídos nesse processo, desde muito cedo, interiorizadas nas disposições profundas de cada um/a (o habitus de Pierre Bordieu). A outros/as, porém, caberá um lugar desqualificado e desprotegido no mundo, na divisão social do ensino formal e do trabalho. Apesar da abissal diferença entre a qualidade das escolas que frequentarão, haverá quem diga que o sucesso escolar só depende do aluno e do esforço pessoal nos estudos. Começando a trabalhar cedo, sem tempo para aprimorar-se e submetido a uma dura rotina, será mesmo que o pobre disputará com o rico, por exemplo, uma vaga na universidade em igualdade de condições? Eu acredito que a resposta é um rotundo NÃO. Ah, mas “cotas” é discriminação, repetirão solenemente, acreditando-se paladinos da justiça e da igualdade de oportunidades. Existem exceções? Por certo que sim. Existe mesmo quem não queira trabalhar ou esforçar-se, entre os pobres (e entre os ricos!); assim como existem os heróis que conseguem a mobilidade social pelo trabalho duríssimo e muito sacrifício (caminhou 10 km após o trabalho, à noite, para estudar… carregou pedras, chorou sangue e venceu na vida… e outras histórias, narradas sob som de violinos, que trazem lágrimas aos olhos das gentes de boa-fé que não tiveram de ar por isso). Mas a condição de exceção desses heróis – “o marido da prima da minha vizinha era engraxate e agora é empresário bem-sucedido e blábláblá…” – confirma a regra que rege a reprodução das desigualdades materiais e imateriais. E a imensa maioria deverá seguir seu destino de “vida de gado”, servindo aos interesses dos de cima e sendo cordatos, puros, servis e humildes. Caso não aceitem ocupar esse lugar e mostrem seu descontentamento de várias formas, legais e ilegais, aí se transformarão nos “maus pobres”. São aqueles que não têm um comportamento “certinho” como descrito acima. Bebem, vão a bailes funks, tem comportamento sexual livre (esse último ponto, como desqualificação, vale especialmente para as mulheres, claro). Não aceitam trabalhar arduamente numa atividade que consome a saúde, remunera mal e exige horas em transportes coletivos apinhados de gente. Não item humilhações, reagindo a elas; vão à praia em lugares “de gente de bem”, atrapalhando o lazer destas com sua “feiura de pobre” e o potencial “perigo” que representam. Falam alto, fazem “barraco”, não “se enxergam”. Podem até vender droga para os filhos das elites que adoram se chapar ou mesmo fazer arrastão em Ipanema, no Leblon e outros lugares reservados aos bem aquinhoados da sociedade. Pobre bom é pobre que faz fila pra receber sopão, de cabeça baixa, lá na periferia onde “é seu lugar”. Mas pobre politizado também pode ser um mau pobre. Caso exija direitos básicos – como o à terra, trabalho e moradia e se una a movimentos sociais, – é demonizado pela “ousadia” e chamado de “vagabundo” que quer mamar nas tetas do Estado ou de algum empresário ou fazendeiro rico, “direito”. Curioso que estes últimos, ao receberem polpudos incentivos fiscais por parte do Estado, ao terem suas dívidas perdoadas, ao sonegarem impostos necessários à manutenção dos serviços públicos essenciais, não são tidos como sanguessugas de nada. Ao contrário, teriam “direito” por serem “dos grandes” que “chegaram lá”. Alguém já viu a batendo para a não reconhecida corrupção presente no rentismo, que corrói o orçamento nacional via juros da dívida e vampiriza a riqueza produzida por todos que é concentrada por poucos?* Não. As as só batem quando a mídia corporativa fala em corrupção, especialmente de quem tentou minorar ao menos um pouco a desigualdade que castiga o país há cinco séculos. E que seja bem espetacularizada, para lavar a alma do pessoal rico e fino de camisa da CBF, que pode se achar novamente super honesto. Nos anos 80 foi cunhado o Termo “Belíndia”: poucos vivendo como na Bélgica, muitos vivendo como na Índia. Aliás, isso me lembra uma história, contada alegremente por um sujeito bon-vivant, em casa de parentes, após uma viagem dele ao belo país asiático. Relatava, encantado, que hospedado em casa de amigos, ao chegarem de um eio as 4 horas da manhã, com fome, os donos da casa acordaram os empregados para fazerem sanduíches. “Eles estão aqui para isso”, justificaram os patrões. O hóspede abastado adorou, achou o máximo da gentileza e hospitalidade! Eu só teria a dizer pra ele o seguinte: Quer um sanduíche as 4 da manhã, mané? Vai pra cozinha e faz! Trabalhador tem direito a uma noite de sono para descansar da jornada. Escravidão é uma coisa profundamente imoral e indigna, e quem contribui conscientemente com ela, ou com uma situação análoga, idem. Condições degradadas e humilhantes de existência humana têm quase sempre a participação ou aquiescência das “gentes de bem”, por que será? E não são só os pobres que têm sua avaliação severa feita por essas “pessoas de bem”. Os gays (LGBTs em geral) também são hierarquizados pela sua atitude diante da sociedade. O bom gay é discreto; “fica na dele/a”; não fala da sua orientação sexual, não reivindica igualdade, não deseja trocar carinhos com o parceiro/a em público, não “ofende” os bons costumes pretendendo formar família, adotar crianças que eventualmente héteros abandonaram ou não puderam cuidar. Caso seja militante, ocupe a esfera pública, demande iguais condições de vida e cidadania, lute por direitos civis e dignidade, pelo direito de vivenciar plenamente sua identidade de gênero e orientação sexual, será demonizado, difamado e, em casos extremos, agredido ou até morto. A expectativa de vida entre os travestis é de 35 anos, dá pra acreditar? Enquanto a média da população brasileira gira em torno de 75 anos! Claro que há aí profundas desigualdades territoriais, de classe, sexo, gênero, origem étnico-racial (em Alagoas, por exemplo, é de 66 anos). Mas 35, nem na república dos Sarney ou dos Collor. Afirmam alguns, convictos – embora sem provas – que não há nada disso, que é só mimimi, que há uma ‘ditadura gay’ em curso etc. A compreensão dos processos históricos que geram as desigualdades, a solidariedade ampliada (não só para “iguais”, familiares e amigos), a aceitação da igualdade na diferença como valor central, a promoção da justiça e de um projeto mais generoso de sociedade, aberto a tod@s, parecem horizontes distantes demais do Brasil atual. O “laboratório” desse país é visto nas mídias e redes sociais e em vários contextos que frequentamos diariamente. Pesquisando nesse laboratório real e virtual (que também é concreto), concluo que muitas pessoas que se consideram a nata da sociedade ajudam a reproduzir, nos seus modos de vida, injustiças, segregações, elitismos, falsas meritocracias e muito sofrimento humano. A verdade que lhes escapa é que são sacolé de ki-suco se achando sorvete italiano de alta qualidade, para usar uma metáfora que eles provavelmente entenderiam. Porque sutileza e sensibilidade não é mesmo com eles. E agora a pior notícia: os sacolés podem ser qualquer um/a de nós, “bons cidadãos e tementes a deus”. ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ 1p4e1e

  • CATTANI, Antonio. Sofismas da riqueza. In: CATTANI, Antonio; OLIVEIRA, Marcelo (orgs). A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo, 2012.

O golpe dos canalhas 49183d

João Alberto Wohlfart – Filósofo e Professor universitário
Consumado o golpe de Estado contra a Presidente Dilma Rousseff, vai se desenhando aos nossos olhos o cenário que está por vir. Trata-se de um conservadorismo neoliberal levado às últimas consequências. Está muito claro que se trata de uma gravíssima ruptura constitucional, a dissolução da Constituição Federal, um atentado à soberania popular e nacional e a implantação de um projeto que o povo não escolheu nas urnas. As consequências do golpe concentra-se num projeto neoliberal ultraconservador cujos componentes elencamos na sequência.
– A podridão das instituições: As instituições foram criadas para cuidar da Democracia, da Constituição e da Soberania popular. Sempre pensamos que fosse assim, mas erramos rotundamente ao embarcarmos na certeza de que elas deveriam ser as vanguardas da nação brasileira agora estraçalhada por um governo golpista e assaltante. O supremo tribunal federal, o congresso nacional, o executivo federal, o judiciário, estão habitados por uma casta sacerdotal de assaltantes da Democracia que entregam o país aos caprichos do grande capital e da financeirização. Nestes poderes e nestas instituições habita uma elite patriarcal machista que dá o tom constitucional e jurídico para a eternização dos privilégios econômicos de uma pequena maioria.
– O fim da Democracia e da Constituição: Os períodos democráticos da História do Brasil são curtos e sempre interrompidos por golpes e ditaduras. Tivemos a graça de viver num período de 31 anos de frágil e jovem Democracia e de uma jovem Constituição que foi brutalmente assassinada aos 28 anos de idade. A garantia da soberania popular, as políticas públicas, o projeto de nação escolhido livremente pelo povo através do voto direto, a Soberania Nacional, a preservação dos recursos naturais, a inclusão social das massas historicamente excluídas foram quebradas pela chamada “ponte para o futuro” e pelo governo usurpador. O golpe se confirma pela profunda ruptura entre os que assaltaram o poder e o povo que não votou neles.
– Uma sociedade patriarcalista e patrimonialista: Desde os primórdios de nossa História nunca aconteceu uma ruptura social e política profunda capaz de estabelecer uma transformação estrutural radical no interior da sociedade. Esta elite sempre dominou e sempre mandou no país, sem abrir mão de um milímetro de seu poder e de seus privilégios. Com as manifestações de 2013, com a eleição do congresso mais conservador de nossa história e com o processo do fatídico golpe parlamentar esta elite ressuscitou com toda a força e está mostrando todas as suas garras. Ela sempre atuou de forma invisível, numa sutil manipulação ideológica, mas agora a violência é explicita e escancarada. O lucro sem medida, a grande propriedade privada e a acumulação patrimonialista são os grandes dogmas.
– A perda dos direitos sociais: Os sinais evidentes do governo golpista consistem em quebrar com os direitos sociais adquiridos ao longo da história com sangue e suor de tantas gerações e de heróis lutadores. Os direitos trabalhistas e previdenciários são alvos de assaltos e cortes, com o rebaixamento da população à vulnerabilidade social. O desmantelamento do SUS é um dos capítulos desta prática golpista. O congelamento dos gastos em saúde e educação, conforme amplamente divulgado, é a faceta mais cruel deste golpe marcado com o selo do assalto das conquistas sociais. Tudo sustentado por uma hipocrisia capitalista neoliberal para a qual os gastos sociais diminuem os lucros das empresas e do capital financeiro.
– A notícia padronizada: Os meios de comunicação social no Brasil estão em mãos de quatro ou cinco famílias bilionárias. Elas manipulam e massificam a opinião pública como elas querem. São o braço direito do judiciário para condenar seletivamente os críticos do projeto neoliberal e proteger os corruptos de investigação e condenação. Os meios de comunicação de massa imbecilizam a população e castram a capacidade de desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipador. A incidência dos meios de comunicação no interior da estrutura social é tão intensa que a opinião se restringe a algumas frases de efeito, especialmente dirigidas contra algumas pessoas que defendem princípios democráticos.
– A pirataria das privatizações: A pirataria privatista é a razão principal de ser dos tucanos e da grande direita. Sabe-se que as privatizações serão intensas e abrangentes. Querem entregar as riquezas naturais do país às grandes multinacionais, tais como o Pré-sal, a Petrobrás, as terras, os rios, os recursos energéticos, as florestas, os aquíferos, os espaços aéreos. Diante deste assalto, o povo brasileiro não será mais dono de seu espaço, de seu território, de suas riquezas, de seu patrimônio espiritual e de sua inteligência. O golpe na Presidente Dilma Rousseff não é porque cometeu algum crime, mas porque zelou pela soberania nacional. O golpe foi protagonizado pela podridão da máfia que habita os poderes do Estado, pelos marajás do judiciário, por grandes empresários nacionais e internacionais, pelos meios de comunicação para protagonizar o espetáculo das privatizações.
– A subserviência internacional: Os governos Lula e Dilma proporcionaram para o Brasil uma soberania internacional e uma liderança global que nunca usufruímos nos 500 anos anteriores. amos de um país de fundo de quintal, obediente aos ditames do FMI e às grandes multinacionais, a um país soberano e senhor dos seus destinos. As relações bilaterais com a China, com a Índia, com a Rússia, com a África, com o MERCOSUL, com as nações latino-americanas representam uma significativa sistemática de horizontalização das relações internacionais lideradas pelo Brasil. Sabe-se da ruptura do governo golpista com este sistema e a volta da subserviência aos Estados Unidos e ao grande capital é o que nos espera. Depois da conquista histórica de superação da condição de colônia e da inserção soberana do Brasil no cenário geopolítico internacional, nos transformamos em objeto de exploração do grande capital. Pela tendência atual, seremos uma republiqueta de fundo de quintal.
– A precarização do trabalho: Na agenda neoliberal ultraconservadora, os primeiros que pagam o preço são os trabalhadores. Acentua-se a antinomia entre trabalho e capital, onde os trabalhadores são explorados para sustentar a lógica do capital. A especulação financeira como mecanismo de enriquecimento de alguns e de empobrecimento de uma grande maioria, vai ser a sorte dos trabalhadores explorados pela transformação de seu trabalho em lucros dos magnatas do capital financeiro.
– A financeirização da economia: Com o governo usurpador e golpista, o Brasil será epicentro da especulação financeira mundial. A tendência é a fragilização das estruturas econômicas, a degradação do sistema produtivo e a concentração dos recursos nas grandes instituições financeiras e megaempresas capitalistas. Recursos básicos que deveriam circular na economia real são deslocados das necessidades básicas da população e entregues à lógica da especulação como o grande meio de concentração de renda e exploração do povo. O resultado disto será o aprofundamento da crise econômica, o desequilíbrio social e ecológico.
– O imperialismo do capital: Está em cima de nós o grande monstro do capital, cuja ação é invisível aos olhos do senso comum. Parece um deus absoluto e invisível que invade todos os espaços humanos e sociais e reduz tudo à sua lógica. Está pronto para roubar a força de trabalho e esvaziar o trabalhador transformado em objeto de exploração. Está pronto para roubar as nossas riquezas naturais, desintegrar os sistemas ecológicos brasileiros e dissolver tudo na lógica capitalista. É uma espécie de pandemônio com ramificações econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, e que tem no supremo tribunal federal, no congresso nacional, no poder central e no ministério público os seus braços políticos e instâncias de legitimação.
– O fundamentalismo religioso: Hoje encontramos por aí fundamentalismos e conservadorismos dos mais reacionários e autoritários. É a faceta ideológica da ditadura parlamentar midiática. Os arquitetos do golpe estão revestidos da autoridade moral proporcionada pela bíblia e pela prática da religião, ando uma cortina de fumaça por cima do cinismo e da hipocrisia. A escola sem partido e o criacionismo são elementos religiosos e ideológicos deste fundamentalismo difundido para legitimar a nova ditadura. Os fundamentalismos são apoiados pelos Estados Unidos numa nova era de dominação norte/sul, com um doutrinamento místico-religioso para encobrir a sistemática da dominação econômica.
Estes são alguns traços do golpe dos canalhas, dos assaltantes do poder e da Democracia. Esta é a faceta do projeto cujos arquitetos têm ódio do povo e da Democracia. Para impedir absurdos desta natureza, somente com uma intensa e contínua mobilização popular. A direita raivosa conseguiu aglutinar um conjunto de forças que produziu o golpe e há um vasto campo para a imposição de seu projeto cujos componentes básicos foram aqui citados.

Escola sem partido e o sistema de museus j4o1u

JORGE BARCELLOS
A educação brasileira recebeu a colaboração de diversas instituições que em seu interior criaram ações educativas. Fundações assistenciais, órgãos públicos descentralizados, sociedades de economia mista e principalmente museus, desde a década de 80, tomaram consciência da importância da educação e começaram a ofertar inúmeros programas e serviços, inclusive com traduções para turistas e atividades próprias para portadores de necessidades especiais.
Fundações de Assistência Social e Comunitária, seja em seus centros comunitários ou mesmo em instituições de recuperação de menores, incorporaram educadores em suas equipes; diversos órgãos públicos desenvolveram atividades de formação escolar, seja para criar vivências de aprendizagem sobre a correta destinação do lixo urbano (DMLU) ou os cuidados necessários com a água e o meio ambiente (SMAM) e  museus públicos e privados ampliaram iniciativas educacionais com suas exposições. É o que se chama de Educação em instituições não escolares, realizada por centenas de educadores que acompanharam em seu meio o esforço legal que a democratização do pais promoveu com a Constituição Federal, de 1988,  e foram capazes de incluir em seus programas e ações objetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996.
Nesse contexto, educadores de museus colaboraram com a fixação do aluno no sistema de ensino pela produção de ações educativas fora do ambiente escolar incorporadas pelas escolas. E fizeram isso na maior parte das vezes sem qualquer investimento direto do poder público, sem fundo algum governamental a não ser os próprios recursos de suas instituições. Esse trabalho era muito importante para as escolas para aprimorar conteúdos de ensino, mas não era incomum que, frente a inexistência de quadros, muitos diretores tomassem a iniciativa de incluírem em seus programas atividades extra classe, incluindo visita à museus ou apelando para a prestação de serviços de profissionais de instituições públicas para suprir carências de carga horária de professores que não eram contratados pelo Estado.
Em meados de 2016, a ocupação de escolas públicas estaduais promovidas por estudantes que reividicavam melhorias na educação e nomeação de professores terminou por interromper o afluxo de estudantes em muitas instituições públicas. Parte destas reivindicações, como lembra a pesquisadora Russel Dutra da Rosa, pedia o arquivamento do PL 44/2016 que pretende transferir recursos públicos para Organizações Sociais privadas realizarem a gestão escolar, incluindo a contratação de diretores e professores sem concurso público e o PL 190/2015 do programa Escola sem Partido (ESP).
Boa parte dos professores não se deram conta nesta luta que os profissionais da educação que desenvolviam projetos longe do ambiente escolar também eram afetados pelo  PL 190/2015. O projeto ESP ataca diretamente o trabalho não apenas de professores das escolas mas  educadores de diversas instituições públicas, principalmente de museus, porque visam limitar a liberdade de expressão de qualquer  professor. É o caso de muitos museus da cidade, que tem entre sua programação cultural a promoção de exposições de caráter “politico”, versando sobre Direitos Humanos, questões de gênero, etc. Segundo a proposta da lei, estes profissionais de ensino também podem ser afetados: é  um erro conceber o projeto “escola sem partido” como um projeto voltado unicamente para escolas, ele quer atingir um tipo de educação critica desenvolvida em diversos espaços. A escola é apenas um deles. Não se trata apenas de afetar o trabalho de professores: ora,  nossos museus contam com “monitores”  cumprindo papel similar a de um professor pelo qual recebem treinamento, ou mesmo professores formados, geralmente em história, responsáveis pelas visitas. Por ser um espaço educativo, todo o trabalho de museus coloca-se sob o horizonte e alvo do projeto ESP. Diz Rosa: “O movimento atua em todas as esferas do governo, já tendo protocolado quatro projetos na Câmara dos Deputados e um no Senado, no âmbito federal. Na esfera estadual, são 12 projetos protocolados até o momento com um aprovado no estado do Alagoas. E na esfera municipal 2 projetos foram aprovados em Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.”(Jornal Já, 2/08/2016).
O universo dos museus está em expansão no Brasil. Segundo dados do Ministério da Cultura, compreende 3.025 museus onde cerca de 48,2% possui área educativa própria encarregada de fazer exposições. Isso significa setores e equipes que produzem materiais educativos que podem se tornar alvo do programa ESP: textos de exposição, catálogos, informativos e material didático oferecido por professores e pesquisadores a outros professores. Se o projeto ESP veda conteúdos que estejam em conflito com as convicções religiosas e morais da família, uma exposição como “Os segredos da anatomia”, promovida pelo Museu de História da Medicina em 2015, pode ser considerada ofensiva às convicções morais da família por mostrar o corpo humano; o mesmo poderia se dizer da exposição “22 anos de Nuances”, realizada no Memorial do Rio Grande do Sul em 2013, que jamais poderia ter sido realizada porque tratar da luta pelos direitos LGBT em Porto Alegre, e, segundo os defensores da ESP, ofenderia (sic) as convicções de saúde sexual da família. O que ocorreria com as direções desses museus e seus professores? Seriam notificados extrajudicialmanete e coagidos através de penas e ameaças para a retirada de suas exposições como propõem o site do ESP? Seriam objeto de delação anônima de professores e monitores de museus visando cercear a livre iniciativa de programação de museus? Está claro o caráter fascista de tal iniciativa: eles violam o principio de autonomia tanto do pesquisador como do professor.
A própria forma de interpretar conteúdos de exposição seria posto em questão. O movimento ESP já demonstrou que, em qualquer situação, seu pressuposto é de que o capitalismo não se fundamenta em uma lógica que produz exclusão já que gera empregos. Como então explicar os processos de história dos mais diferentes níveis, seja história politica, econômica ou cultural sem tomar uma perspectiva de análise critica? Nesse sentido, toda a linha do tempo da exposição História do Rio Grande do Sul, do Memorial do Rio Grande do Sul precisaria ser revista.  Nenhum pesquisador sério de nossas instituições de memória faz uma exposição sem uma pesquisa detalhada, aproximando perspectivas sociológicas, econômicas e políticas. Na concepção dos defensores da ESP,  uma exposição que mencionasse o genocídio de populações indígenas seria considerada doutrinadora, assim como uma exposição sobre Direitos Humanos. Qualquer atividade que promovesse um debate na semana do negro que apontasse as diferenças quanto a taxas de desemprego também seria considerado ideológico.
O Movimento ESP está construindo o caminho para afetar não apenas o trabalho do professor em sala de aula, mas a programação e a pesquisa de exposições de diversos museus porque já retirou do Plano Nacional de Educação as metas e estratégias de promoção de equidade étnico- racial e de gênero. Se o ESP já chegou a processar o INEP, órgão responsável pelo ENEM por incluir o tema da violência contra a mulher na redação e  considerar o critério de avaliação a respeito aos direitos humanos como doutrinação de esquerda, o que resta as instituições museológicas e aos profissionais dedicados em instituições como o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo ou as atividades de recuperação de menores promovidas pelo CASE POA 1 da da FASE?
A questão é que os educadores que trabalham fora da escola também são protegidos pelo Art. 5 da Constituição Federal: tem direito a livre manifestação do pensamento (inciso IV); tem direito à livre expressão intelectual (inciso IX) e tem direito ao exercício de sua profissão se atendidas as exigências legais (inciso XIII). A ESP critica conteúdos que são necessários a formação cidadã promovidas por várias outras instituições que não apenas as escolas: aspectos de cultura afro-brasileira e indígena são temas frequentes de exposições em museus. Os defensores da ESP estão contra as metas do PNE que buscam a superação das desigualdades educacionais pelo fim da discriinação e defesa da diversidade e dos direitos humanos, justamente temas retratados em diversas atividades dos museus que integram o Sistema Estadual dos Museus do Rio Grande do Sul.
Tanto como nos professores da rede pública, o projeto ESP produz insegurança e desconfiança entre profissionais de educação.  Por isso precisamos incorporar na Frente Nacional Escola Sem Mordaça, criada na última quarta-feira na UFRGS, os profissionais de Educação de instituições não escolares, pois  num pais onde professores não são livres, nenhum educador o será.
 

Os tubarões estão de volta 6i6u2b

Marino Boeira – Jornalista, publicitário e professor universitário
No ado, as pessoas chamavam de tubarões, os comerciantes que roubavam no peso, colocavam água no leite e “esqueciam” de lançar alguns ganhos em seus livros-caixa. Eram tubarões pouco agressivos, se analisados pelos critérios atuais.
Hoje, eles não são chamados mais de tubarões. São grandes empresários, que dispõe de equipes de advogados e economistas para encontrar brechas nas leis que lhes permitam pagar menos impostos e investir mais nas bolsas do mundo inteiro.
Patrocinam programas de aperfeiçoamento nas empresas, criam fundações com seus nomes para descarregar impostos que não querem pagar, são considerados benfeitores nas suas cidades, mas – muito além dos antigos comerciantes – são grandes tubarões, predadores do dinheiro público.
Como têm grande influência nos meios de comunicação, no parlamento e até no judiciário, em vez de condenados, são muitas vezes condecorados e transformados em exemplos de bons cidadãos.
Embora se conheçam os nomes de muitos deles, apontá-los é sempre um risco porque em torno deles existe uma grande rede de proteção e para defendê-los está sempre a postos um exército bem pago de advogados, publicitários e jornalistas.
Quando morrem, depois de uma longa e bem gozada vida, diferente em benesses do que a da maioria das pessoas comuns, viram nomes de rua e até de escolas e se transformam em exemplos para as próximas gerações.
Mas, como grandes predadores, eles acabam sempre deixando rastros que se tornam visíveis para quem estiver interessado em descobrir.
Segundo o Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita estadual, que investiga estes rastros, a sonegação do ICMS no Estado já chegou a 4 bilhões e meio de reais apenas nos oito primeiros meses do ano.
Para que a população possa acompanhar como está sendo lesada, um chamado “sonegômetro” foi instalado no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre, com a computação do dinheiro que o Estado deixa de arrecadar e que poderia ser usado para aumentar a segurança nas ruas e pagar melhor os professores.
No Brasil, segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, a sonegação já chegou a este ano a 340 bilhões de reais e a tendência é que chega 500 bilhões até o fim do ano.
E quem sonega são sempre os grandes empresários e não mais aquele dono boteco do bairro.
Os alienados que saem as ruas, batendo as e protestando contra a corrupção de alguns poucos, esquecem de conferir os números que poderiam orientar melhor sua indignação.
Um deles, de uma fonte insuspeita, o Departamento de Competitividade e Tecnologia da FIESP, diz que o custo médio da corrupção no Brasil, em valores de 2013, foi de 67 bilhões de reais.
É só comparar e ver quem faz mais mal ao Brasil.
Corrupção: 67 bilhões de reais
Sonegação: 500 bilhões de reais
Enquanto isso, Temer e seu Ministro da Fazenda pretendem fechar as contas da União arrochando salários e aumentando a idade das aposentadorias.
Faz sentido, já que um dos objetivos do golpe que levou Temer ao Palácio do Planalto é impedir de vez qualquer ideia que ponha em risco os ganhos dos nossos grandes tubarões.

Estratificação do imposto de renda por faixas de salários mínimos 2v1iy

Róber Iturriet Avila
Pesquisador em Economia da FEE
João Batista Santos Conceição
Bolsista FAPERGS/FEE
Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, preconiza-se que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. Naquela mesma época, ministros de Estado que propunham tal configuração eram desalojados de seus postos por forças refratárias a essa perspectiva, como ocorreu com Anne Robert Jacques Turgot.
No Brasil Império, houve a primeira experiência de um imposto sobre a renda dos brasileiros. As alíquotas progressivas variavam entre 2% e 10% sobre os rendimentos dos servidores públicos. Somente em 1922, após amplos debates, a proposta de um real e definitivo imposto sobre a renda foi aprovada no Congresso Nacional, ando a vigorar em 1923 (BRASIL, 2016).
O imposto de renda brasileiro nasceu com alíquotas progressivas relativamente baixas, uma mínima de 0,5% e uma máxima de 8%. Como em outros países, houve um processo de ampliação da quantidade de alíquotas e elevação dessas à medida que mais serviços foram absorvidos pelos Estados nacionais e regionais. Em 1961, o então Presidente Jânio Quadros modificou a alíquota máxima de 50% para 60% dos rendimentos. Um ano depois, já no governo de João Goulart, a alíquota máxima subiu para 65%, alcançando o maior percentual histórico. O tributo contava com 14 faixas de alíquotas progressivas, as quais iniciavam em 3%.
Nos governos militares ocorreu o primeiro aceno para a estagnação e, posteriormente, para a redução da progressividade tributária. Uma das medidas desses governos foi a diminuição da alíquota máxima do imposto de renda concernente às pessoas físicas para 55% e depois para 50% dos rendimentos. Outra atitude tomada foi a redução de 14 para 12 faixas de rendas tributadas, número que permaneceu durante a maior parte do regime militar.
A partir da égide da liberalização financeira, na década de 80, assentou-se a concepção de que a renda deveria ser tributada linearmente, ao o que o capital deveria ser desonerado para atrair fluxos de investimentos. Tais transformações fizeram os impostos sobre a renda e sobre o capital caírem drasticamente.
A Constituição de 1988 ampliou o Estado Social, mas as transformações, do ponto de vista da arrecadação, foram regressivas. Uma das primeiras mudanças foi a redução de oito para duas faixas de imposto de renda. Já a alíquota máxima saiu de 45% para 25%.
Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusivamente na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei n.º 9.249, a distribuição dos lucros e dos dividendos às pessoas físicas aram a ser isentas.
A divulgação dos dados de imposto de renda ocorrida recentemente tornou factível a mensuração das disparidades geradas pelo tratamento diferenciado dos rendimentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos de renda mais elevados da sociedade contribuem proporcionalmente menos ao erário. O gráfico explicita que a base de rendimentos tributáveis de 2013 a a cair para os indivíduos que receberam mais do que três salários mínimos. Inversamente, os rendimentos isentos am a se elevar a partir dessa faixa. O pico de isenção de rendimentos em relação à renda é para quem recebeu entre 240 e 320 salários mínimos (R$ 162.720,00 e R$ 216.960,00). Ficaram imunes de impostos 68,81% das receitas desses indivíduos.
Como consequência, o imposto devido em relação à renda cresce até a faixa de quem recebe de 30 a 40 salários mínimos e depois a a recuar, conforme explicitado também no gráfico. Os rendimentos isentos de 2013 alcançaram R$ 636,39 bilhões, sendo R$ 231,30 bilhões referentes a lucros e dividendos distribuídos, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 115,24 bilhões, ou seja, abaixo do valor dos rendimentos isentos. Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiaram 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), que possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões e que pagaram de imposto 1,56% de sua renda total.
Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente em relação aos gastos privados com saúde e educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 69,35 bilhões, 60,18% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina, conforme exposto na Carta de Conjuntura FEE de maio de 2015.
Com a estratificação da contribuição de imposto de renda por faixas de salário mínimo, fica explícito que as alterações na legislação tributária auxiliam a consolidar um quadro de elevada concentração de renda, com destaque para a isenção de impostos sobre os lucros e dividendos e para o subsídio que o Estado concede aos gastos privados em saúde e educação às famílias mais ricas do País.
1509rober-graf1

O domínio do rentismo no governo Temer 4z4h5o

Ricardo Dathein
Professor da Faculdade de Economia da UFRGS
O governo Temer propõe um Novo Regime Fiscal para o país, de longa duração, baseado em uma avaliação de que existe um problema fiscal estrutural. Busca-se neste artigo evidenciar que a dinâmica fiscal deve ser entendida a partir de outra concepção.
Qual a causa de déficits públicos? Uma ideia vulgar, usada pelos liberais, é a de que esse déficit provém do comportamento populista, gastador, de governos em geral de esquerda. No entanto, normalmente o que provoca o crescimento do déficit público e da dívida pública são crises econômicas ou o baixo crescimento. Veja-se pelos gráficos a seguir que no período entre 2003 e 2014 houve uma substancial melhora nas contas públicas. A piora atual começou em 2014, com a crise econômica. Não há, portanto, nenhum problema estrutural, mas sim conjuntural, cíclico. O endividamento e o déficit público no Brasil em 2014 estavam em níveis muito confortáveis, comparativamente a outros países e ao histórico nacional.
No período 2004-2014 houve um grande aumento de gastos públicos, incluindo as políticas sociais, e ao mesmo tempo ocorreu melhora das contas públicas (e isso apesar de todo o desperdício de recursos no governo Dilma 1 com subsídios e isenções fiscais para empresas, que resultou em fracasso). Esse desempenho fiscal resultou do aumento de receitas compatíveis, por conta do maior crescimento econômico em um contexto internacional favorável. No período anterior a 2003 houve substancial aumento da dívida pública, mesmo com um governo liberal. Isso deriva não de que o governo FHC fosse gastador, populista, mas de que a conjuntura internacional foi pior e porque esse governo adotava políticas que produziam menos crescimento. Portanto, o que determina piora ou melhora das contas públicas é o desempenho da economia, dependentes do contexto internacional e de opções de políticas.
Há um mito, portanto, de que finanças saudáveis dependem de agentes e governos responsáveis que usam teorias “racionais”. Uma questão que chama atenção é de que justo nos governos liberais ou com o uso de políticas liberais (como no governo Dilma 2) a situação fiscal piora. Isso ocorre não porque agentes liberais sejam mais gastadores ou irresponsáveis. A explicação é outra. A economia de mercado é inerentemente instável. Sem controle, ou gerida de forma liberal, essa característica se impõe plenamente. Essa dinâmica provoca crises cíclicas que tendem a ser mais profundas, justo pela inação do Estado, ou pior, pela ação pró-cíclica, como na gestão Levy. Essas crises produzem automaticamente (com a brusca queda de receitas) déficits crescentes, aumentando o endividamento. Ou então os governos am a atuar com políticas anticíclicas, também aumentando o déficit em um primeiro momento.
1509-grafico1 1509-grafico2
O argumento da crise estrutural é oportunista, buscando priorizar interesses do mercado. Em tese, as medidas do governo provocarão enormes superávits fiscais a partir do momento em que a economia voltar a crescer, pois parte-se de uma situação de “fundo do poço” em termos de receita. Uma questão que se coloca é o que será feito com os recursos não gastos. Os gastos sociais não são prioridade. O governo também não se propõe a aumentar investimentos, pois não há nenhum programa em vista nesse sentido. O que se propõe é que o setor privado assuma os investimentos a partir de concessões. O governo também não prometeu cortes de impostos, mas essa seria uma alternativa futura.
Como o capital financeiro e os interesses rentistas disseminados em toda a economia comandam a rationale da gestão federal, uma hipótese é de que as classes rentistas pretendem de apropriar desses recursos, via pagamento de juros sobre a dívida pública. Mas para isso é necessário que a dívida cresça muito, e que a taxa de juros baixe pouco e lentamente. Na realidade, quanto piores as finanças públicas, melhor para o capital financeiro, para suas rendas e para seu controle político.
Neste momento, por exemplo (assim como ocorreu no governo FHC, ver gráfico 1), há fortes movimentos no sentido de provocar grandes aumentos de endividamento público, de forma que o maior estoque gere grandes pagamentos futuros de juros, mesmo que a taxa de juros diminua. Essa lógica mostra a captura do Estado por parte do capital financeiro, o que também já ocorria nas gestões petistas, assim como sucede em todo o mundo.
Existe, portanto, uma contradição entre um discurso de austeridade e uma realidade e prática opostas. A realidade se impõem, e a prática oposta deriva de um comportamento oligárquico, antes que liberal. Nosso liberalismo é um mito. Os interesses rentistas não am de interesses oligárquicos, com pretensões nobiliárias, daqueles que buscam viver de rendas, às custas do Estado, sem nada produzir.
Nosso capitalismo oligárquico busca, ao contrário do discurso e da teoria, eliminar o risco dos negócios. A teoria que coloca como instituições fundamentais para o desenvolvimento econômico as garantias dos contratos e os direitos de propriedade expressa essa concepção de capitalismo rentista, que exige a eliminação do risco para si, com sua assunção pelo Estado. Isso ocorre em sua plenitude para nosso capital financeiro, do qual os outros capitais são sócios: o Estado garante a remuneração dos capitais ociosos. Ou então aparece nas propostas de parcerias público-privadas e de privatizações, nas quais o Estado (ou melhor, a sociedade) deve assumir os eventuais prejuízos e os custos subsidiados de financiamento, enquanto o setor privado “assume” os lucros garantidos.
Essa concepção parte de uma visão radical de liberalismo, tão presente entre os gaúchos com seus fóruns liberais, de que o país se divide entre, de um lado, os indivíduos livres e, de outro, o Estado opressor. Portanto, esse Estado deve ser sempre combatido. Com isso justifica-se o saque. E a melhor forma de saque, com aparência de negócios, é o rentismo.
A partir disso tende-se a produzir um capitalismo cada vez mais avesso ao risco, cada vez mais dependente do Estado, cada vez mais necessitando de custos salariais baixos, cada vez menos inovador e produtivo. Em suma, trata-se do aprofundamento do subdesenvolvimento por parte de uma elite incapaz.

É mais do que hora de resistir 6i2m47

BENEDITO TADEU CÉSAR
15 de Setembro de 2016 – Estou em viagem fora do Brasil, acompanhando de longe os acontecimentos de ontem.
Não posso dizer que estou surpreso com a denúncia contra Lula, seus familiares e companheiros de partido e governo, pois eu já esperava que ela acontecesse, porque faz parte do teatro montado e do grande esquema para impedir que Lula (ou qualquer liderança que defenda seus mesmos princípios) se candidate em 2018.
Não obstante minha expectativa, fiquei estarrecido com o primarismo das denúncias e com a desfaçatez com que dois integrantes do Ministério Público ocupam o proscênio para destruir não apenas a reputação de pessoas honestas, mas também da própria instituição da qual fazem parte e o fazem com os holofotes da grande mídia sem que nenhum superior hierárquico ou qualquer ministro do STF os enquadrem.
Venho há mais de um ano afirmando em todos os cantos que o golpe em curso envolve a justiça e o ministério público brasileiros como instituição (já que não há reação articulada em seu interior), além, é claro, do parlamento e da grande mídia, todos irmanados no esforço de apagar as conquistas obtidas durante os governos petistas de Lula e Dilma para emancipar o país e promover a inserção social e cultural dos imensos segmentos sociais historicamente excluídos no Brasil.
Haverá ainda parcelas imparciais e que honrem os preceitos internacionais de Justiça no poder judiciário e no ministério público brasileiros?
Se há, por que não agem?
Se não agem, estão coonestando a ação de seus pares midiáticos ensandecidos pela caça ao petismo e às suas conquistas.
Se não agem, a população deve agir.
Desde John Lock, parlamentar e filósofo inglês do século XVII e que, por sinal, lançou as bases filosóficas (pasmem) do liberalismo, está consagrado internacionalmente o direito dos povos à insurgência civil.
É mais do que hora de resistir.

Mauro Santayana: O Brasil e o perigoso jogo da História 684k4c

MAURO SANTAYANA
RBA – (Versão estendida, sem redução para versão impressa) – Embora muita gente não o veja assim, o afastamento definitivo de Dilma Roussef da Presidência da República, em votação do Senado, por 61 a 20 votos,      no  final de agosto, é apenas mais uma etapa de um processo e de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próximos anos.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a extraordinária proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase tudo certo.
Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, que transformaram nosso país, de uma nação que ava o penico quando por aqui chegavam missões do Fundo Monetário Internacional, no que é, hoje – procurem por  mayor treasuries holders no Google – o quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos.
E o fez, ao contrário do que dizem críticos mendazes, sem aumentar a dívida pública.
A Bruta, em 2002, era de 80% e hoje não chega a 70%.
A Líquida era, em 2002, de aproximadamente 60% e hoje está por volta de 35%.
Mas isso não veio ao caso.
Ajudou a criar milhões de empregos, fez milhões de casas populares, criou o Pronatec, o Ciências Sem Fronteiras e o FIES, fez dezenas de universidades e escolas técnicas federais e promoveu extraordinários avanços sociais.
Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir, depois de décadas de estagnação e inatividade,  navios, ferrovias – vide aí a Norte-Sul, que já chegou a Anápolis – gigantescas usinas hidrelétricas (Belo Monte é a terceira maior do mundo) plataformas e refinarias de petróleo, mísseis ar-ar e de saturação, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares.
Mas isso não veio ao caso.
Porque o Partido dos Trabalhadores foi extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez ou o que estava fazendo.
Se tinha um projeto para o país, e que medidas  faziam, coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na defesa, parte desse projeto.
Em vez de “bandeiras” nacionais, como a do fortalecimento do país no embate geopolítico com outras nações, que poderiam ter “amarrado” e explicado a criação do BRICS, os investimentos da Petrobras no pré-sal, a política para a África e a América Latina do BNDES, o rearmamento das Forças Armadas, os investimentos em educação e cultura, em um mesmo discurso, o PT limitou-se a investir em conceitos superficiais e taticamente frágeis, como, indiretamente, o do mero  crescimento econômico, fachada para as obras do PAC.
Na comunicação, o PT confiou mais na empatia do que na informação.
Mais na intuição, do que no planejamento.
Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, “marqueteiros” sem nenhuma afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas, que se dedicaram a produzir mensagens açucaradas, estabelecidas segundo uma estratégia eventual,  superficial, voltadas não para um esforço permanente de fortalecimento institucional da legenda e de seu suposto projeto de nação, mas apenas para alcançar  resultados eleitorais sazonais.
O Partido dos Trabalhadores teve mais de uma década para explicar, didaticamente, à população, as vantagens da Democracia, seus defeitos e qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações.
Não o fez.
Teve o mesmo tempo para estabelecer, institucionalmente, uma linha de comunicação, que explicasse, primeiro, a que tinha vindo, e os avanços e conquistas que estava obtendo para o país.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em dólar, desde o governo FHC – trágicos oito anos em que, segundo o Banco Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás – que foram simplesmente ignorados.
Poderia ter divulgado, também, os 79 bilhões de dólares de Investimento Estrangeiro Direto dos últimos 12 meses, ou o aumento do superavit no comércio exterior, ou o fato de o real ter sido a moeda que mais se valorizou este ano no mundo, ou o crescimento da valorização do Bovespa desde o início de 2016, como exemplos de que o diabo não estava tão feio quanto parecia.
Mas também não o fez.
Sequer em seu discurso de defesa ao Senado – que deveria ter sido usado também para fazer uma análise do legado do PT para o país – Dilma Roussef tocou nestes números, para negar a situação de descalabro nacional imputada de forma permanente ao Partido dos Trabalhadores pela oposição, os internautas de direita e parte da mídia mais manipuladora e venal.
O PT dividiu-se, também, quando não deveria, e não estabeleceu uma estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto – de certa forma intuitivo – que pretendia implementar para o país.
O partido e suas lideranças foram reiteradamente advertidos de que ocorreria no Brasil o que aconteceu no Paraguai com Lugo – a presença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa disso.
De nada adiantou.
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita enquanto a esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamentação vazia em grupos fechados e páginas do Facebook.
De nada adiantou.
Não se deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os envolvidos agora, por indicação também de outros partidos, nos problemas da Petrobras.
E erros táticos imperdoáveis – não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público, em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da República.
Sob o mote de um republicanismo “inclusivo”, mas cego, criou-se um vasto ofidário, mostrando, mais uma vez, que o inferno – o próprio, não o dos outros – pode estar cheio de boas intenções.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia egoístas, conservadoras e “meritocráticas”, paridas no bojo da expansão econômica e do “aperfeiçoamento” istrativo, rapidamente entregues, devido à incompetência estratégica à qual nos referimos antes, de mão beijada, para adoção institucional pela direita.
Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis, que poderiam em princípio funcionar muito bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta – majoritariamente conservadora – de funcionários públicos educados em universidades privadas – também ideologicamente alinhadas com a direita – com financiamento do FIES e em cursinhos para concurseiros, que não tem nenhuma visão real do que é o país, a República ou a História, e acham – ao lado de jovens juízes – que devem mandar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege.
Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica que está sendo travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como sempre ocorre, historicamente, sob a bandeira da anti-corrupção, que, com a desculpa de combater a impunidade – em um país em que dezenas de milhares de presos, em alguns estados, a maioria deles, se encontra detido em condições animalescas sem julgamento ou o a advogado – pretende alterar a legislação e o código penal para restringir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a issibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados princípios de que o ônus da prova cabe a quem está acusando e de que todo ser humano será considerado inocente até que seja efetiva e inequivocamente provada a sua culpa.
Batalha voltada, também, para expandir o poder corporativo dessa mesma plutocracia e seus muitos privilégios.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apartidiária”, fascista, violenta, hipócrita – deu, desde o início do processo de derrubada do PT do governo, um “show” de mobilização.
Colocou milhões de pessoas nas ruas.
E estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes portais e redes sociais – a imensa maioria das notícias já eram, desde 2013 pelo menos,  contra o governo do PT,  em um verdadeiro massacre midiático promovido pelos grandes órgãos de comunicação privados – estabelecendo uma espécie de discurso único que, embora baseado em premissas e paradigmas absolumente falsos, se impôs como sagrada verdade para boa parte da população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores.
Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a esquerda, ou o PT e o PSDB – que agora se assenhoreou do PMDB e dos partidos do baixo clero.
Muito mais grave é a guerra que se desenha – e que já começou, não se iludam – entre aqueles que atacam a política, os “políticos”, a democracia e o presidencialismo de coalizão – e aqueles que, por conveniência ou idealismo, serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e além.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019.
Os opositores do PT  tiveram com o processo de afastamento de Dilma, iniciado ainda em 2013, à época da Copa do Mundo, uma vitória de Pirro.
A judicialização da política, a ascensão da Antipolítica e de uma plutocracia que acredita, piamente, que não precisa de votos, nem de maior legitimação do que sua condição de concursada para “consertar” o país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, Presidentes da República, em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista,  ajudará a sepultar, no lugar de aperfeiçoar, o regime presidencialista anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento e a essência da Democracia.
Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma no poder tornou-se, devido à irresponsabilidade da mídia e da oposição – vide as pautas bomba do ano ado – ao sucesso da estratégia de fabricação do consentimento levada a cabo pela direita e à incompetência política do Partido dos Trabalhadores – de tal forma insustentável, que, se ela voltasse, caminharíamos para uma situação de confronto em que o fascismo – como ocorreu em 1964, no Brasil, e, mais tarde, no Chile e na Argentina – ficaria – como já está ficando, de fato –  com todas as armas, e a esquerda, com todas as vítimas.
Nações e pessoas precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um o para trás para depois tentar avançar de novo.
É preciso resistir, mas com um projeto claro  para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças  da agricultura e da indústria brasileira, como os senadores Kátia Abreu, ex-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e Armando Monteiro, ex-Presidente da Confederação Nacional da Indústria, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento, que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e  geopolítico – é preciso preservar e concluir os programas concebidos e iniciados nos últimos anos, como o dos caças Gripen NG BR, o do submarino atômico nacional, o do cargueiro multipropósito KC-390, o dos tanques leves Guarani, o projeto de enriquecimento de urânio da Marinha – e evitar, ao mesmo tempo, a   abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal, já descobertos, desenvolvidos e produzindo, aos   estrangeiros (até mesmo a estatais estrangeiras, como estão defendendo, em absurda contradição, parte de nossos privatistas de plantão).
A costura de uma aliança que evite a subordinação e o caos e a transformação do  país em uma nação fascista, na prática, em pouco mais de dois anos, deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro – ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação – neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância.
A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento antidemocrático das forças de esquerda – que devem combater esse isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras condições – a fratura da sociedade nacional; a desqualificação da política e da democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país, evitando que o Brasil fortaleça sua soberania e a sua sociedade, em todos os aspectos, e que venha a ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, como quinta maior nação do planeta em população e território.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista – se não existir, é preciso criar-se um – suprapartidária, politicamente includente, equilibrada e conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles existem, vide o Almirante Othon, por exemplo – empresários como Armando Monteiro e Kátia Abreu, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os trabalhadores, começando pelos de grandes estatais como a Petrobras, em torno de um projeto que possa evitar a descaracterização e a destruição da Democracia,  o estupro das liberdades democráticas e dos direitos individuais, o  pandemônio político e institucional e a “fascistização” do país, com a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames internacionais.
Vamos fazê-lo?

Desencontros antidemocráticos: de volta aos anos 60 6g271o

Marilia Verissimo Veronese
Doutora em Psicologia Social pela PUCRS, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS
Vivemos tempos tristes, de fragmentação e incompreensão mútuas. Tal qual no período do golpe de 64, brigas e desencontros entre familiares e amigos acontecem. Lembro de minhas primas mais velhas me contando dos desentendimentos entre nosso tio Alberto (simpatizante do integralismo, ultraconservador) e nosso tio Dirceu (pai delas), trabalhista e fervoroso brizolista, defensor da igualdade e da justiça social.
Há até uma agem curiosa da época, na qual conta-se que correu um boato em Santo Ângelo-RS, no início da ditadura, que Brizola estaria escondido na casa de meu tio. A polícia invadiu o local fazendo uma busca e ele bradava “pois eu ficaria honrado se esse grande brasileiro estivesse aqui, mas ele não está…”, enquanto minha tia pedia desesperada que se calasse, ou poderia ser preso. Aliás, a parte progressista da família só não foi presa na Santo Ângelo de 1964 graças à intervenção de Dom Aloísio Lorscheider, bispo da igreja católica ligado à teologia da libertação. Eram outros tempos e eu nem era nascida ainda, mas imagino como seriam os almoços de domingo com esses dois tios discutindo…
Quem, como eu, nasceu durante a ditadura e só presenciou a luta contra ela, a campanha das Diretas Já, a constituinte de 1988, as conquistas (parciais, incompletas) que foram a duras penas adquiridas, por exemplo nas áreas da saúde e combate à miséria, encontra-se hoje pasmo, incrédulo.
Na manifestação do dia 31/8, gritávamos novamente “Diretas Já!”. Tive um déja vu. Aos 16 anos, em 1984, saí as ruas com esse brado. Apanhei da polícia a cavalo, de cassetete na cabeça, que batia a esmo em adolescentes de 15, 16 anos pedindo somente para votar pra presidente da república. Essa semana estou fazendo 49, próxima dos 50 e com uma filha de 20 anos, e respirando gás lacrimogêneo jogado sobre manifestantes enquanto a eata ainda era plenamente pacífica. A tropa de choque provavelmente “defendia” a sede do governo gaúcho, sita na esquina da Ipiranga com a Érico Verissimo (para os não gaúchos entenderem, trata-se do prédio da RBS/Zero Hora). E novamente a juventude que me cercava bradava “Diretas Já”! Como pode? Como?
Porque a vida parece andar em círculos. A trajetória a humanidade é tudo, menos linear. Limito-me a comentar as últimas décadas.
Cada vez que um governo minimamente progressista e defensor dos interesses populares ascende ao poder executivo – e bota minimamente nisso! –, a plutocracia que rege os destinos desse país há 500 anos reage e começa a gritar e espernear. Boa parcela da mídia comercial de massa, única fonte de informação de muita gente, imediatamente acompanha, pois sempre viveu de concessões e favores dessa plutocracia, até estabelecer-se definitivamente como parte dela. O brado é sempre o mesmo: “Corrupção! Mar de lama!”. Carlos Lacerda é uma figura que se reproduz infinitamente no Brasil. O jornalista Juremir Machado costuma chamar os replicadores dessa ideia de “lacerdinhas”. Sim, bom apelido para gente que acredita em grotescas manipulações midiáticas, ou mesmo inventa suas próprias mentiras e distorções em sites proto-fascistas do tipo Revoltados on line e outros do mesmo feitio.
Jango foi deposto por um golpe civil-midiático-militar e os setores conservadores da sociedade brasileira aplaudiram. Veio uma ditadura que mentiu, torturou, matou, estuprou, endividou o país, exterminou índios e considerou “progresso” a destruição de biomas inteiros, a exemplo do estado do Mato Grosso. Precarizou o ensino público propositalmente e deixou um legado de desigualdade e injustiças. Há alguns anos, a Globo fez um ridículo “mea culpa”, lido no ar pelo boneco de cera William Bonner*. Aliás, fazendo um parêntesis, lembro desse golpista sendo entrevistado por Marilia Gabriela, declarando que a edição que o JN fez do discurso Collor x Lula em 1989 foi “muito corajosa”. Foi é manipuladora e eu a classificaria ainda como criminosa.
Voltando à vaca fria, a patética declaração pedia “desculpas pelo equívoco do apoio à ditadura militar”. Daqui a 50 anos, provavelmente outro boneco vai ler no ar um pedido de desculpas pelo apoio ao golpe de 2016… isso se algo não for feito antes no sentido de democratizar os veículos de comunicações no Brasil, pluralizando-os e retirando o controle de umas poucas famílias riquíssimas que contratam vassalos como Bonner. Segundo os artigos 220, 221 e 222 da Constituição Federal, bastaria regular a comunicação no país para proibir monopólios, propriedades cruzadas (de vários meios, várias mídias); era preciso regulamentar o capital que gere isso tudo e criar também TVs públicas, comunitárias, geridas pela sociedade civil. Não havendo meios de comunicação democráticos, a democracia é infalivelmente fraca e parcial. (Detalhe do § 2º do artigo 220 – “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Hahahaha!).
Em 2016 a situação foi um tanto distinta, guardando, contudo, algumas semelhanças com 1964. O projeto da plutocracia – arrocho salarial, exploração do trabalho, desmonte da CLT (o segundo governo Vargas foi um ótimo exemplo do que falo aqui), transferência de recursos públicos para os rentistas através do sistema da dívida pública – foi derrotado nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Aí eles não aguentaram e começaram um movimento duro de desestabilização do governo Dilma, fraco em muitos pontos e tendo mesmo cometido erros políticos na relação com vários setores da sociedade. Tendo se abraçado ao diabo (Temerário e o resto da corja), tendo compactuado com a corrupção há séculos existente – embora Dilma individualmente tenha feito esforços notáveis para evitar sua continuidade, como a urgência das leis anticorrupção que enviou aos deputados, derrubada pelo congresso nacional mais corrupto dos últimos 30 anos -, esse governo não pode evitar a traição e o golpe “palaciano”, midiático-parlamentar, com ampla conivência do STF.
O sistema político apodreceu-se por dentro e no excelente artigo Reforma política: democracia ou plutocracia?**, Francisco Fonseca explica o caso: “distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento (…).”
Foi tudo muito vergonhoso. A infâmia e o show de horrores que vimos em 17/4 e 30/8 deste ano nos mostraram que se encerrou um ciclo. Os plastificados e botoxados deputados e senadores – muitos deles denunciados por corrupção, sob investigação e tendo participado de áudios vazados como aquele no qual o corrupto Romero Jucá afirma: “Rapaz, a solução era botar o Michel. Aí parava a porra toda [Lava-Jato]” ***, com patéticos discursos mencionando Deus e a família, decretaram o impedimento. (Conferir a extensão do cinismo deles é possível nesta matéria aqui****)
A presidenta (sim, está correto e consta no dicionário da língua portuguesa), abandonada pela cúpula corrupta do seu próprio partido, manteve a dignidade e a cabeça erguida, pois não tinha crime do qual envergonhar-se, a não ser a inabilidade política. Mas não foi citada nem uma vez na Lava-jato, ao contrário de alguns dos parlamentares imundos que a impediram, campeões em denúncias de corrupção, muitos com bens já bloqueados pela justiça.
O ciclo ao qual me referi antes seria o iniciado em meados dos anos 80, pós-redemocratização, constituição de 1988 e relativo consenso em torno da ampliação de direitos, que havia inclusive, a duras penas, sobrevivido à fúria neoliberal dos anos FHC. Mas agora, a plutocracia ataca com tudo: exige desmanche da CLT, cortes de gastos sociais, precarização da saúde e educação públicas. Ainda mais do que jáestavam precarizadas! Há que pagar os juros e amortizações de uma dívida pública já paga mil vezes, há que transferir mais riqueza aos já muito ricos rentistas.
Novamente, parte da classe média é convencida que essa é a “saída da crise”. Inacreditavelmente, parte dela acredita que piorando a situação a situação melhorará mais adiante. E cortam-se programas que combatiam a miséria, que integravam os pobres à universidade, que permitiram alguma mínima mobilidade social. Que, diga-se de agem, desagradam sobremaneira à plutocracia, pois no Brasil ela ainda é escravagista.
Diante de tudo isso, os que habitam a caverna de Platão contemporânea aplaudem o golpista Temer, o corrupto Jucá, a vitória do bandido Cunha, que certamente será “salvo” pelos coleguinhas (deu-lhes o impedimento de bandeja, por vingança*****), em cima do sofrimento de milhões de pobres e de trabalhadores, de seu cotidiano massacrante e semiescravo, sem oportunidades de mobilidade social minimamente equânimes. A igualdade de oportunidades, tão cara ao liberalismo clássico, aqui no Brasil é uma quimera da qual falsos “liberais” dão risada, evitando-a a qualquer custo há séculos.
Pessoas brigam com seus pares que têm uma perspectiva crítica na análise do processo. Estabelecem-se discussões semelhantes àquelas dos meus tios nos idos dos anos 60. Os que saíram às ruas para defender a plutocracia, de camisa verde e amarela, hoje fazem que não sabem de nada e ignoram – ou fingem ignorar – a ampla corrupção que ajudaram a manter intocada.
Os que sempre saíram às ruas pela democracia, agora saem novamente.  Pedem novas eleições. Os representantes da plutocracia nacional não querem nem ouvir falar, pois sabem-se rejeitados nas urnas. Melhor seguir manipulando, a mídia hegemônica ajuda e faz o serviço sujo.
Estamos mesmo precisando de grandes brasileiros como Leonel de Moura Brizola ou meu tio Dirceu Rodrigues. Este texto é em homenagem à sua memória. Mas, por ora, teremos nós mesmos que fazer a resistência e continuar a luta da democracia contra a plutocracia. Tentemos ser um pouco mais grandiosos também, com humildade e com muita força de vontade.
* http://www.youtube.com/watch?v=bABCjGS-_M4
** http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843
***http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html
****Essa matéria ilustra bem a pusilanimidade e o escárnio da corja que votou “por deus e pela família”: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2016/04/1763233-um-sim-pelo-impeachment-para-a-mulher-um-afago-no-whatsapp-para-a-amante.shtml
*****http://www.tijolaco.com.br/blog/o-brasil-envergonhado-cunha-o-ladrao-vinga-se-de-dilma/
 
 

Filosofia da Distribuição do Produto Social 6t2s2j

Duílio de Avila Bêrni – Professor de economia política aposentado (UFSC e PUCRS). Co-autor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Movido por indisfarçável sarcasmo, criei há um par de anos o que vim a batizar como “o primeiro teorema do PIB” que, singelamente, afirma que o PIB representa 100% do PIB. Não deixa de ser, já que vamos falar em filosofia econômica, um traço filosófico, na linha da afirmação originária da filosofia grega de que (A) é (A) e também que (A) (não é) (não-A). Um número expressivo de economistas, jornalistas e outros agentes societários desconhece meu truísmo por não ter clareza sobre a definição de valor adicionado. Fazendo algumas simplificações, como o domínio de uma tecnologia muito simples, omissão da luz do sol, da água da chuva, etc., a noção de valor adicionado resplandece, caso pensemos na semeadura feita pelas mulheres maias, quando plantavam, digamos, um quilo de grãos de milho e colhiam cinco. A diferença entre cinco quilos de produto e o quilo do insumo é o valor adicionado que se deixa medir por meio de três óticas de cálculo[1].
Uma vez que aceitemos a existência de um valor adicionado e três óticas de medi-lo, é seguro afirmar que todas elas devem conduzir ao mesmo resultado, o que, de maneira mordaz, leva-nos a sugerir a expansão daquele primeiro teorema: (P) é (Y) e também é (D), ou seja, o conceito de valor adicionado foi concebido de tal forma que podemos medi-lo usando as óticas do produto P, da renda Y e da despesa D. O produto é mensurado da forma sugerida (cinco quilos de milho menos um quilo de milho). A renda, que pode ser mensurada em quilos de milho, horas de trabalho, reais, ou qualquer outra unidade de conta, representa os rendimentos auferidos pelos trabalhadores e outros agentes, eufemisticamente designados por residual claimants (entre eles, a tributação indireta estabelecida pelo governo) que se encarregam de recolher o montante não apropriado pelos trabalhadores. Voltamos ao teorema fundamental: quando maior for a participação dos trabalhadores na renda, menor será o montante a ser “clamado” pelos não-trabalhadores, seja os capitalistas, seja a cobrança de impostos indiretos líquidos de subsídios pelo governo. Por fim, a despesa informa o destino daqueles cinco quilos, quanto foi absorvido para consumo final e quanto foi guardado para a semeadura do ano seguinte.
Em resumo, o produto P não encolhe quando é designado com o Y da renda ou aumenta, se for chamado de despesa D. Um exemplo ilustrativo desta incompreensão, e justificativa para estes esclarecimentos, é dado pelo segmento das classes empresariais e arautos emergentes das classes assalariadas. Eles consideram que o governo, ao ter seu tamanho mensurado pela ótica da renda (no caso a tributação indireta), é paquidérmico. Mas, ao medirem usando a ótica da despesa (gasto público), e se deparando com a falta de serviços públicos de qualidade, constatam um tamanho exíguo.
Pois então. Ao lado das drágeas da filosofia grega e seus corolários que acabamos de examinar, também estou citando em favor de meu teorema um dos mais sólidos pilares da formação da ciência econômica, David Ricardo. Para o consagrado economista britânico do século XIX, a economia política é a ciência devotada ao estudo da distribuição do excedente econômico entre as classes sociais. Com efeito, uma vez que o produto social representa 100% de si mesmo, temos bases sólidas para garantir sua coerência lógica, mas também para enfatizar que o problema central da economia política consiste em sua distribuição.
A distribuição dos resultados da ação econômica da sociedade, isto é, do valor adicionado, neste contexto, tem as regras que a condicionam e modificam ao longo do tempo. Assim, na sociedade primitiva, quem regulava a resposta à pergunta “para quem produzir” era o costume, com prioridade das necessidades dos guerreiros, por exemplo, sobre as dos escravos. Nas economias monetárias, consolidou-se o trio mercado-estado-comunidade como responsável pela criação de instituições mais ou menos adequadas ao enfrentamento das necessidades da sociedade. No mercado, entra em ação o mecanismo de preços, o estado é regido pela política, ao o que a comunidade ajusta-se a consensos e dissensos voltados a proclamar a paz ou convocar para a guerra. Mesmo nas sociedades pré-capitalistas, articula-se um ciclo em que a distribuição dos resultados do esforço produtivo de homens e do emprego de bens de capital molda padrões de consumo que influenciam a estrutura produtiva responsável pela distribuição do produto social, que alimenta a circulação. Vejamos, entre as oito principais questões enumeradas por Joan Robinson e John Eatwell cuja resposta é objeto da filosofia econômica, quais são, direta ou indiretamente, as conexões distributivas.
A primeira delas indaga de onde provém a riqueza material. Os primeiros economistas ingleses fizeram uma analogia antropomórfica ao afirmar que a terra é a mãe e o trabalho, o pai. Hoje em dia, a terra é importante, claro, sem terra não há agricultura, e nem mesmo as bases territoriais das cidades. Todavia, principalmente em resposta à diversidade de bens materiais produzidos pelas indústrias química, metal-mecânica e eletro-eletrônica e pelos serviços, a agropecuária cedeu espaço na estrutura da produção.
As duas próximas questões cujas respostas vamos procurar tangenciar dizem respeito à origem do excedente econômico e do lucro. Vamos endereçar-nos a ela com a retomada do exemplo que usamos para fixar aquela noção intuitiva de valor adicionado: colheita menos sementes. Dada a existência prévia das sementes, a origem do excedente certamente é o trabalho, pois aquelas sementes não foram parar dentro de sulcos especialmente preparados para acolhê-las por mero acaso. Houve mão humana que lá as depositou. Mas o trabalho não é o único fator de produção usado na atividade lavoura, pois arados, adubos e água são igualmente importantes. Assim, o excedente possui uma origem visível, nomeadamente, o trabalho. Quanto ao lucro, estamos falando novamente em distribuição: um indivíduo ou um grupo apropria-se do chamado resíduo entre o total colhido de sementes e aquela fração absorvida pelos trabalhadores. Podemos imaginar casos em que esta apropriação é feita sem sobressaltos, mas também por meio de confisco.
A quarta questão filosófica a que os economistas devem endereçar-se indaga se há algum princípio associado aos valores das mercadorias que expliquem as variações erráticas em seus preços. Todos nós observamos variações erráticas nos preços e nas quantidades das mercadorias. Lembremos os dias de chuva em que aparecem guarda-chuvas e sombrinhas e, mais recentemente, capas de plástico transparente, com preços bastante diversos dos vigentes nos dias ensolarados. Mas também volta e meia somos surpreendidos com um sobe-desce nos preços das hortaliças, um casaco de inverno vendido por R$ 400 em maio e por R$ 150 em novembro, e assim por diante. Todas as escolas do pensamento econômico parecem concordar que em geral o preço reflete os custos de produção das mercadorias acrescidos de uma margem de lucro, mas ele também pode variar se “está vendendo bem”. Mais ainda, todas as escolas item que o preço varia inversamente com a produtividade do trabalho. Há divergências apenas quanto ao nome a ser dado a estas regularidades. Uns atribuem-nos a maior disponibilidade do bem ou serviço por unidade de esforço, e outros falam na teoria do valor-trabalho, isto é, a convicção de que o valor das mercadorias reflete a quantidade média de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção.
Nossa quinta questão problematiza o papel do dinheiro numa economia. Esta questão encontra-se tão arraigada em nosso cotidiano que raramente relutamos em aceitar pedacinhos de papel impresso pelo governo como pagamento de dívidas, ou caderninhos emitidos pelos bancos. E, mais surpreendente, os outros indivíduos também aceitam nossas cédulas monetárias e cheques. Esta questão tem diferentes respostas, dependendo do período de tempo escolhido para a reflexão. Obviamente houve momentos na história da humanidade quando não existia dinheiro, ainda que existisse divisão do trabalho. Mas foram a crescente divisão e especialização do trabalho que ampliaram a obtenção de excedente e, com ele, o volume de trocas entre produtores individuais. Das trocas, surgiu um denominador comum de valor, que começou a receber a forma de moedas metálicas pouco mais de meio milênio antes da era cristã. O crescimento das trocas foi requerendo novas formas de agilizar as transações, levando o dinheiro a experimentar crescente desmaterialização. Depois da disseminação do crédito, já na idade média, o dinheiro ou a ser representado por signos de papel lastreados em ouro. Mesmo essa correspondência foi perdendo substância para chegar ao que hoje se chama de moeda fiduciária. Assim, o dinheiro é aceito em virtude da confiança que nele depositam os agentes econômicos. Neste sentido, a função do dinheiro na economia associa-se a três propriedades: meio de troca, instrumento de pagamento e reserva de valor. Mas, mais que estas funções operacionais, ele tem outro papel muito mais basal e abstrato, qual seja, o de selar os arranjos institucionais que permitem que a atividade econômica seja desenvolvida sem sobressaltos.
Ao discutirmos a sexta questão central da filosofia econômica, nomeadameante, qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade?, precisamos deixar clara a diferença entre renda (ou rendimento monetário) e riqueza. A renda é uma variável fluxo, ou seja, nasce e se desenvolve durante um período de tempo, ao o que a riqueza é um estoque criado por meio do trabalho em diversos períodos, sendo acumulada na forma de máquinas, equipamentos, instalações, joias, obras de arte, posse de metais preciosos, depósitos bancários em dinheiro, títulos, etc. Assim, infelizmente, uma sociedade rica pode não levar necessariamente ao bem-estar de todos os indivíduos, pois os rendimentos monetários de muitos deles chegam a ser muito baixos independentemente da riqueza do país. Alta riqueza pode produzir alta renda, mas alta renda não garante boa distribuição, e com isto, deixa à mostra visíveis diferenças nos padrões de consumo entre as famílias.
Nesta linha de argumentação, ressalte-se que o diferencial de renda entre pobres e ricos é o objeto da sétima questão formulada por Robinson e Eatwell: qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade? Trata-se do questionamento do grau de justiça social vigente em uma sociedade de enormes disparidades na riqueza e, principalmente, na renda. Neste caso, devemos retomar aquele brincalhão “primeiro teorema do PIB” de que falamos no início do artigo. O problema central que diferencia os indivíduos reside no processo de distribuição do produto social, o que ocorre anualmente, e qual será a fração destinada a aumentar o estoque de capital da economia, pela ampliação dos meios de produção ou mesmo retenção de metais preciosos, obras de arte, etc.
Esta questão sobre famílias ricas e pobres leva-nos a refletir sobre as unidades que não participam do aparato produtivo da sociedade, como os trabalhadores desempregados, os trabalhadores doentes ou deficientes, os jovens e os velhos. Parece meridiano que estes agentes não auferem rendimentos originários do mercado de trabalho e muitos deles tampouco recebem rendimentos do capital, na forma de juros sobre os montantes cedidos por empréstimo a outros agentes. Essa constatação evidencia a existência de outro nível de distribuição que não exclusivamente aquele associado aos mercados de fatores de produção. Ou seja, há pessoas – o número de ricos relativamente ao de pobres é muito maior – que não participam da geração do produto, mas o fazem na absorção da despesa.
Como oitava e última questão, a filosofia econômica, dada a constatação de crises periódicas que assolam o capitalismo desde pelo menos o início do século XIX, indaga se existe algum mecanismo endógeno ao funcionamento do sistema que garanta um nível de procura agregada capaz de manter homens e máquinas plenamente ocupados. Com ela, estamos problematizando a possibilidade de se evitar o desemprego dos trabalhadores. O que varia na forma de responder a oitava questão é o grau de aceitação por parte da sociedade da intervenção do governo na economia. Sem desconsiderar os desdobramentos políticos envolvidos, atemo-nos à visão dos economistas, destacando que uma parte considera que qualquer intervenção governamental no mercado é indesejável, por contraste a outro grupo que valoriza o planejamento econômico.
Na medida em que a questão do desemprego envolve um tema que pode fazer a diferença entre a autonomia e a subordinação do indivíduo ao status quo, vamos dedicar-lhe as reflexões finais deste artigo, ao considerar que a política econômica pode ser o instrumento de combatê-lo. Quando realizado com qualidade técnica e virtudes morais, o planejamento pode amenizar quedas no valor adicionado devidas às depressões, mas hoje sabemos que ele tem se mostrado incapaz de evitá-las completamente. A preocupação fundamental é se o capitalismo, em tendo sua autorregulação complementada pelo governo, pode oferecer um bom padrão de vida que resista a pressões descendentes. A questão central é desdobrada, levando-nos a indagar, primeiramente, se vale a pena nos preocuparmos em reduzir as flutuações cíclicas e, em tendo-a respondido afirmativamente, como “alisar” o ciclo econômico, impedindo que um vigoroso nível de emprego contamine os preços, ou seja, que não gere pressões inflacionárias.
Numa economia monetária, é evidente que as questões filosóficas que tratam da distribuição do valor adicionado rapidamente invadem o campo da política. E também há algumas verdades meridianas a elas associadas. A primeira indaga se, com a queda generalizada na produção durante as fases negativas do ciclo econômico, haverá algumas atividades que se dão melhor durante a crise, como os serviços de reparação e manutenção de equipamentos prestados às empresas. A segunda indaga o montante em que, caindo os lucros, haverá agentes que nele baseiam seu nível de consumo e que deverão reduzi-los. Por fim, a mais visível perdedora nestas circunstâncias é mesmo a classe trabalhadora que requer proteção especial que a compense pela sina de ser “livre de qualquer meio de produção”. Os mecanismos criados pelo estado voltados a defender seus rendimentos, como o seguro desemprego e, independente dele, a renda básica da cidadania, são indicadores do marco civilizatório que começou com a produção de excedentes alimentares, avançou para as economias monetárias e não pode terminar lugubremente sepultado pela ideologia neoliberal.
 
[1] Ao lembrarmos que a distância entre o olho do leitor e a tela pode ser avaliada do olho para a tela e desta para o olho – duas óticas –, não ficaremos incomodados com as três óticas colocadas a serviço da ciência econômica.