Faz tempo que a inteligência artificial (IA) deixou os centros acadêmicos de pesquisa e ganhou o mundo. Se já estamos prontos para conviver com robôs, muito em breve não acharemos estranho, ou assustador, a presença de carros autônomos sem motoristas.
Já existem máquinas capazes de fazer cálculos ou estabelecer diagnósticos melhores do que qualquer pessoa. A inteligência artificial começa, agora, de forma acelerada, a ocupar cada vez mais postos de trabalho antes destinados aos humanos.
E não é só isso. A garrafa do gênio foi aberta e não têm como colocá-lo de volta. Próteses cada vez mais perfeitas poderão substituir membros e órgãos, melhorando em muito o desempenho.
Chips implantados no cérebro podem duplicar, para dizer, o mínimo, o quociente de inteligência. Ao misturar inteligência artificial com inteligência biológica continuaríamos humanos?
Há muito mais perguntas. Seria possível a construção de uma consciência artificial?
A IA vai ultraar a inteligência dos humanos?
Recusar a IA ou controlá-la em escala mundial, como o caso das armas atômicas?
Qual a ética, limite, filosofia em relação a IA?
São algumas das questões, entre outros temas, que Bruno Castro da Silva, professor adjunto do Instituto de Informática da UFRGS, com pós-doutorado em IA no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o melhor centro de estudos de computação no mundo, esclarece nesta entrevista exclusiva ao JÁ.
0 que é inteligência artificial?
-A definição é um dos grandes problemas. Primeiro, porque já é difícil definir o que é inteligência. Para alguns é a capacidade de planejar coisas, estabelecer uma seqüência de ações para atingir um objetivo. Para outros também a pela capacidade de comunicação. Enfim, coisas muito subjetivas para mensurar de uma forma objetiva. No que tange a IA, a melhor definição pode ser a de qualquer comportamento que um computador exiba que fosse considerado inteligente se fosse efetuado por uma pessoa.
É possível datar o início dos trabalhos no campo da IA?
-A parte mais importante – aquela que não é relacionada com literatura, ficção – no campo da pesquisa e estudo começou com Alain Turing na década de 1950. Turing ficou famoso por ter (junto com seus colegas) decifrado durante a 2ª Guerra Mundial a máquina de códigos alemã Enigma, utilizado nos U-boats (submarinos) para bombardear os navios dos aliados. Turing também inventou a computação como a gente entende hoje, e escreveu o primeiro artigo (revista inglesa Mind, 1948) científico sobre IA. Uma das coisas que ele propôs foi o teste de Turing. Nele, verifica-se de forma pragmática se o aparelho é inteligente (ou não) quando não dá para distinguir se é uma máquina ou uma pessoa que está interagindo.
Seis décadas depois de Turing, ele morreu em 1954, como estão às pesquisas no campo da IA?
-No início as expectativas quanto ao desenvolvimento da IA eram muito altas, mas os avanços não correspondiam. Também, entre os anos 1950 até o começo do século XXI, as pesquisas, grosso modo, ficaram muito restritas a área acadêmica, dentro das universidades, com pouquíssimas aplicações fora deste âmbito. As coisas só começaram a mudar de verdade a partir de 2006, com o avanço de uma técnica chamada redes neurais. A partir daí o emprego da IA ganhou de forma significativa e rentável o mundo empresarial.
Mais especificamente, em que tipo de aplicação?
-Principalmente na detecção de fraudes, técnica muito utilizada já há algum tempo pelos bancos. Também, ainda em relação aos bancos, análise da utilização de cartões visando a estabelecer um padrão, repertório, preferências, hábitos, do cliente. Ou seja, sempre que se utiliza o cartão se está interagindo com uma IA. Depois tem aquilo que se denomina como sistema de recomendação, algo que também é muito rentável, e que é muito utilizado por livrarias.
Como assim?
-Trata-se de algo muito simples, baseado nos livros que alguém encomendou ou procurou num site. A partir desta escolha ou pesquisa feita pelo cliente, recomenda-se outros títulos que tenham afinidade. Na Amazon, uma grande parte da arrecadação vem deste aplicativo de recomendação. O Netflix faz a mesma coisa, estabelecendo através das solicitações de filmes de determinada pessoa o seu padrão de preferências. Mesmo procedimento em relação à música. Funciona. Por último, e o mais rentável, é aquilo que chamam de marketing digital, através do qual o Google ganha muito dinheiro. Ele tem o a tudo e sabe de onde as pessoas estão ando, podendo estabelecer perfis econômicos e interesses dos usuários e colocar anúncios publicitários direcionados, específicos para aquele tipo de consumidor. Enfim, nada é de graça.
E no Brasil, como está o desenvolvimento da IA?
-Dentro da academia ela sempre foi forte. O Brasil, embora tenha poucos recursos para ensino superior, sempre teve grupos importantes de IA, destacando-se o da UFRGS, onde o Instituto de Informática foi fundado há 29 anos. Fora a UFRGS, também são importantes os trabalhos em IA efetuados pela UFMG, a USP, e a UFRJ.
Atualmente, no mundo, e não só em nível acadêmico, há muita discussão em torno de aplicações de IA?
-Pra se ter uma idéia, há cerca de dez encontros anuais no mundo. Em média, para cada um deles são enviados cerca de cinco mil trabalhos em diversas áreas da IA: robótica, medicina, comunicação, etc. Deste total, dez por cento dos trabalhos enviados – gente da Google, da Microsoft, por exemplo – são selecionados pra serem apresentados. E nós, aqui da UFRGS, geralmente, sempre conseguimos publicar artigos nestas conferências. E olha que eles são muito rigorosos, nem poderia ser diferente, dada a quantidade, mas com critérios justos de escolha, baseado apenas nos conteúdos.
O sr já teve artigos aceitos?
-Sim. No último encontro que participei, na Suécia, tive dois artigos aceitos: um tratava sobre segurança na IA. E o outro sobre o emprego da IA para melhorar o trânsito urbano através da implantação de sinaleiras inteligentes.
No mundo, quem está na frente no campo da pesquisa em IA?
Estados Unidos, China, Reino Unido.
-Como foi a sua formação?
-Entrei no Instituto de Informática da UFRGS em 1999. Graduei-me em 2003 e em 2007 apresentei minha dissertação de mestrado, também aqui na UFRGS, sobre IA. Então, enviei meu currículo para fazer o doutorado a diversas universidades fora do Brasil. Fui aceito em várias delas e acabei escolhendo a Universidade de Massachussets. Depois fiz pós-doutorado no prestigioso Massachussets Institute of Technology (MIT). Trabalhei com o professor Andrew Barto, o maior especialista dentro do campo da ciência da computação numa área chamada, em inglês, Reinforcement Learning ( aprendizagem por reforço). Minha tese foi nesta área.
Esta área compreende exatamente o quê?
-Aprendizado por reforço é uma técnica muito utilizada no adestramento de animais. Ela funciona a base de recompensa. Peguemos o exemplo dos cães. Se o cachorro pegar o jornal ganha um biscoito, etc. Meu trabalho consistiu em ajudar a melhorar as técnicas de adaptação deste processo de aprendizagem para as máquinas. É algo que vem avançando muito. Em 1997, um supercomputador da IBM, o Deep Blue, venceu Garry Kasparov, o campeão mundial de xadrez. Mais, no jogo GO (um jogo chinês, envolvendo peças brancas e pretas num tabuleiro), considerado o mais difícil do mundo, e que seria impossível desenvolver uma inteligência artificial capaz de enfrentar um jogador hábil, também foi vencido por um computador, sendo empregada à técnica de aprendizagem por reforço.
Mas onde é que entra esta técnica de aprendizagem por reforço na IA?
-O agente, a IA, observa o que está acontecendo num ambiente naquele momento. Através do exame de uma situação o agente escolhe uma determinada ação com base na referência a conquistar. Enfim, a IA estabelece um padrão de quais recompensas são oferecidas a cada momento. Isso é muito aplicado em robôs, por exemplo.
Muitas máquinas já têm um desempenho melhor em certas tarefas do que um ser humano. Como preparar a sociedade para a IA?
-É um problema delicado e remete aos primórdios da Revolução Industrial quando, na Inglaterra, membros do movimento ludista quebravam as máquinas que substituíam o trabalho humano. Verificou-se com o ar do tempo que era uma bobagem, pois novas profissões foram criadas. Por isso há um certo otimismo em relação a IA. Muitas pessoas acreditam que ocorrerá um processo semelhante ao da Revolução Industrial e os trabalhadores migrarão para outras áreas de atividades, serviços, etc. Não sou tão otimista.
Por quê?
-O problema é que as coisas não se arão da mesma maneira devido a velocidade das mudanças. Vai atingir as pessoas mais pobres, a parcela mais vulnerável da população. Não dá para transformar um pedreiro em um engenheiro, assim, rapidamente. Num cenário mais próximo, dá para dizer que muita gente perderá o emprego, e, dada a velocidade, talvez não tenham tempo de migrar para novas profissões. Daí esta ideia que cada vez ganha mais corpo que é a da renda mínima universal, um rendimento para que as pessoas, literalmente, não morram de fome, e que tenham uma vida minimamente decente. Isso é algo plausível.
Em termos de trabalho e empregos, que setor será o mais afetado, pelo menos num primeiro momento, pela IA?
-O de transportes. Muitas empresas, como a Tesla, Google, Uber, já estão desenvolvendo carros autônomos. A tecnologia já existe e o comportamento destes carros autônomos em testes na circulação – percorrendo longas distâncias sem se envolver em acidente – é melhor do que os veículos dirigidos por seres humanos. É só uma questão de tempo, dez anos, aproximadamente, para que os motoristas sejam substituídos. De resto, nos aviões quase todas as atividades já são feitas por computadores, o piloto só está envolvido no pouso e na decolagem. E trens também não precisam de condutores.
Além dos transportes, que outras áreas serão afetadas pela IA?
-A probabilidade nos próximos anos é que desapareçam empregos nas áreas de telemarketing, contabilidade. Breve não existirão mais vendedores de lojas, escritores técnicos (redatores que compilam artigos da Web). O Google, por exemplo – através do news.google.com – já tem um serviço de notícias elaborado por IA. Também desaparecerão empregos como maquinistas, pilotos na área comercial. Na área de saúde, hoje, computadores são capazes de realizar, em muitos casos, exames e diagnósticos com interpretações muito mais precisas do que os profissionais do ramo. O mesmo vale para dentistas, treinadores, terapeutas recreacionais, pessoas que trabalham com limpeza. A lista não para de crescer.
Um mundo de adaptados versus outro de assistidos, livres para consumir a sua telerrealidade. Corremos o risco de criar um apartheid?
-Principalmente se as pessoas começarem a estender a IA aos seus corpos, melhorando-os. Se isso ocorrer formará uma casta diferente de pessoas. Elas conseguirão pensar mais rápido, ter mais força, enxergar melhor, bem diferente de outras menos capacitadas. Isso criaria um estigma.
O sr falou em modificar os seres humanos, esta é uma outra possibilidade da IA?
-As experiências começaram numa área chamada de neuroprotética. Um exemplo são os braços robóticos, que diferentemente da prótese tradicional, não são membros puramente acoplados, pois lêem os sinais do cérebro da pessoa para fazer o movimento desejado como mexer a mão, pegar alguma coisa. Ou seja, literalmente lê a mente. Isso já existe. Depois começou a se fazer pesquisa com olhos artificiais. Funciona, mas ainda não está disponível no mercado. O problema está entre aqueles que já nasceram cegos, pois, neste caso, existem conexões no cérebro que não foram desenvolvidas. Mas para aqueles onde a prótese é possível se pode, dominada a tecnologia, fazer a seguinte questão: o que me impediria de colocar uma prótese de aparelho ocular muito superior – fazer 20 x de zoom, infravermelho – ao natural humano? Enfim, Será possível dotar alguém com uma visão muito superior a de uma pessoa normal.
Bem-vindo ao mundo dos ciborgs, dos robocops …
-É isso aí. Próteses com ótimos desempenhos para mãos, pernas, coluna, olhos, etc.
Biotecnologia, nanotecnologia, neurotecnologia. Há alguma possibilidade de eliminar a morte?
-Têm duas visões sobre isso. Numa delas, a indagação: por que a gente morre? Ou, por que teríamos de morrer? Cada vez vivemos mais. Mas, há uma hora em que o coração, que é uma bomba, para de funcionar. Com o avanço da tecnologia, o coração, pulmão, assim como os demais órgãos, poderiam ser trocados por outros artificiais. Então, o que impediria uma pessoa de viver para sempre?
Está provado que a escola pode fornecer conhecimentos, mas não pode aumentar o quociente de inteligência de uma pessoa O maior QI já verificado é o de um matemático australiano, de origem chinesa, com cerca de 230 pontos. A tecnologia está acenando com a possibilidade de se introduzir microchips no cérebro, multiplicando a capacidade intelectual. Como o sr. vê isso?
-É a interface cérebro-computador, ou mente-máquina. É só uma questão de tempo. Em 2005 teve um estudo feito pela IBM que consistia em simular no computador o funcionamento dos neurônios individuais do cérebro de um rato. Simular no nível químico: dopamina, neurônio, transmissão de sinal elétrico. Depois de 50 dias eles conseguiram simular no computador o que aconteceria em um segundo no cérebro deste rato. Foi lento, mas, constatou-se que é possível fazer a simulação de um cérebro. No que isto implica? Será que este cérebro simulado seria tão consciente quanto o nosso?
Caberia, talvez, uma outra pergunta de conteúdo filosófico, religioso. O que é que nos permite ser inteligentes? É só a maneira como nosso cérebro é organizado ou tem alguma coisa a mais?
-Pode não ser só o cérebro. Seria a alma? É difícil discutir a parte religiosa, ela não é científica. Nesta área se parte do pressuposto que não há nada sobrenatural, que o cérebro é um conjunto de coisas químicas e elétricas que estão acontecendo ali. O conhecimento disso, de que é um processo químico e físico, é que possibilita, por exemplo, a fabricação de remédios antidepressivos, ou de estimulantes para quem tem déficit de atenção. Uma das possibilidades que se discute seriamente é que uma vez assumido que o cérebro é só um sistema que obedece às leis da química e da física, certamente conseguiremos reproduzir todo o seu funcionamento no computador. O que me faz falar e sentir, agora, por exemplo, é o que o meu cérebro está processando. Ou seja, a priori, poderia, neste computador aqui do lado, ter um cérebro artificial, uma cópia da minha consciência, funcionando da mesma maneira que a minha. O que abre uma questão muito mais complicada. É ético fazer isso? Creio que há um limite.
Uma vez feita às modificações no corpo, no cérebro, ainda estaríamos diante de um ser humano ou seria outra coisa?
-Um meio termo. Substituir os órgãos é algo plausível. Também, diferentemente, a partir células-tronco fertilizadas in vitro, é possível criar um rim. Isso já não é artificial, não se trata de uma prótese robótica, mas algo produzido através de elementos do meu próprio organismo. A outra coisa é fazer o do meu cérebro e transferi-lo para o computador, fazendo-o ar a agir exatamente igual a mim, pensar as mesmas coisas. Seria eu ou simplesmente uma simulação perfeita? Trata-se de uma das perguntas centrais da filosofia da IA. A possibilidade de criar aquilo que se denomina de zumbi filosófico, um ser idêntico ao humano.
Isto remete a um tema polêmico. Existe a possibilidade da criação de uma consciência artificial?
-Cada vez mais as máquinas adquirem a capacidade de estabelecer reconhecimentos de padrões, fazer os cruzamentos de dados que os seres humanos conseguem efetuar.
Cenário um pouco apocalíptico. AS as máquinas terminarão por controlar tudo?
-Na computação existe algo chamado lei de Moore. Ela diz que a capacidade dos computadores dobra a cada ano e meio. Como as coisas estão cada vez mais rápidas, vai chegar uma hora em que uma IA será equivalente a um ser humano. Depois haverá outra que será um pouquinho melhor e daí segue num processo sem fim, e em tempos cada vez menores. Imagine isso num espaço de 100 anos. A verdade é que não tem como impedir, parar o progresso científico. Não tem como controlar todo mundo. Teria que matar todos que têm este conhecimento. Enfim, os avanços em termos de tecnologia são exponenciais, cada vez mais rápidos.
O conhecimento de como controlar a tecnologia tem que estar paralelo ao desenvolvimento da mesma?
-Exato. E isso é parte do trabalho da pesquisa que estou fazendo agora. Chama-se controle e segurança sobre IA. Algo ainda bem preliminar, mas, só para dar um exemplo: já se sabe que existe IA que consegue discriminar, analisar currículos, ver se tu és um bom natch (um ser compatível com o tipo de cultura que existe na empresa). Google e Microsoft fazem isso, treinam IA que verifica perfis de pessoas que profissionalmente seriam mais promissoras.
São infalíveis?
-Não. Cometem erros como, por exemplo, o de prever, em alguns casos, que o rendimento das mulheres seria inferior ao dos homens. Isso, olhando os dados e as estatísticas das empresas, não tem nenhum fundamento ou diferenças significativas. A IA sempre estabelece padrões, uma média. Um dos problemas relativos a IA em áreas médicas é naquilo que ela pode explorar por conta própria. Assim, se a IA é capaz de fazer um diagnóstico correto, muito superior a um ser humano, pode errar na dosagem de remédios, matar sem querer, algo que um médico não faria. Ele sabe que se triplicar a dosagem de um determinado remédio o paciente vai ar mal, pode morrer. Este tipo de compreensão, de nuance, ainda é difícil para uma IA. É preciso desenvolver um método que indique as dosagens, que a probabilidade de dar um problema seja menor do que 0,01 por cento. Ou seja, incluir restrições no processo de decisões da IA para que ela não faça coisas que sejam perigosas.
Com pós-doutorado no MIT e, inclusive, sendo ex-professor desta prestigiosa instituição, o sr deve receber muitos convites para trabalhar no exterior. O que o faz permanecer na UFRGS?
-Recebi muitos e-mails do Google, da Microsoft e da IBM querendo me contratar. Os salários que oferecem são ótimos, não tem comparação com o que ganho aqui. Mas, o que me levou a querer voltar e permanecer no Brasil, em Porto Alegre, foi, em primeiro lugar, a minha família. Por outro lado, até o mestrado, fiz toda a minha formação aqui, na UFRGS. Esta universidade me proporcionou tudo no ado e, nos últimos anos, sempre viajo a convite para realizar palestras e cursos no exterior, Europa e Estados Unidos, sobre IA. Enfim, também é uma questão gratidão e poder devolver tudo que aprendi a esta querida instituição.