O seminário Crise da Representação e Renovação da Democracia, realizado em Porto Alegre em 5 e 6 de setembro, reuniu cidadãos brasileiros de várias tribos profissionais com jornalistas, estudantes e estudiosos de comunicação, ciências políticas e articuladores dos novos movimentos mundiais, como Bernardo Gutierrez, do 15 M da Espanha, e Eirikur Bergmann, professor da Escola de Ciências Sociais da Bifröst University, na Islândia e diretor do Centro de Estudos Europeus. Uma fauna humana interessantíssima. Sentiu-se fora da era digital a pessoa que sentou calmamente, desligou o celular para não interferir, não dispersar o pensamento, pegou o silencioso bloquinho de notas e a caneta deslizante. Pelo menos 90% dos presentes fizeram exatamente o contrário, sentaram-se com a aparelhagem disponível. Não há mais mesas entre palestrantes e plateia, entre eles há laptops, celulares e androids. Enquanto um palestrante fala, sua imagem, seus textos, as entrevistas que ele deu, saltam na tela das centenas de pessoas, que também aproveitam para enviar aos seus contatos de rede social pequenas frases e imagens ao vivo. Entre os palestrantes não é diferente, ficam à vontade no palco para manusear seus aparelhos durante a palestra dos colegas. Os antigos rumores e cochichos das velhas reuniões foram trocados por bips e um som de fundo, um zuuuuu não ionizante absolutamente incorporado. Mas a proposta não era mesmo discutir sobre o nível de radiação não-ionizante do local, que deve ter sido altíssimo. Muitas questões e um debate quente sobre reforma política e das comunicações, mídias digitais como instrumento de participação política, conceitos e práticas de democracia, não poderiam ter sido melhor representadas por uma exposição do artista plástico Ubiratã Braga no mesmo sexto andar da Casa de Cultura Mario Quintana. Céus de Chumbo sobre Horizontes de Ferro, o nome-tema da exposição, por coincidência ou não, definiu o panorama político e midiático do momento. Ao final das palestras sobraram questões sobre os céus de chumbo que herdamos e os horizontes de ferro previstos e já vistos por aí. Sergio Amadeu, sociólogo, professor da UFAB e pesquisador em software livre, avisa que a internet livre está sob ataque: “Arrisco dizer que o capital econômico de telecomunicações em breve abocanhará até a Rede Globo e o ministro Paulo Bernardo integra esse coletivo de ataque contra a liberdade digital. Estado e corporações Numa palestra bastante didática, Amadeu trouxe vários temas, como a crise da intervenção, que envolve a indústria da música e a propriedade dos bens imateriais, a imprensa, a educação e os partidos políticos, destacando que o Estado é muito permeável às grandes corporações. “As grandes corporações desvirtuam a democracia, andam em corredores e alteram o resultado do jogo.” Natalia Viana, jornalista da Pública.org, destacou que no Brasil existem investigações e denúncias contra os partidos, mas não há jornais que investiguem as empresas. Para Joaquim Ernesto Palhares, da Carta Maior, é na questão de apoio econômico que a mídia tradicional se sustenta: “Somos muito frágeis diante do poder que essa gente tem”. Na seqüência, completou que essa mesma mídia vive seu momento político de maior fragilidade, chegando ao ponto de se desculpar pelo apoio à ditadura: “Se desculpar não basta, essa empresa deve ir à Comissão da Verdade para se explicar, nós temos mortos, desaparecidos e não é se desculpando que vão resolver essa situação, essa gente tem que explicar o que é o tal do apoio, essa gente ganha bilhões e não dá nenhuma contrapartida”. Antônio Castro, do Sul 21, analisou a eata do dia 20 de junho em Porto Alegre. “As pessoas estavam caminhando e de repente ficaram indecisas se optavam ir em direção ao Palácio Piratini, o poder do Estado, ou se caminhavam até o prédio da Zero Hora, que representa a manipulação do poder”. Para ele é fundamental regulamentar o negócio da comunicação e isso não deve ser confundido com controle sobre a notícia. Antônio E. Castro e Lino Bocchini | Democracia em Rede Lino Bocchini, da Carta Capital, falou da importância das rádios comunitárias e ainda do jornalismo impresso, exemplificando com o Jornalismo B, que aposta nas pessoas que ainda não am internet, embora os os no Brasil tenham números significativos, como o da foto do médico cubano sendo vaiado por médicas brasileiras. A foto, segundo ele, teve um milhão e setecentos mil os e isso é muito mais do que a audiência de qualquer telejornal. A internet aparece como fonte de propagação importante da notícia, mas para Bocchini a figura do bom jornalista, do bom editor continua sendo importante. “O jornalismo de qualidade precisa de dinheiro, nem sempre uma notícia importante dá audiência, precisa de bons profissionais, precisa ser mantido. ” Ele comparou a dificuldade das questões de audiência exemplificando com o Big Brother em alta no momento em que o Egito estava nas ruas e a Carta Capital estava cobrindo, com baixa audiência, um fato tão relevante na política mundial. Antônio Martins, criador do Le Monde Diplomatique Brasil e do site Outras Palavras, foi fundo na crítica de mídia sem excluir as alternativas que começam a reemergir depois de anos de cansaço pelo domínio econômico. “ Precisamos ser capazes de colocar na agenda a Reforma Tributária, precisamos mostrar para a população como é injusto o sistema tributário, fazer com que as pessoas entendam a possibilidade de uma distribuição melhor de renda, o jornalismo deveria ser capaz de explicar a gasolina que é subsidiada para agradar a classe média.” Para Martins essa época de declínio do jornalismo tradicional é ideal para resgatar o bom jornalismo. Difícil é ter uma agenda comum – o que é costumeiro entre gente que pensa, estuda e reflete. Nas questões estritamente jornalísticas, todos concordam que os investimentos econômicos, principalmente os que partem do governo, não estão bem distribuídos. Candidaturas livres O governo segue o mercado, acaba sendo um grande investidor da Rede Globo em primeiro lugar e das outras grandes corporações privadas de comunicação, destinando migalhas aos veículos que representam os cidadãos, suas comunidades, seus direitos. Todos querem a regulamentação da mídia e uma distribuição mais defensável, mais igualitária, ainda que os horizontes pareçam de ferro. Nas questões políticas o bicho pega. Há os que defendem que a Reforma Política deve vir antes da Regulamentação da Mídia, há os que não veem possibilidade de uma Reforma Política sem que antes a mídia seja regulamentada. Discordam com veemência sobre a eficácia dos movimentos apartidários, mas concordam que candidaturas livres, sem representação coletiva, sem causas específicas, viraria facilmente massa de manobra do capital privado. O jornalista Venício Lima e Celi Pinto, cientista política, não acreditam em apartidarismo, defendem que o modo convencional de fazer política via partidos é o que funciona. Celi acredita que fazer política por meio de manifestações virtuais não resolve, nunca resolveu, há uma tendência à dispersão. “O que resolve é a aproximação real, a discussão, o debate de ideias junto aos representantes”. Lima defende a ideia de que o jornalismo sempre foi partidário e a expansão do jornalismo, o caráter empresarial do jornalismo é que acabou fazendo com que se fingisse uma neutralidade, que de neutra não tem nada. “Pode ser que eu esteja muito velho, mas não acredito em política sem partido”. Com Venício Lima e Celi Pinto se alinha também, com algumas diferenças pontuais, Wilson Gomes, da UFBA. “Não acredito em crise da democracia, a democracia é isso mesmo, se ela está em crise sempre esteve.” Para Wilson, democracia é processo, direito de manifestação de todos e o foco seria encontrar um ponto comum junto aos representantes. Ele ressaltou problemas de clientelismo, colonialismo, mas como coisas a serem tratadas pelo estado democrático. “É preciso fiscalização sempre, e diante do controle aparecem os problemas, é o paradoxo da democracia. Se você melhora a transparência e aparecem os problemas, todo mundo se sente pior.” É o caso das denúncias no Brasil: “De fato as pessoas se sentiram mal, como se as coisas de maneira geral tivessem piorado, mas elas apenas emergiram porque na história a roda não anda para trás. A invisibilidade protege o mais forte, a visibilidade protege os mais fracos.” Bernardo Gutiérrez literalmente pulou da cadeira para defender os movimentos apartidários explicando o que ocorreu na Espanha com o 15M, espécie de guarda-chuva de várias manifestações populares. Ele explicou que a água estava para ser privatizada na Espanha, a população se uniu, discordou, o governo não concordou e ainda assim não teve legitimidade, a população venceu, a água é livre. Movimentos populares livres O coletivo 15M abarca hoje muitos movimentos sociais que não se veem representados por partidos políticos convencionais e unem-se em representações populares diversas, como a Maré Verde, da educação, a Maré Branca, da água, e outros. “Na Espanha hoje o que temos são movimentos populares livres que defendem os imigrantes no meio da rua.” Falando um português fluente, ele, que viveu no Brasil, defende as ocupações das Câmaras nas capitais. “Não tem nada mais subversivo do que alterar o código, vamos limpar isso aí e depois vamos ver o que fazer”. Para Bernardo essa movimentação é horizontal, plural e profundamente política, são convergências de coletivos, de lideranças rotativas e sem personalismos. “Nós vamos em um ponto comum para ver a pauta e depois a gente dispersa”. Na Espanha foi criado um novo termo, a extituição, que se opõe ao modelo institucional comum e pouco operativo em relação às demandas reais e urgentes da população. Renato Rovai, da revista Fórum, questiona o sistema democrático e lança no ar uma pergunta: não seria o caso de uma plurocracia? André Rubião, do Centro de Estudos Sociais da America Latina/UFMG, pinçou vários exemplos de democracia com participação popular direta, quando segmentos da população bem distribuídos são escolhidos por sorteio para estudar um tema e decidir sobre ele. Em alguns casos, dentro do sistema democrático, quando há a necessidade de serem referendados pela representação política, acabam não dando certo. Eirirkur Bergmann falou da Islândia, país com 300 mil habitantes que conseguiu por meio de uma reforma política popular derrotar a democracia aristocrática. Ponderando, ressaltou que na Europa crescem os movimentos de partidos populistas conservadores e ultraconservadores, são as chamadas ondas democráticas. “Vemos isso ocorrendo na Hungria e até em países escandinavos, como a Finlândia e a Suécia”. As respostas para essas questões são corpos participativos, como o que ocorreu na Austrália em relação à monarquia. Na Islândia há corpos participativos via cidadãos de várias idades e segmentos sociais. “Acredito que temos um tempo sério pela frente em que as alternativas que conhecemos, esses corpos e práticas podem ser reativos a esses movimentos de partidos populistas.” Benedito Tadeu Cesar, cientista político, favorável à Reforma Política antes da Reforma das Comunicações, destacou que a crise das instituições é mundial, que a roda da história pode sim andar para trás, que o momento é de transformação e isso gera perplexidade e não se deve deixar de levar em consideração que os partidos se burocratizaram, todos eles. “Eu fui um dos fundadores do PT, militei e estudei o PT, mas não posso deixar de dizer que esse partido também se burocratizou.” DO FUNDÃO Na plateia diversas manifestações e questionamentos sobre o modus operandi do seminário. Veio à baila a questão de gênero, em cada mesa apenas uma mulher, uma delas moderadora, palestrantes só duas num total de 23 convidados. O espaço para debate com a plateia foi curto, com formação de cadeiras no palco e tom formal. A galera reclamou ainda do personalismo característico de um velho tempo, da falta de horizontalidades, mas no final correu para buscar seus certificados de presença, algo que representa no mínimo um desejo de se adequar ao sistema do jeitinho que ele é. O coquetel de encerramento foi aberto aos palestrantes e participantes sem distinção e isso parece ter contentado a todos, foi o diferencial desse tipo de evento. O QUE FICOU NO AR Se sabemos que o Facebook elimina páginas, entrega IPs de acordo com a conveniência política e de capital, se sabemos que existe um alto controle de os via Estado ou até mesmo por meio de cidadãos, se existem possibilidades de manipulação da opinião pública pelos meios digitais, se é possível rastrear, espionar e manipular, como podemos crer que a participação popular via novas tecnologias será respeitada? 586567
O Seminário Crise da Representação e Renovação da Democracia foi promovido pelo Gabinete Digital- Democracia em rede. Criado em maio de 2011, é um canal digital – www.gabinetedigital.rs.gov.br – de participação e diálogo entre a sociedade civil e o Governo do Rio Grande do Sul.
O objetivo é permitir que os cidadãos influenciem na gestão pública e exerçam maior controle social sobre o Estado por meio de mecanismos relacionados às novas tecnologias de informação e comunicação.
Apoiaram o evento a Casa de Cultura Digital, a Alter Brasil –Instituto de Ideias, a Granpal, as Universidades Unisinos, UFRGS, PUC, Feevale, a Fundação Perseu Abramo, a Fundação Maurício Grabois, Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, Fundação João Mangabeira e o jornal A Hora do Povo.