Geraldo Hasse, especial para o JÁ Embora já não tenha o mesmo sortimento de épocas mais prósperas, o Armazém Santo Antônio continua sendo um dos grandes pontos de encontro da velha guarda de Osório. Aposentada ou não, uma maioria de veteranos se acostumou a buscar aqui a mais tradicional parceria dos subúrbios brasileiros — pinga boa e conversa fiada – em que tantos apostam simplesmente para ar o tempo ou com a esperança de ganhar alguma coisa mediante prestação de serviço ou troca de favor. Sempre nas mãos do mesmo dono, o armazém começou aqui há 40 anos, quando Adolfo Coelho largou o emprego de chefe da sacaria da Cooperativa Rizícola Osoriense e se estabeleceu em frente, na esquina da rua Firmiano Osório com a RS-30, a rodovia que liga Tramandaí a Santo Antônio da Patrulha, sua terra natal. O trânsito é naturalmente mais intenso do que há quatro décadas, mas o panorama não mudou muito nessa banda (oeste) da cidade. Os galpões da extinta cooperativa continuam a dominar a paisagem, mas há muito tempo têm novos donos e usos diversos. Nascido em 1941, Coelho conhece esse ponto desde criança, quando ava por aqui para vender verduras aos veranistas de Tramandaí, como faziam tantos sitiantes das várzeas litorâneas e das encostas e vales da Serra Geral. Ia de carroça com o pai chacareiro em Santo Antônio da Patrulha. Foi assim por alguns anos — até se convencer, já rapazote, de que não há futuro para empreendimentos em que um dos sócios gosta mais de beber do que de trabalhar. Assim que se sentiu maduro para aventurar-se sozinho no mundo do trabalho, separou-se do pai e virou trabalhador volante da agricultura. Uma de suas costumeiras maratonas era cortar arroz a foice nas várzeas de Capivari e Palmares do Sul, no extremo norte da Lagoa dos Patos. Na primeira vez em que se deslocou para esses distantes distritos de Osório — hoje municípios –, viajou de carona por um caminho de terra que ava por Viamão, nos arredores da capital, pois não havia rodovia que prestasse entre as comunidades do litoral norte. Só depois da primeira safra aprendeu que desde 1921 havia um trem diário ligando Palmares do Sul a Osório. Naquele momento, porém — no início do governo de Leonel Brizola (1959-1963) — a ferrovia já estava desativada. O governo JK (1956-1961) apostava tudo nas rodovias, abrindo caminho para a produção da emergente indústria automobilística. Foi nesse momento que Coelho se deu conta de quanto a economia da região, baseada no cultivo do arroz e na criação de gado, carecia de meios eficientes de transporte. Assim nasceu seu sonho de juntar dinheiro suficiente para comprar um caminhão e viver de fretes encomendados por arrozeiros e pecuaristas. Ele demorou a realizar o projeto, mas conseguiu. Foi uma vitória conquistada aos poucos, degrau por degrau. Seu Coelho apóia o cotovelo no balcão, põe o queixo dentro da palma da mão e começa a recordar. Foi no dia 1º de maio de 1961, depois de fazer muitos biscates nos bastidores da economia do litoral norte, que arranjou emprego no engenho da cooperativa de arroz, um dos maiores empreendimentos de Osório, na época. Mais de 50 pessoas tocavam o secador e o descascador da cooperativa. Fundada em fevereiro de 1960, a empresa cooperativista chegou a ter 324 sócios. Numa daquelas safras memoráveis, recebeu 320 mil sacas de arroz, sendo obrigada a estocar o produto em armazéns alheios, como os depósitos vazios da ferrovia Palmares-Osório. Até no aeroporto se guardou arroz, lembra um ex-sócio da CRO. Em 1966, apoiado pela esposa osoriense, Coelho largou o emprego e abriu o armazém. Por um motivo ou outro muita gente procurava o Armazém Santo Antônio: ou para fazer compra de secos e molhados, ou para tomar uma boa pinga dos velhos alambiques litorâneos, ou tão somente para encontrar os conhecidos e trocar informações sobre oportunidades de negócios. Na década de 1970, depois da inauguração da pista dupla da BR-290, a famosa Free Way, que reduziu sensivelmente o tempo de viagem da capital para as praias, Coelho comprou uma camioneta Ford F-100 para entrega de mantimentos aos fregueses do armazém. Depois comprou um caminhão e começou a puxar arroz para os conhecidos da Rizícola, que já começava a sofrer a concorrência de diversos engenhos privados, todos instalados aqui por perto, na antiga Estrada da Perua. Essa época foi marcada especialmente pela expansão da Cerealista Osoriense, que operava na beira da RS-30, junto ao trevo de ligação com a Free Way. Os veranistas de fim-de-semana, que anteriormente paravam no centro de Osório para comprar pão, pé-de-moleque, roscas de polvilho, linguiça e queijo colonial, começaram a ar direto. O comércio da cidade ainda era dominado pela tradicional Casa Ramos, que ocupava um quarteirão central e vendia de tudo, mas não há dúvida de que a Free Way, complementada pela BR-101, intensificou a tradicional característica osoriense como ponto de agem. Permaneceu porém a antiga identidade agrícola da cidade. Quando não era tempo de colheita de arroz, Adolfo Coelho pegava uns fretes vadios nos arredores. No inverno chegou a carregar cana para a usina da Agasa (Açúcar Gaúcho S.A.), fundada no início dos anos 60 às margens da Lagoa dos Barros, em terras de Santo Antônio da Patrulha. Fora daí, estava sempre no balcão do armazém. Por isso tem na memória muitos episódios ligados à cooperativa instalada do outro lado da rua. Como aquela vez em que o capataz da cooperativa, Adalberto de Tal, vulgo Beto, atravessou a rodovia, apressado. Estranho aquilo, sair do trabalho, naquela hora, duas e meia da tarde. Pouco depois veio a notícia O capataz, homem esquentado, tinha feito uma bobagem: matou com uma única facada no coração o gerente Rudi Garske. Atarantado, Beto teria ido pra casa tomar um banho antes de se entregar à polícia. Diante do filho caçula, perdeu o rumo, pegou o revólver e deu um tiro no próprio ouvido. Muitos freqüentadores do Armazém Santo Antônio ainda se lembram desse episódio, uma das maiores tragédias da história de Osório. Até parece que era sina do cooperativismo osoriense atrair esse tipo de crime. Muitos anos depois da dupla tragédia da Rizícola, outro assassinato marcou o encerramento das atividades da Cooperativa de Carnes do Litoral, a outra que também tinha sede em Osório. As duas cooperativas tinham sócios em comum e chegaram a misturar-se (a Rizícola incorporou ativos da Coocarnes, bem mais antiga), mas não resistiram ao progresso, marcado pelo empreendedorismo individual. Antigos moradores de Osório contam que alguns cabeças da Coocarnes colocavam seus bois gordos diretamente em açougues do litoral, enquanto cobravam de outros associados a entrega da produção no abatedouro da cooperativa. Desse jeito, não houve como impedir que a vaca fosse para o brejo, junto com boa parte do sistema cooperativista gaúcho, atingido em cheio pela crise do balanço de pagamentos do Brasil, em 1982. Para não fechar, a Coocarnes arrendou suas instalações a um aventureiro vindo de outro estado sulino. Não demorou, o arrendatário foi morto a tiro por capangas de um fazendeiro descontente com o não pagamento de uma boiada. Acabou assim a cooperativa dos produtores de carne do litoral norte. O que resta do cooperativismo de produção em Osório é uma usina da Corlac que manipula leite bovino. A Rizícola prolongou sua agonia até 1996, quando foi liquidada. Na média histórica, ela recebia, secava, descascava e ensacava 10 milhões de quilos de arroz por ano. A maior parte dessa produção era vendida para o Rio e São Paulo, onde a marca Albatroz tinha freguesia certa. O movimento da cooperativa arrozeira começou a cair depois que muitos agricultores financiados pelo Banco do Brasil aram a instalar armazéns e secadores em suas próprias terras. Sem mais precisar da cooperativa, os sócios foram se desligando. No final, restavam apenas 40. A dívida da CRO com o BB recaiu nas costas de nove sócios, que ficaram conhecidos na cidade como “O Grupo dos Nove”. Alguns deles lutam até hoje na Justiça para não pagar a conta. Outros fizeram acordo para quitar sua dívida em vinte anos. É o caso do último presidente Rodolfo Israel Scholl. No frigir dos ovos, restou-lhe um saldo devedor de R$ 84 mil, já parcialmente amortizado. Aos que pensam que o fardo lhe seja leve, ele afirma que vem pagando “uns 11 mil reais por ano”. Aos 65 anos, aposentado em tempo integral, Scholl já se livrou das atividades agrícolas, transferidas para o filho. Suas principais ocupações são as reuniões do centro espírita durante a semana e os jogos aos sábados do Milionários Futebol Clube, time que fundou quando era moço. Os prédios da CRO foram leiloados e estão alugados. Um abriga a Serralheria Kassner, o outro hospeda a Oficina Mecânica Entusiasta, especializada em jipes – uma das curtições osorienses. Nos fundos, um antigo galpão virou cancha de esportes. Na fachada dos dois galpões da frente, sob a tinta das pinturas mais recentes, ainda se pode ver, bem apagado, o emblema da Cooperativa Rizícola, marco inicial ou final da carreira de muita gente e tema recorrente das conversas dos botecos da vizinhança. No Armazém Santo Antônio, o expediente nunca termina antes das nove da noite. Assunto não falta: as safras, as chuvas, a seca, o frio, a temporada de verão, o valor dos fretes de caminhão…Hoje com três caminhões, dois deles dirigidos pelos filhos, Adolfo Coelho não enjeita serviço, mesmo consciente de que os fretes nunca estiveram tão por baixo, com tanto caminhão vazio rodando de um lado para outro. Quem tem paciência para ouvir conversa fiada encontra aqui farto material para documentar a evolução da cultura popular brasileira. Um dos assuntos emergentes é a força do vento, principalmente depois da grande plantação de cata-ventos feita por espanhóis e alemães, especialistas na produção de uma tal energia heliótica, como dizem alguns cidadãos de Osório. Ou será energia heliétrica? Sim, por aqui há quem acredite que a energia eólica começa com a letra H. Não é só por efeito da pinga. O pessoal gosta também de cerveja, futebol e música. São famosos na vizinhança os churrascos promovidos pela AABA — Associação dos Amigos do Bar do Adolfo. Quem duvida, veja as fotos expostas no mural, ao lado de bandeiras e posters do Inter e do Grêmio, numa das paredes internas do Armazém Santo Antônio. Embora seja colorado, Adolfo não discrimina os gremistas. 19k2s