Espécie vegetal nativa da Austrália, o eucalipto ocupa cerca de 500 mil hectares no território gaúcho, configurando-se como a mais rica fonte de mel do Rio Grande do Sul. Programa de fomento pretende chegar a 30 mil colméias nos hortos florestais da Celulose Riograndense. GERALDO HASSE Técnico agrícola formado em São Leopoldo, Atilio Lopes trabalhava na área de silvicultura da antiga Riocell quando foi incumbido de arranjar uma área para o veterano Ascindino Curtinaz colocar um dos seus apiários dentro dos eucaliptais da empresa. Foi no ano de 1986 que Lopes acomodou o novo amigo no Horto Colorado, em Butiá, onde, além de milhares de hectares de eucaliptos, havia um viveiro de mudas para suprir plantios em diversas regiões do Estado. Ali poderiam ser colocadas centenas de colméias, mas o apiário pioneiro de Curtinaz continha apenas 40 caixas, uma vitrine modesta para alguém que já era uma lenda viva da apicultura gaúcha. Embora também produzisse mel, Curtinaz fez-se respeitar no mundo apícola por ter dado seu sobrenome a um modelo de colméia bastante usado por apicultores gaúchos, que até então se dividiam entre a caixa Langstroth americana (inventada em meados do século XIX) e as nativas Schenk, criada em 1904 pelo alemão naturalizado brasileiro Emilio Schenk (1870-1945), e Schirmer, opção oferecida pelo apicultor Bruno Schirmer (1905-1973). Entretanto, como lembra Lopes, os maiores inventos de Curtinaz não foram as caixas de madeira, mas dois equipamentos metálicos: uma desperculadeira de favos e um descristalizador de mel. Ocupado com a fabricação, venda e entrega desses materiais, Curtinaz nem sempre tinha tempo para vistoriar suas colméias instaladas em diversos locais, além do horto de Butiá. Às vezes, “esquecia” suas abelhas. Certo dia, já no final dos anos 1980, procurou Lopes, que tinha como missão prioritária comercializar toras grossas demais para ar nos picadores da indústria – era tanta madeira, fornecida a 62 serrarias, que não sobrava tempo para acompanhar o trabalho dos apicultores dentro dos eucaliptais da companhia. Alegando ter-se perdido na imensidão do horto de Butiá, Curtinaz pediu ajuda para localizar seu apiário. Guiado por Lopes, que tinha o mapa das ‘minas de mel’ na chamada região carbonífera, foi ao local exato onde o apiário fora instalado. Nada. Meliantes haviam roubado todas as caixas naturalmente cheias de mel. “Levaram até os estaleiros das colméias”, lembra Lopes, que orientou Curtinaz a levar suas abelhas para um local mais bem vigiado — a Fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro, onde a indústria de celulose de Guaíba mantinha seu maior viveiro de mudas. Ali, ajudado pelo filho Clenio Curtinaz, o velho apicultor produziu mel até o final da vida. Dias antes de falecer em fevereiro de 2018, aos 90 anos, foi visto na Barba Negra vistoriando seu apiário – era época de preparar as colméias para a próxima safra. Ele tinha ali 137 caixas, segundo o cadastro oficial do programa de fomento*. *O segundo da lista foi Flavio Baptista da Rosa, que colocou suas abelhas no Horto São Francisco, em Charqueadas. Ele faleceu em 2016, mas seu apiário (que chegou a produzir 10 toneladas num bom ano) continua ativo nas mãos do neto Rafael Baptista. Ao longo de mais de 30 anos, Ascindino Curtinaz foi um exemplo vivo da prática da apicultura nos eucaliptais cultivados para a produção de celulose. Seu nome serviu como chamariz que ajudou a empresa a atrair outros produtores de mel interessados em explorar as floradas concentradas nos meses do outono – de março a junho. Entretanto, dependendo da região, das condições climáticas e das variedades de eucaliptos, as floradas podem ocorrer em outras épocas, inclusive na primavera e no verão. Somando talhões modernos de origem clonal a capões tão antigos que são popularmente chamados de “eucaliptos crioulos”, a espécie vegetal nativa da Austrália ocupa cerca de 500 mil hectares no território gaúcho, configurando-se como a mais rica fonte de mel do Rio Grande do Sul. Segundo Lopes, que foi ficando com a incumbência de istrar as levas de apicultores migratórios e perenes que procuravam os hortos da empresa, a variedade que mais atrai as abelhas, pelo volume de néctar, é o Eucalyptus saligna. Também é respeitável a florada doEucalyptus robusta. Além desses, continua sendo citado como rica fonte de néctar o Corymbia citriodora, novo nome do popular eucalipto cidró, cujas folhas fornecem o óleo essencial usado como repelente de insetos, em produtos de limpeza e na indústria farmacêutica. Iniciado pela Riocell, continuado pela Aracruz e mantido até hoje pela Celulose Riograndense, o programa de fomento apícola permite à empresa exercer uma função social junto a escolas para excepcionais em dezenas de municípios onde produz madeira para fabricar celulose. Houve anos em que os apicultores doaram à companhia sete toneladas de mel destinado à merenda escolar. No início, o produto era entregue às escolas em embalagens plásticas de 500 gramas sem rótulo. Um dia, por não ter sua origem especificada, o produto foi apreendido por agentes da saúde pública do município de Charqueadas. A partir desse episódio, por ordem do gerente florestal Renato Rostirolla, o mel ganhou identidade própria e ou a ser envasado no entreposto apícola da cidade de Ivoti, cujos apicultores se sentiram motivados a fundar uma cooperativa. Quando o programa de fomento estava maduro, Atilio Lopes animou-se a produzir mel e fundou o Apiário Atemel, marca formada pela fusão do seu nome com o de seu sócio, o agrônomo Edgar Melgarejo, então gerente de silvicultura da indústria de Guaíba. Sem nunca ter mais do que 200 colmeias vistoriadas apenas em feriados e fins de semana, o Atemel produziu mel durante 17 anos, chegando a vender cinco toneladas no seu melhor ano-safra. Em 2013, os dois sócios decidiram vender seus equipamentos a apicultores que vêm quitando sua dívida com mel, ano após ano. Atilio Lopes, apicultor No jardim da sua casa em São Gerônimo, Atilio Lopes plantou uma placa anunciando a venda de mel a R$ 20 por quilo. Com freguesia fiel, o ponto tende a permanecer ativo após as últimas mudanças ocorridas no programa de fomento apícola da Celulose Riograndense, que entrou numa nova fase após a substituição do presidente Walter Lidio Nunes por Maurício Harger a partir de maio de 2018. Aposentado a um ano, Atilio Lopes aceitou o convite para continuar cuidando do fomento apícola da Celulose Riograndense, agora como gestor autônomo, em sociedade com Gustavo Zapata, agrônomo uruguaio que nos últimos anos atuava como consultor remunerado do programa. A partir de 2019, conforme o novo contrato, a Zapata Consultores terá de tirar sua remuneração do mel produzido pelos apicultores instalados nos hortos da Celulose Riograndense. Por conta da virada institucional promovida pela nova direção da empresa, o programa de fomento à apicultura da Celulose Riograndense está desafiado a prover sua autossuficiência. Hoje com menos de 100 parceiros, o programa de fomento premedita encher de abelhas todos os hortos de eucaliptos da Celulose Riograndense. À média de uma caixa por cada sete hectares, a meta para 2020 é chegar a 30 000 colmeias, o que representaria cerca de 7% do número de colméias estimado para o Rio Grande do Sul – de 350 mil a 450 mil. Para fiscalizar as áreas ocupadas pelos apicultores, monitorar a produção e cobrar o pagamento de cerca de 2,5 quilos de mel por colmeia/ano a título de arrendamento, a Zapata Consultores terá de contratar três técnicos obrigados a circular permanentemente nas diversas frentes de trabalho. Aparentemente fácil, o relacionamento entre proprietários rurais e apicultores arrendatários é sujeito a dificuldades inusitadas. Por exemplo, enquanto a coleta de mel é feita à luz do dia, a instalação e a retirada dos enxames acontecem de noite, quando as abelhas não saem de seus ninhos. Não havendo guardas nem porteiras em muitos eucaliptais, configura-se uma situação propícia a furtos e até a vandalismo. Problema ainda sem solução, eucaliptais sem vigilância podem atrair ocasionalmente pessoas dispostas não apenas a furtar mel, mas a levar embora as colméias com sua valiosa população trabalhadora. O abigeato apícola é uma prática emergente que vem obrigando os apicultores profissionais a marcar suas caixas a ferro, como fazem os pecuaristas com seus animais. Sem contar o potencial produtivo, que pode variar de 20 a 40 quilos de mel por ano, uma colmeia equipada com um bom enxame vale tanto quanto duas ovelhas. A valorização do mel vem servindo como atrativo para milhares de amadores, curiosos e “hobbystas” – apicultores de fim de semana, também chamados pejorativamente de “gigolôs de abelhas”, pois se limitam a fazer uma ou duas colheitas de mel por ano, sem se preocupar com a sanidade das colmeias. Muitos tocam o ofício apícola com um viés extrativista, similar ao praticado no garimpo, na pesca e na captura de pássaros.A maioria vê na apicultura um fonte alternativa de renda. Chegando a 200 caixas, alguns se tornam profissionais e progridem, chegando a atuar como compradores de mel de produtores menores. Menos arriscado do que a criação de abelhas, o comércio de mel é lucrativo, mas tem sido alvo da vigilância sanitária, que flagrou recentemente no interior gaúcha uma partida de mel uruguaio contendo resíduos de antibióticos. No início de 2017, estimou-se em 159 o número de apicultores que poderiam instalar-se dentro dos 220 mil hectares da empresa, entre talhões plantados e áreas de vegetação nativa legalmente obrigatória. Nunca alcançado, esse seria um teto fixado pela gerência de suprimentos florestais após acertar um convênio operacional com o departamento de apicultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que possui um campus rural em Eldorado do Sul, bem no centro geográfico da eucaliptocultura da Celulose Riograndense. Orientado pelo professor Aroni Sattler, diretor do departamento, que ou a ter direito a uma participação na produção de mel, o servidor do campus José Odair de Souza foi treinado para operar equipamentos apícolas instalados num imóvel anteriormente usado pelo extinto departamento de suinocultura. Ali ou a ser processado o mel oriundo dos eucaliptais da região, tarefa assumida por Oranilde dos Santos, apicultora de Arroio dos Ratos que aceitou receber R$ 0,50 por pote lacrado. Ela divide a féria com um dos filhos. Até agora a parceria andou razoavelmente bem, mas sua continuidade depende de um novo arranjo operacional entre a Zapata Consultores e o professor Sattler, que já completou o tempo de serviço para se aposentar e pode tomar novo rumo a qualquer momento, embora sem abandonar a apicultura. Pelo cadastro existente, os apicultores exploram menos de 20% da área cultivada pela Celulose Riograndense, que ainda pode estender o fomento aos eucaliptais arrendados à Fibria na região de Pelotas. Diante de tamanho potencial, a istração emergente do fomento apícola está convidando novos e velhos apicultores a aderir à parceria. Dá-se preferência aos profissionais de maior porte, que manejam de 1 mil a 4 mil colméias. São poucos, uma dúzia ou pouco mais, talvez. A maioria dos grandes apicultores nativos está estabelecida em redutos do pampa como Cachoeira do Sul, Caçapava do Sul, Bagé, Livramento, Rosário do Sul, Santiago e São Gabriel. São quase todos veteranos na faixa etária dos 60 anos de idade. A maioria reluta em deslocar seus apiários dos sítios explorados há anos. Por isso, na próxima temporada, segundo Atilio Lopes, deve chegar aos eucaliptais da região vizinha de Pantano Grande, a 100 quilômetros de Porto Alegre, uma leva de jovens apicultores do sul de Santa Catarina que trabalham para abastecer a Minamel e a Prodapys, exportadoras de mel sediadas em Içara e bastante ativas nos últimos anos em território gaúcho. A expectativa de Lopes é que a chegada do “exército catarina” com suas jamantas carregadas de abelhas deve produzir um choque de dinamismo na apicultura riograndense estacionada nos eucaliptais da Celulose Riograndense. Herdeiros do trabalho de desenvolvimento apícola feito por Helmuth Wiese(1926-2002), o técnico agrícola que criou a Cidade das Abelhas em Florianópolis e distribuía abelhas-rainha no interior do seu Estado, eles são considerados a vanguarda da produção de mel no Sul. Nos Campos de Cima da Serra, onde vêm atuando há alguns anos, são vistos como invasores que exageram na lotação dos pastos apícolas ou, seja, estariam praticando uma apicultura não sustentável. 2671c