O Santander Cultural inaugura hoje, 16, a mostra “O centauro do Bom Fim”, sobre a vida e a obra de Moacyr Scliar (1937-2011). O jornal JÁ aproveita a oportunidade para publicar uma entrevista inédita realizada em 2007 com escritor, feita pelo jornalista Francisco Ribeiro. Naquela ocasião, Scliar, aos 70 anos, acabara de lançar “O Texto, Ou: A Vida. Uma Trajetória Literária”. O seu último livro não é propriamente uma biografia. Seria uma poética, não da escrita, mas do escritor Moacyr Scliar, e do escritor em geral? Sim, na realidade essa ideia foi surgindo aos poucos porque, originalmente, era só para ser uma antologia de contos. Eu não me entusiasmei com isso, pois tenho várias antologias. Aí propus que fossem contos e outros textos. Eles concordaram, ei a procurar os outros textos e, então, me dei conta que aquilo ali, de alguma maneira, refletia a minha trajetória. Portanto, poderia encaixar comentários sobre as circunstâncias em que surgiram. Aí, foi nascendo, quer dizer, não é uma autobiografia. É uma reflexão sobre o processo de criação literária em geral e sobre o meu processo de criação literária em particular. E como é este processo? Cada vez, uma coisa, para mim, se revela mais verdadeira. A ideia que as pessoas têm é que o escritor é um cara que escreve com tremenda facilidade, que vai botando as palavras. Mas não é assim. O escritor tem essa facilidade, mas, ao mesmo tempo, ele tem um nível de exigência que o comum das pessoas não tem. Vejo pelos e-mails que escrevo. A pessoa escreve uma frase, pode não estar bem escrita, mas tudo bem, porque serve para transmitir o pensamento dela. O escritor não se contenta com isso. Ele quer transformar a palavra num instrumento de criação estética, e isso exige um esforço. Daí a necessidade de reelaborar. Garcia Marques, em O outono do patriarca, reescreveu 16 vezes o primeiro parágrafo. E eu mesmo, na Zero Hora o pessoal me conhece, reescrevo muito. Mando a minha matéria, aí releio e penso: isso aqui eu podia melhorar. Aí melhoro, mando de novo, e digo, vale essa, aí mando uma terceira vez. E eles já estão acostumados. Jornalista, geralmente, não faz isso, escreve e manda. Tem muitos editores que tiram as obras dos escritores: “chega de mexer”, dizem. Na verdade, escrever é reescrever. Profissionalmente – apesar de todo o reconhecimento regional, nacional e internacional da sua obra –, o senhor sempre se definiu, primeiramente, como médico. A atividade de escrever seria algo secundário? Bem, isso é uma regra, não ocorre só no Brasil. Em todo o mundo, escritores, frequentemente, têm uma outra profissão. Muitos deles são professores universitários, ou trabalham em publicidade. Mesmo na Europa são minoria os escritores que vivem só de literatura. No Brasil, duas dezenas. O Jorge Amado era um deles, e o Érico Veríssimo, a partir de uma certa época. O Jorge teve um negócio que alavancou muito, que foi o partido comunista, que o promovia no Brasil e na Europa. Qualquer livro dele era traduzido em dez, 15 idiomas. Eu não considero isso um problema. Escritor se julga por aquilo que ele escreve. O que ele faz para ganhar a vida, as ideias que ele tem, a maneira como vive, não faz a menor diferença. Tanto isso é verdade que tem alguns escritores que a gente só conhece o pseudônimo. Não sabe nada deles, e não interessa saber. Agora, a questão da profissionalização da literatura e do escritor tem um outro aspecto, porque o cara tem, obrigatoriamente, de pensar em mercado. Se o cara quer viver de escrever, deve, num determinado momento, se perguntar: bom, se eu quero viver de escrever, o que eu tenho de escrever para as pessoas gostarem? Essa é uma faca de dois gumes: de um lado pode significar que o escritor se torna mais ível, mais democrático, abre mais a sua temática; de outro, pode significar que ele está fazendo concessões. Então, nunca me preocupou isso, ficar pensando em como seria bom se eu fosse um escritor profissional. Na verdade, eu nem sei se ser escritor é uma profissão. Eu tenho uma profissão, sou médico. Um médico atende a uma necessidade concreta da sociedade. Mas qual é a necessidade concreta de um escritor? Ele atende a necessidades emocionais, espirituais, etc. Mas, se a pessoa não tem o que ler, ela não vai morrer por causa disso. Por outro lado, a atividade de escritor não é desenvolvida como a de um operário, que tem horário de trabalho. Escritor escreve quando quer, quando dá. O que pode acontecer é que lá pelas tantas, a pessoa tenha tanta demanda que aí não pode fazer outra coisa. Que é o meu caso. Eu, atualmente, tenho tantos convites para viagens, palestras, solicitações para escrever coisas, que agora não poderia mais exercer a medicina. Mas isso, para mim, foi uma certa lástima deixar a medicina. Sempre gostei e enquanto pude conciliei as duas coisas. Agora não posso mais, simultaneamente veio à aposentadoria. Então, no meu caso, a coisa se resolveu ao natural. Mas acho que essa discussão, do ponto de vista literário, ela tem muito pouca importância. O que interessa no escritor é o resultado do trabalho dele. Alguma ideia sobre o seu próximo livro? Eu não tenho, digamos assim, um programa: primeiro escrever isso, depois vou escrever aquilo. Eu vou escrevendo as coisas que vão me ocorrendo, e nunca deixam de ocorrer. É uma coisa que, realmente, me dá satisfação, porque eu continuo escrevendo e com vontade de escrever, o que mostra que a noção de aposentadoria não existe no ofício literário. Agora, os meus projetos são em várias áreas: ficção, planos para um livro de contos, um romance, ensaio sobre medicina. Sem falar das solicitações: coletâneas de textos sobre saúde. Como vês a literatura gaúcha atual? Durante muito tempo a literatura brasileira foi regionalista, tratava das vozes locais. O Brasil era um país rural. Não é mais. 80 por cento da população, hoje, vive em área urbana. Tivemos, no Rio Grande do Sul, três períodos: primeiro, o dos escritores nativistas, do qual Simões Lopes Neto é o exemplo maior. Um cara que usa o linguajar gaúcho e que, portanto, faz uma literatura para o Rio Grande do Sul porque ninguém entende, fora daqui, este linguajar. Sei por que escrevi um prefácio – numa coletânea do Simões Lopes Neto, publicada pela Ática –, que, quando vi o livro, fiquei espantado com o tamanho do glossário. Depois temos o Erico, que é um cara que capta a história do Rio Grande do Sul, sua tradição. Mas ele faz isso com um olhar urbano, e com um olhar brasileiro, porque ele pensava nos leitores. E aí, temos uma terceira fase, que é desses escritores como o Tabajara Ruas, o Faraco, o Assis Brasil, que têm um olhar crítico sobre o Rio Grande do Sul. Na verdade, eles estão mais vinculados ao Ciro Martins, do gaúcho a pé, do que ao Erico. Não é o épico gauchesco, mostra a outra face do Rio Grande do Sul. O Erico é um divisor de águas porque ele mesmo era descendente de proprietários de terra, criado naquela região. Mas ele era de uma família pobre. Então, era um homem de, digamos, esquerda moderada. Ele tinha uma dupla visão, ou seja, uma visão privilegiada. Hoje, nós temos, de um lado, esse fator da urbanização do Brasil, as cidades ficando cada vez mais parecidas, a linguagem cada vez mais homogeneizada porque todo mundo fala a linguagem da Globo, das redes de TV, as temáticas regionais praticamente desapareceram. Mas, temos novas vozes, e a presença do feminino é um exemplo disso. Também as temáticas, hoje, são diferentes. E outra coisa que colaborou muito pra isso foi à derrocada da esquerda. A geração de 30, da qual o Erico fazia parte, era uma geração militante: Dionélio, Cyro, Graciliano Ramos. Todos eram membros do Partido Comunista. Hoje, a presença de uma literatura engajada é uma coisa que tu não vê mais neste país. O que existe é o tema da violência urbana, caso do Rubens Fonseca; temas intimistas; a coisa das minorias sexuais; e uma outra temática, que é a do imigrante, que eu particularmente abordo. Mas não sou o único, há vários, no Rio Grande do Sul, e no Brasil, que fazem o mesmo. A cultura judaica continua a ter um papel importante na sua obra? É uma identidade forte, expressiva. Não é um fundamentalismo. É um sentido de pertencimento que corresponde a várias coisas. Em primeiro lugar, a experiência da imigração é muito marcante. E ela se faz presente nos filhos dos imigrantes, nos netos, com essa consciência que eles são diferentes: em casa eles comem um tipo de comida, ouvem um tipo de idioma, seguem um tipo de tradição, e na rua, no clube, na escola, são outras coisas. Tem coisas (ninguém mais fala ídiche) que estão sendo superadas pelo processo de assimilação, incorporando a cultura brasileira, e deixando de lado a outra. A questão da tradição judaica é uma coisa muito forte, milenar, e culturalmente muito rica, nas artes, na filosofia. Não há uma área do conhecimento onde não tenha um nome judaico. No caso dos escritores ela é mais forte ainda porque é uma tradição que gira muito em torno da palavra escrita, desde a antiguidade. Os judeus são os inventores do livro sagrado. Nos Estados Unidos, por causa de escritores como Saul Below, Piliph Roth, Norman Mailer, criou-se a expressão: “a literatura judaica é um novo regionalismo, que não tem a ver com geografia”. Tem a ver com identidade cultural. Houve uma época em que a literatura judaica nos Estados Unidos estava no auge, porque esses escritores pontificavam. Mas, o tempo vai ando e as coisas vão mudando. A literatura tem modelos que surgem e desaparecem. O realismo mágico, por exemplo, ninguém fala mais, e foi uma coisa importante. Hoje está morto, é uma lembrança. O realismo mágico, além de ser um estilo literário, era um instrumento político. Ele surgiu numa época em que toda a América Latina era, praticamente, formada por ditaduras. Então, era uma forma de literatura que consistia em dizer as coisas de uma maneira enigmática, desafiando os censores, a polícia, etc. Isso tinha uma enorme repercussão. Foi numa época em que muitas pessoas simpatizavam com a luta contra as ditaduras na América Latina. Daí se explica o sucesso de escritores como o Garcia Marques, que ganhou o prêmio Nobel, de Vargas Llosa, Cortazar. Agora, voltando ao universo judaico, quero salientar que ele compreende, no mundo, uma população de 14 milhões de pessoas. Ou seja, uma população um pouco maior do que a do Rio Grande do Sul. Já foi mais forte, enquanto elite cultural. Houve muitos momentos, desde o final do século XIX, em que os intelectuais judeus lideravam. Enfim, o processo de assimilação é muito grande, porque o holocausto mostrou o que a intolerância pode conduzir. Então, hoje as pessoas não se atrevem mais a demonstrar esse anti-semitismo. Isso facilitou enormemente a assimilação do judeu. Fostes criado no Bom Fim, como vês a Porto Alegre de hoje? Porto Alegre é uma cidade que cresceu e se descaracterizou. Ela era, na minha infância, uma cidade de porte médio. Claro que não é uma cidade com características do Rio ou Salvador, nem com a história de Ouro Preto, mas tinha uma certa identidade. As pessoas se conheciam, a cidade era provinciana. Ela tinha um clima próprio, seu folclore próprio, suas histórias, seus personagens. Agora a cidade se descaracterizou. Se perguntarem como é que a gente caracteriza um porto-alegrense, acho que seria muito difícil. E considero que vai ficar cada vez mais difícil caracterizar um carioca, um paulista, um recifense, porque, realmente, esse processo de homogeneização é muito intenso. Isso não é, necessariamente, uma coisa ruim, é uma coisa que acontece e estamos conversados. (*Entrevista concedida a Francisco Ribeiro, em julho de 2007, em Porto Alegre). 5l5r2b