O escritor-cineasta Tabajara Ruas começa dia 1º de novembro no Taim as filmagens de O General e o Negrinho, ficção que junta pela primeira vez no cinema o mito do general farroupilha Antonio de Souza Netto e a lenda do Negrinho do Pastoreio, uma das mais antigas crendices populares do Rio Grande do Sul. Se o tempo ajudar, tudo será feito em 40 dias. A equipe vai se hospedar na Praia do Cassino, a 45 minutos do Taim. 473t6z
O cenário principal é uma cancha reta de corridas de cavalo, paixão do general, que se criou em Povo Novo, perto do Taim. Na mesma propriedade rural pertencente à família Mota da Silveira, a produção do filme construiu também uma fortaleza militar onde serão rodadas as cenas de batalha. As cenas interiores serão rodadas por último no pátio interno do Hospital São Pedro, em Porto Alegre.
Autor do argumento, Ruas conta uma estória que se a em 1835, antes da eclosão da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Netto chega à tal fortaleza procurando seu amigo índio Torres e descobre que por algum motivo misterioso ele está preso. Dizem que matou um cara, mas na verdade tem rabo de saia na estória. Netto entra então em contato com um grupo de negros da região e começa uma trama para libertar o amigo. Enquanto espera o momento certo para agir, amarra umas corridas de cavalo, sua diversão predileta. E aparece o negrinho ginete.
Orçado em R$ 2,87 milhões (o mesmo valor gasto na produção de Netto Perde Sua Alma, lançado em 2001), O General e o Negrinho conseguiu captar até agora a metade desse valor, ou seja, tem o suficiente para pagar as filmagens. Tabajara Ruas espera que o restante seja captado a tempo de financiar as etapas posteriores, que englobam trabalhos de estúdio, da revelação à montagem final, inclusive a tiragem de cópias, a divulgação e a distribuição no final do primeiro semestre de 2006.
O filme mobiliza 36 atores. Netto será representado pelo veterano Werner Schunemann, que fez o mesmo general no primeiro filme de Ruas e virou galã da Globo depois de representar o general Bento Gonçalves no seriado A Casa das Sete Mulheres. Para o papel do Negrinho, foi escolhido o estreante Evandro Elias, ator de 19 anos descoberto em Porto Alegre. Está no elenco ainda Tarcísio Filho, que fez Netto n’A Casa das Sete Mulheres; agora ele será o Indio Torres.
Desde que o General e o Negrinho cruze o disco final no tempo certo, o projeto seguinte de Ruas é filmar Netto nos Braços da Moura, ficção que contempla o lado romântico da figura do general; por ser bonitão, galante e solteiro, durante a Guerra dos Farrapos Netto foi festejado como “o mimoso dos pampas”, fama difundida em versos do cancioneiro da revolução farroupilha.
“A Mitologia é mais firme do que a História”
Nascido nos anos 40 em Uruguaiana, o arquiteto Tabajara Ruas conquistou espaço como um dos mais importantes ficcionistas do Rio Grande do Sul. Destacou-se a partir dos anos 1980 por romancear episódios da Guerra dos Farrapos. Além da novela Netto Perde Sua Alma, escreveu o romance Os Varões Assinalados. Nos dois, explora agudamente a luta de escravos que se engajaram na vã esperança de ganhar a liberdade no final. Agora, volta ao tema ao resgatar a figura do Negrinho do Pastoreio.
JÁ – A lenda do Negrinho do Pastoreio está presente na literatura, no teatro e na música, mas já tinha sido explorada antes no cinema?
Ruas – Sei que o folclorista Nico Fagundes fez um filme sobre o Negrinho do Pastoreio — com Grande Othelo no papel principal. É um filme relativamente antigo, creio que dos anos 70, mas não o vi. Mais recentemente foi feito um curta-metragem por um cineasta de Porto Alegre.
JÁ – Mas teu filme é fiel à lenda ou…
Ruas – No filme, como na lenda, o Negrinho perde uma corrida muito importante, mas ele não é escravo do General…
JÁ – Pela leitura dos teus dois livros, Netto Perde Sua Alma e Os Varões Assinalados, fica claro que foi preciso fazer uma profunda pesquisa histórica para dar base verídica à ficção. Foste um dos primeiros a explorar ficcionalmente a contradição que envolve os Lanceiros Negros.
Ruas – A controvérsia é grande e continua até hoje. Ainda há quem duvide da própria existência dos lanceiros negros. Uma coisa é certa: nenhum povo se libertou da escravidão sem lutar. Não vejo porque os negros aqui no Rio Grande do Sul deixariam de fazer isso. Na Bahia e em outros lugares do Brasil os negros fizeram revoluções sangrentas. Sem esquecer Zumbi, que criou um império dentro do Império do Brasil.
JÁ – Por que então se discute tanto sobre os Lanceiros Negros?
Ruas – Pra mim toda essa discussão é uma bobagem. Eu não estava lá pra afirmar, mas tem muita documentação mostrando que eles foram traídos. Tanto que continuaram escravos.
JÁ – Qual a fonte fundamental para chegar a essa conclusão?
Ruas – A minha fonte principal é Alfredo Varela, autor da História da Grande Revolução. São seis volumes, cada um com 800 páginas ou mais. É um amontoado de documentos. Ali está registrada a formação do corpo de lanceiros, a lista dos oficiais que chefiaram esses guerreiros. É claro que, com o ar do tempo, o aproveitamento dos lanceiros pelo exército farroupilha foi romantizado, mas o Corpo de Lanceiros de fato existiu. Aliás, no seu último livro, o historiador Moacyr Flores fala que também os imperiais tinham um corpo de lanceiros negros.
JÁ – Em Pelotas, em 1835, mais da metade da população era negra; a maioria, escravos.
Ruas – Não havia como não participar da guerra. À força ou por opção, eles entraram na luta.
JÁ – Mas tinhas um interesse específico pelos lanceiros?
Ruas – Não, meu interesse era pela revolução, mas ao estudar vi que tinha esse corpo de lanceiros negros. Na leitura desses livros cresceu meu interesse pelo General Netto. Nunca tinha caído a ficha para ninguém: foi Netto quem proclamou a república. Isso não é pouca coisa, né, tchê! Procura na História do Brasil quem proclamou uma república: é uma coisa rara.
JÁ – Que eu me lembre, só o Deodoro em 1889.
Ruas – Pois então, achei interessante a figura do Netto. Já quanto ao nosso herói oficial, Bento Gonçalves, à medida que lê, a gente se dá conta das contradições dele. Estava metido naquela empreitada, mas não era republicano. Eu não tomo partido sobre isso, mas a própria figura do Garibaldi é polêmica: até hoje existem dezenas e dezenas de associações garibaldinas que se digladiam, discutindo se Garibaldi era desse ou daquele jeito. Por isso eu prefiro a mitologia à história.
JÁ – Por que?
Ruas – A Mitologia é a síntese da verdade histórica. A História são vários caras afirmando que foi assim ou assado: o que sobra é mito. Na realidade, o mito acaba sendo um resumo do que os caras disseram. Acho até um pouco ridículo os caras debatendo se foi assim ou assado quando nossa própria história contemporânea é tão nebulosa e pontilhada de verdades que daqui a dez anos não serão mais. Como a virgindade do PT, né?
JÁ – Pela leitura do Os Varões Assinalados e Netto Perde Sua Alma, fica claro que a luta dos soldados negros era para se livrar da escravidão. Nos livros de história, isso freqüentemente é colocado de forma ambígua, como se eles lutassem pela liberdade como direito político no sentido contemporâneo.
Ruas – A história dos historiadores não é confiável. Basta ver as polêmicas, um querendo ser mais inteligente e autoritário do que o outro. A mitologia pega a essência das coisas. Mostra talvez o que os caras não conseguiram ser. Veja a mitologia do PT: a honestidade; não era um partido de corruptos… Os farrapos não podiam ser tudo aquilo — republicanos, abolicionistas etc. – porque eram uma frente, mas o que sobrou foram algumas atitudes, como a proclamação da república, e algumas idéias que acabaram não vingando.
JÁ – Como a idéia da abolição da escravatura?
Ruas – A abolição nunca foi discutida pelos farroupilhas, mas a liberdade dos escravos estava implícita na idéia da república. Tudo isso é muito confuso: os farroupilhas eram liberais e como tais defendiam a propriedade, mas encaravam os escravos como intocáveis porque eles faziam parte do patrimônio privado; cada fazendeiro tinha um grupo de escravos.
JÁ – E como te sentes explorando os lanceiros negros na ficção?
Ruas – Isso é uma coincidência, não é proposital. Meu projeto é uma trilogia sobre o Netto. O primeiro mostrou o Netto guerreiro, o segundo mostra o Netto carreirista de cavalos e o terceiro vai mostrar o Netto romântico.
JÁ – O que há de concreto sobre a lenda do Negrinho do Pastoreio?
Ruas – É uma lenda um pouco estranha. Um garoto de 14 ou 15 anos é morto a chicotadas por perder uma corrida que envolve muito dinheiro; depois vem Nossa Senhora, limpa as feridas do guri, bota ele num cavalo e…basta acender uma velinha que se consegue uma graça!
JÁ – Foi beatificado.
Ruas – Virou santo e…piá de recado!