A suspeita de que o ex-presidente João Goulart foi assassinado estava presente já no seu enterro, no dia 6 em dezembro de 1976, em São Borja. Fazia muito sentido: em maio daquele ano, dois líderes da oposição uruguaia, o senador Zelmar Michelini e o deputado Gutierrez Ruiz, haviam sido seqüestrados e mortos em Buenos Aires. Em setembro, Orlando Letelier, ex-ministro do Chile, morreu num atentado em Washington. No Brasil havia ainda a morte do ex-presidente Jucelino Kubtscheck, em agosto, num acidente na via Dutra, fato até hoje cercado de suspeitas. O risco de Jango era evidente. Ex-presidente no exílio, “herdeiro político de Vargas”, tornara-se um incômodo no momento em que o regime militar enfrentava resistência cada vez maior no meio civil. Sua vida era vigiada, sua correspondência violada. Nos últimos meses, o cerco parecia se fechar: prenderam sua mulher, um amigo mandou avisar que não dormisse duas noites no mesmo lugar. Teve que mandar os dois filhos para Londres, por segurança. Depois, as circunstâncias de sua morte, num lugar isolado, só com a mulher e um caseiro, com atestado de óbito de um médico que mal olhou o cadáver e declarou que ele morreu de “enfermedad” (doença). Por fim, a maneira como o governo militar reagiu ao pedido da família para que o corpo fosse enterrado em São Borja, a terra do presidente morto. Primeiro não queriam permitir, depois não podia levar por rodovia, só avião. Por fim, foi liberado, mas não podia ser um cortejo, tinha que ser um carro, em alta velocidade, sem parar na fronteira, direto para o cemitério. Não foi permitido à família ver o corpo… Tudo isso alimentou a suspeita que, desde aquele dia, nunca abandonou as conversas dos antigos correligionários de Jango. A saúde dele era precária, era cardíaco, tinha sido advertido pelo médico do grave risco que corria se não parasse de beber e fumar (ele não parava), um enfarto fulminante não seria surpresa. Envenenamento Mas nem isso diminuiu as dúvidas. Nem mesmo o testemunho de Maria Tereza, sua mulher, que o viu morrer no leito conjugal e sempre rejeitou a hipótese do envenenamento. aram-se 15 anos até que a suspeita fosse além das conjeturas. Preso como assaltante, no ano 2000, um ex-policial uruguaio, Mario Neira Barreiro, revelou aos jornais uma suposta Operação Escorpião, da qual participou, para matar Goulart. Ele forneceu fatos concretos, plausíveis. Tinha, de fato, trabalhado como rádio-escuta para os órgãos da repressão política durante a ditadura uruguaia, eram corretas as informações que tinha sobre a rotina e a família de Jango no Uruguai e Argentina. Mas não ia além de uma boa história a ser confirmada. No ano seguinte a Câmara dos Deputados instalou uma I para investigar a morte do ex-presidente João Goulart. Cerca de 60 depoimentos foram tomados, mas a I encerrou com um relatório contraditório: não há dúvidas que um “Mercosul do terror” operou na região, mas no caso especifico de Jango, faltavam provas. Um “romance reportagem” dos jornalistas Carlos Heitor Cony e Anna Lee (O Beijo da Morte, Ed. Objetiva, 2003) retomou o tema do assassinato, associando-o com as mortes do ex-presidente Jucelino Kubitscheck e de Carlos Lacerda, ambas acidentais em circunstâncias pouco convincentes. Barreiro foi uma das fontes de Anna Lee e Cony. Ouvido na Penitenciária de Charqueadas, RS, ele contou novamente a historia da Operação Escorpião, para eliminar Jango. Conclusão de Cony: “É um sujeito perigoso, com uma tendência ao delírio. Mas seu delírio tem uma espinha dorsal que supera detalhes assombrosos de seu relato. Prometeu mostrar provas que estavam com outro preso. Não tivemos as provas, mas fortes indícios de uma operação destinada a eliminar o ex-presidente”. No final de 2006, uma equipe da TV Senado que prepara um documentário sobre Jango, obtém permissão para ouvir Barreiro na prisão de Charqueadas. Ele exige alguém da família. O filho de Goulart, João Vicente, participa da gravação de duas horas e sai decidido a reabrir as investigações sobre a morte do pai. Barreiro conta a mesma história: Diz que a ordem para matar Jango foi dada diretamente pelo presidente Ernesto Geisel ao delegado Sérgio Fleury, do Dops paulista. Quer pela hierarquia, quer pelas relações entre os personagens, quer pelo temperamento de Geisel, é uma afirmação discutível. Mas as recentes revelações sobre a Operação Condor, o esquema terrorista multinacional que operou na América Latina, deram mais sentido às declarações de Barreiro. No final do ano ado, o filho de Jango entrou no Ministério Público Federal com o pedido de investigação sobre o caso, anexando cópia da entrevista. No início de 2008, a repórter Simone Iglesias entrevista Barreiro em Charqueadas e a Folha de São Paulo mancheteia na capa: “Brasil Mandou Matar Jango”. Da Folha o assunto foi ao Jornal Nacional e nos dez dias seguintes, Barreiro deu mais de 30 entrevistas para jornais, rádios e tevês de todo o país. É provável que tenha havido um plano para eliminar Jango. O infarto pode ter chegado antes. Entre os amigos mais chegados, o que o matou, mesmo, foi o “desgosto”. Ele queria voltar ao Brasil, tentara renegociar seu retorno inúmeras vezes. Cumprira dez anos de cassação, ara por dezenas de inquéritos, mantinha-se distante da política brasileira, queria cuidar de suas fazendas. Homem amargurado Mas o regime militar havia lhe negado até o aporte, viajava com aporte paraguaio. Manoel Leães, que por 30 anos foi piloto de Jango, em seu livro de memórias diz que o expresidente era “um homem amargurado com o fato de não poder voltar ao Brasil”. Um amigo de infância contou que ele vinha para a beira do rio Uruguai, do lado argentino, e ficava olhando os campos de São Borja na outra margem. Dois meses antes de morrer declarou que estava disposto a arriscar a travessia. O ministro do Exército deu ordem para que fosse preso imediatamente e posto incomunicável pela Polícia Federal. Quando a notícia de sua morte chegou ao Brasil, as redações receberam a seguinte nota: “De ordem superior, fica proibida a divulgação, através do rádio e da televisão, de comentários sobre a vida e a atuação política do sr. João Goulart. A simples notícia do falecimento é permitida, desde que não seja repetida sucessivamente”. Foi negado luto oficial e, no Congresso, a bandeira, hasteada a meio pau, foi depois arriada. Dias depois de sua morte, aos 57 anos, a diretoria do Internacional decidiu que o ex-atleta ilustre (ele jogara nos juvenis do clube) merecia um minuto de silêncio no jogo com o Atlético mineiro, no domingo seguinte no Beira Rio. O assunto chegou à cúpula militar e o minuto de silêncio foi proibido. “Não sou inimigo de vocês” O que Mario Neira Barreiro revela é o embrião da Operação Condor, grande ação conjunta dos aparelhos repressivos do Cone Sul para eliminar inimigos dos regimes militares da região. Ele conta que entrou aos 18 anos para o Grupo de Ações Militares Anti-Subversivas (Gamma). Foi escolhido para espionar Jango porque sabia português. “Eu monitorei tudo o que falava através do telefone, de escuta ambiental e em lugares públicos, de meados de 1973 até sua morte em 6 de dezembro de 1976”. Uma vez Barreiro falou com Jango. Ele e um colega, estavam rondando a casa. Jango convidou para entrar, disse que sabia que estavam espionando. “Não sou inimigo de vocês”, teria dito. Segundo Barreiro, o delegado Sérgio Fleury, do Dops em São Paulo, fazia a ligação com a inteligência uruguaia. Partiu dele a ordem para que Jango fosse morto. A equipe que monitorava Jango se chamava Centauro (em Montevidéu outra equipe, Antares, se encarregava de Brizola). A operação para matar Jango chamou-se Escorpião, segundo Barreiro, e foi acompanhada e apoiada pela CIA. O plano consistia em colocar comprimidos envenenados nos frascos de medicamentos que Jango tomava para o coração. O efeito seria semelhante a um ataque cardíaco. “Ele tomava Isordil, Adelfam e Nifodin. O primeiro ingrediente veio da CIA e foi testado com cachorros e doentes terminais. Colocamos os comprimidos em vários lugares: no escritório, na fazenda, no porta-luvas do carro, no Hotel Liberty, em Buenos Aires”. Fleury deu a palavra final, disse que Jango era um conspirador. Ouviu uma conversa de Fleury com militares uruguaios dizendo que conversara com Geisel. “Faça e não me diga mais nada sobre Goulart”, teria dito o general. Barreiro foi expulso do serviço de inteligência uruguaio em 1980, por razões que não revela. Morou em cidades da fronteira, depois fixou-se em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre. Em 1999 foi preso pela primeira vez no Brasil. Em sua casa a polícia encontrou granadas, pistolas e fuzis. Foi recolhido à penitenciária de segurança máxima de Charqueadas, em 2000. Em maio de 2003, em regime de semi-aberto, fugiu mas foi recapturado em seguida. Aos 54 anos, cumpre pena de 17 anos por tráfico de armas, falsidade ideológica, roubo e formação de quadrilha. “Eu vi quando ele faleceu” Maria Tereza Goulart, a menina do interior que casou com o moço bonito e milionário, viveu ao lado de Jango trinta anos. Estava sozinha com ele na noite de sua morte e, desde o início, rejeitou a hipótese de assassinato. Hoje ela evita o assunto, certamente para não contradizer filhos e netos que sustentam a tese do atentado. Uma das últimas vezes em que falou sobre o assunto foi neste depoimento ao programa Teledomingo, da RBS TV, em 2003. ”Nós chegamos em Libres, almoçamos, e fomos embora para a fazenda. No caminho, vi que ele estava meio cansado… com olheiras, cansado… Eu falei: “Jango, você não quer que eu dirija um pouco?” Ele disse: “Não, estou bem ainda, se eu precisar, te digo”. “A fazenda era muito bonita, mas era um buraco. Não tinha ninguém por perto. Eu estava sozinha… “ “Era um casarão enorme, um horror… Só nós dois, tinha uma casa de caseiro lá do lado… Aí, começou a bater uma janela. O Jango disse: “Vou dormir, porque estou cansado”. Eu disse: “Vou apagar a luz, então… Ele falou: “Não, pode ficar lendo”. Fiquei lendo uma revista, e a janela batendo, batendo… E eu louca de medo de ir fechar esta janela, porque a casa era assim um negócio que ia daqui até aquela outra esquina, de tão grande. Pensei: ah não vou me levantar, não; sair por essa casa, com essa janela batendo… A essa hora da noite…” “Aí, eu apaguei a luz e fiquei algum tempo acordada. De repente, vi que o Jango estava respirando diferente. Acendi a luz de novo e comecei a chamar: Jango, Jango. Mas quando chamei, eu vi que tinha virado o corpo assim (sabe, quando segura com uma força incrível o travesseiro… ). E ele nunca dormia assim de lado… Aí, fui para o outro lado da cama dele e comecei a chamar, chamar. Aí, ele soltou o corpo, assim… Eu vi quando ele faleceu.” “ Aí abri a porta e sai correndo e comecei a gritar pelo caseiro: Júlio, Júlio. E o cara veio armado, porque ele pensou que alguém tinha invadido a casa. Foi uma cena horrível. Vocês já imaginaram, perder uma pessoa, dentro de uma casa que não tem a ver contigo, sem ninguém por perto, e o caseiro… Que nem sabia falar direito….” “O médico veio, um médico de algum lugar dali, que não sei bem. Nem vi a cara dele direito. Ele me falou: “Dona Maria Teresa, ele teve um enfarte total: aquele que parte o coração”. Em seguida, ficou uma mancha assim…” “ Aí, começaram as pessoas: porque o Jango morreu assim, porque Jango morreu assado. Porque foi enterrado assim; porque estava de pijama… Quem disse que Jango estava de pijama? Ele estava vestido com uma camisa branca, uma calça jeans, que era o que tinha ali, na hora. Arrumamos ele, fizemos o velório ali na casa. Não, mas as pessoas ficam inventando umas coisas que não têm explicação. Aí veio o tal do envenenamento…” “Disseram que eu impedi a autópsia.… Eu nem sabia que se fazia autópsia, nunca tinha visto ninguém morrer na minha vida…” “Eles disseram que o Jango não podia sair… Se quisesse trazer o Jango para São Borja, tinha de sair de barco pelo Rio Uruguai, mas era um calor de não sei quantos graus. O corpo teria que ser embalsamado. Mas em um buraco daqueles quem é que saberia fazer isto? Então, fomos de carro para São Borja, ando por Libres”. “Eles mandaram descer o corpo; depois disseram que não podia descer; que não podia isso, que não podia aquilo… Mas o Almino Afonso já estava lá e ligou para o Presidente, ou para sei lá quem, e disse: “Não podemos fazer uma coisa dessas. Estou aqui com a família, Dona Maria Teresa está sozinha, os filhos estão na Inglaterra, o corpo está mal-embalsamado e tem de seguir para São Borja para ser enterrado”. Então, eles liberaram. Mas, até liberar, foi uma cena”. ”Meus filhos estavam em Londres. Quando chegaram não puderam ver o Jango porque o caixão já estava fechado por causa do calor, não chegaram a ver o Jango”. Texto publicado originalmente na Revista JÁ de abril de 2008 [related limit=”5″] j3c3o