Trata-se de um texto forte, abarcando 22 anos de história contemporânea, enfocando temas como totalitarismo, dissidência, contracultura. Não está muito longe à idade de ouro da contestação contra o sistema capitalista e, também, das manifestações de sua antítese, o dissidente comunista. Assim, 1968 é o ano ideal para situar esse dilema, pois nele temos: o maio francês, os protestos contra a guerra do Vietnã, a Primavera de Praga, flower-power, e Jimi Hendrix em sua glória. Ao escrever, em 2006, a peça “Rock ‘n’ Roll” (que no Brasil teve agregados os termos marxismo e ideologia), Tom Stoppard, dramaturgo e roteirista oscarizado por “Shakespeare apaixonado”, idealizou, misturando história e ficção, um original caminho de volta para casa. Mas não se trata, embora contenha elementos ligados à vida pessoal do autor, de uma autobiografia. Judeu tcheco, Stoppard tinha apenas dois anos de idade quando seus pais, em 1939, deixaram à pequena Zlin, na antiga Tchecoslováquia, fugindo dos nazistas. Depois de algum tempo em Singapura – onde o pai morreu combatendo os japoneses, e do novo casamento de sua mãe com um oficial inglês – o jovem Straussler tornou-se Stoppard, como o padrasto, e mudou-se para a Inglaterra em 1946. Sessenta anos depois, já famoso (principalmente pela peça “Rosencrantz e Guildenstern estão mortos”), e com sotaque e postura que o fazem parecer um lorde inglês, Stoppard resolveu recuperar parte de sua própria história. A peça, situada entre Cambridge, Inglaterra, e Praga, Tchecoslováquia, engloba o período 1968-1990. Jan, Max, Eleonor e Esme são os personagens principais da trama. Max, comunista de longa data, é um conceituado professor de filosofia. Sua mulher, Eleonor, é uma professora de grego clássico. Por fim, Esme, a filha do casal, uma adolescente de 16 anos, flower-child, espécie de hippie juvenil, que vive a sua viagem psicodélica. A história começa em Cambridge, quando Jan, tcheco, aluno favorito de Max, comunica ao seu velho mestre que está de partida para Praga. Lá, a chegada de Alexander Dubcek ao poder, em janeiro de 1968, anuncia a sonhada combinação entre socialismo e democracia. Este movimento se tornou conhecido como a Primavera de Praga, uma declaração de ruptura contra a burocracia stalinista que se fazia ar por comunismo. Então, se o clima é de abertura, de aproximação com o ocidente, que melhor forma de concretizar, culturalmente, isto, do que na música. As revoltas são jovens e o que pode representar melhor a juventude do que o rock’n’ roll? Assim Jan, armado com a sua centena de vinis, acha que pode arrombar a cortina de ferro. Na bagagem, ao invés de livros, discos dos Rolling Stones, Velvet Underground e, claro, Pink Floyd, cujo fundador, Syd Barret, tal qual o deus Pan (a guitarra substituindo a flauta), povoa o imaginário maconheiro e lisérgico de Esme que acredita vê-lo tocar no seu jardim. O sonho de Jan vira pesadelo quando em agosto de 1968 as tropas soviéticas do Pacto de Varsóvia invadem a Tchecoslováquia. Impedido de voltar para a Inglaterra, torna-se um dissidente, é preso e tem seus vinis destruídos pela repressão. Mas ele é forte. E ao algoz Milan – o policial encarregado de perseguir a ele e ao seu amigo Fernando, outro dissidente – poderia contrapor os versos de Sapho, a poetisa grega tão cara a Eleonor, escritos há dois mil e quinhentos anos: “não me domes com angústias e náuseas”. Afinal, se o rock, segundo a ótica totalitária, é alienação e decadência, também pode significar resistência. Foi o caso da Plastic People of Universe, banda de rock checa que tocava clandestinamente e teve seus músicos presos. Essa é a história de Jan. Mas a dos outros personagens também poderia servir de fio condutor da trama como comprovam os desenlaces finais. Não há um narrador específico e os pontos de vista, apesar de ângulos ideológicos diferentes, são coerentes e revelam, sobretudo, maturidade. Eleonor, a mulher de Max, trata um câncer no seio. Mutilada pós-operação, recusa o apelido de amazona, e tal como a poetisa Sapho, cuja verve ensina para a insinuante Magda, mistura feminismo e sentimentos aguçados, pois, como lembra ao marido: o seu corpo – sem um seio, ovário, ou outra coisa que as diversas cirurgias possam ter extirpado do seu organismo – não é nada sem a sua alma, persona. Ou seja, aquilo que ela acha que é. Não estaria aí – nesse discurso angustiado, desesperado, o mais pungente da peça, onde a visão da essência precedendo a existência parece ser a última ilusão de alguém condenado – uma metáfora a ideologia marxista, ou, mais especificamente, aos avatares, como o stalinismo e seu caráter totalitário, que ela gerou? São estas contradições entre ideais e práxis que terminam por abalar as convicções de Max e o fazem comprometer-se, seja pela libertação de Jan, seja assinando documentos de apoio à causa dos dissidentes tchecos. Esme – ao contrário de Jan, Max e Eleonor – é uma folha em branco que, alienadamente, quer apenas entrar na corrente daquilo que considera o seu tempo, feito de rock, sexo e drogas. Sobreviverá, terá uma filha e, ao final, seguirá com Jan, amor de juventude, para Praga, cidade cuja redenção, 22 anos depois, parece se concretizar através do show dos Stones, afinal: “it’s only rock’n’ roll (but I like)”. Esta última cena, puro happy end, faz com que o texto de Stoppard represente uma luz no fim do túnel se comparado aos sombrios “Zero e infinito”, romance, de Arthur Koestler, e “As mãos sujas”, peça, de Jean Paul Sartre. Em ambas as obras de Koestler e Sartre, escritas nos anos 1940, transcende um mal-estar entre ideologia marxismo e lógica stalinista, sendo os heróis destruídos em nome desta última. Apesar do parentesco, em parte, temático, este não é o caso de “Rock ‘n’ Roll” onde, exceto Eleonor, que não sobrevive ao câncer, os demais personagens têm a chance de amadurecer, rever suas posições ou defendê-las e tentar ser feliz, pois nem tudo precisa ser eternamente cinza e depressivo na chuvosa Inglaterra. Afinal, sartreanamente, cada indivíduo tem o direito de escolher seu caminho e engajar-se nele. É esta a liberdade existencialista que panfleteia Stoppard. Ao preservar todos estes aspectos, Luciano Alabarse e Margarida Peixoto fizeram uma adaptação interessante e segura. O cenário é despojado, amplo, perfeito para a evolução da trupe de atores. Eles vestem bem os seus personagens, destacando o veterano Carlos Cunha Filho, pela economia, perfeito como o velho Max, comunista de carteirinha. A música, outro ponto alto da peça, serve de fundo para as emoções transmitidas pelos personagens. Nisso, destaque para a participação do multi-instrumentista Arthur Faria – tocando violão, piano e acordeão – encarnando uma espécie de Syd Barrett gaudério. E à inclusão de composições de Caetano Veloso – do seu exílio londrino – enriquece a adaptação brasileira dando um toque tropical sobre o final dos anos 1960. Vale a pena conferir. (Francisco Ribeiro) Marxismo, Ideologia e Rock’n’roll Teatro Renascença (Av. Erico Verissimo, 307) Quinta, sexta e sábado às 21h Domingo às 18h 1b462w