Marilia Verissimo Veronese No ano 2000 ouvi uma palestra do brilhante José Paulo Bisol, secretário de segurança pública do RS, à época. Ele começou sua fala com a história das sucessivas iluminações de um monge bodhisattva (pessoa iluminada, no budismo). Na primeira, livrou-se da sensualidade; na segunda, das raivas e outras paixões terrenas, até que conseguiu livrar-se do egoísmo. Disse Bisol que, ao elevar-se, na última iluminação, ele já estava pronto para ir ao Nirvana. Mas aí ele pensou: se eu for sozinho, todos os outros ficam sofrendo aqui nesse inferno terrestre. Assim, ele decidiu ficar e trabalhar pelo bem comum, até que todos os seus irmãos e irmãs pudessem ir com ele[i]. Por que me lembrei disso agora? Porque venho pensando no caminho do meio, princípio orientador da prática budista, em relação aos conflitos que vejo explodindo ao meu redor. A expressão tem vários sentidos e acepções, claro; como não sou budista nem conheço bem as tradições, uso aqui o sentido mais ‘senso comum’: o da moderação, do meio termo entre visões extremadas. E faço isso exatamente quando penso na atual situação do campo plural e fragmentado que podemos chamar de “esquerda” no Brasil. A expressão “de esquerda” tem causado arrepios em alguns que sempre se consideraram como tal, que andam declarando solenemente ser agora “de centro-esquerda”, pois a esquerda estaria muito chata e sem-noção. A crise – eterna, eu sei – parece agora estar em fase aguda. Fragmentada e brigona, a esquerda que alguns têm chamado pejorativamente de “ex-querda” – talvez em referência a algo que tenha se quebrado, separado ou mesmo terminado – nunca esteve, pelo menos nesse meu tempo de vida como militante do dito campo, desde os 16 anos na campanha das diretas já, tão dividida e tão fratricida. A briga da semana é a da tal Operação Carne Fraca. Trocam cruéis indiretas ou mesmo vociferam uns contra os outros abertamente, manifestando posições antagônicas entre dois extremos. Para algumas gentes, trata-se de uma deliberada destruição da indústria nacional – a exemplo do que já se fez no campo petrolífero/naval -, capitaneada pelo entreguismo do governo golpista e seus cúmplices, os quais se apressam a retirar direitos do trabalhador brasileiro e entregar todo o patrimônio nacional aos seus chefes, os donos do capital transnacional especulativo. Para outras, é uma operação necessária que põe em cheque um setor atrasado, cruel, explorador e anacrônico; criticam duramente o erro da opção por colocar dinheiro público em produto primário de baixo valor agregado, dar rios de dinheiro público à “burguesia nacional”, que numa quimera ingênua seria alinhada aos interesses da nação. Como disse um veterinário experiente em recente matéria, “A grande pecuária não circula dinheiro. A grande pecuária é uma parasita discreta, mesmo com seu tapete branco estendido pelos milhares de hectares de pasto verde, e muito gananciosa. Não redistribui lucro, porque tem todos os benefícios escusos que o dinheiro em quantias cósmicas consegue com abonos, propinas, mão-de-obra barata.”[ii] Lendo as coisas lá e cá – ambas as “facções” estão fartamente representadas nas minhas redes sociais -, me peguei imaginando um possível caminho do meio. E apesar de eles se ofenderem quando apontada a divisão “nós e eles”, ela existe e está aí. “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”, dizia Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido em 1968 e até hoje o povo parece não ter entendido. Claro, serei tachada de anacrônica e “antiga” por citar Paulo Freire. Mas isso é o de menos, com tantas preocupações e tantas urgências que o momento coloca. Então que me vem à mente a metáfora budista: creio que é exatamente isso que precisamos no momento. Caminhar pelo meio, analisando tudo. Compreender que, parcialmente, as duas abordagens opostas podem ter a sua parcela de razão, que com Edgar Morin podemos aprender a produzir um pensamento complexo sobre processos complexos, um pensamento/ação que não destrua o do outro, mesmo se opondo a ele. Penso e sinto que é exatamente nisso que devemos investir agora. Investir não capital financeiro, que não temos (tá todo do lado da “burguesia”, nacional e transnacional), mas sim nossos esforços de compreensão, diálogo e ação individual e coletiva. Efetivamente apareceram furos na operação Carne Fraca. Desde uma amostra pequena e localizada, que não representaria a realidade nacional, após rios de dinheiro público colocado na investigação de dois anos, até a suspeita de que as denúncias espetaculosas serviriam para abafar a revolta popular pela retirada de direitos e mudança de regras da aposentadoria, na dita reforma da previdência. E que quebrar as grandes empresas, líderes da cadeia produtiva da carne que envolve muitos segmentos sociais equivaleria a desnacionalizá-las e entregar o setor de mão beijada à ávida sanha transnacional. Assim foi feito com o pré-sal (e efetivamente FOI), assim estaria sendo feito agora. No outro lado (que por mais que negue que é um lado, É!), o apontamento de que a esquerda defender a “free boi” é um fiasco inominável, um “papelão” (pra trocadilhar; piada com o “o agro é pop” também não falta). Que a agenda regressiva de retirada de direitos sociais une o capital em todas as expressões e agências. Que a burguesia nacional e transnacional está articulada e muito bem obrigada, com seus amplos recursos de defesa e advogados pagos a peso de ouro, para precisar ser defendida pelos pobretões da esquerda, de quem deve dar risada. Que as ditas “gigantes do setor” historicamente cometeram crimes hediondos, exploraram, massacraram, expulsaram do campo contingentes empobrecidos e marginalizados de camponeses, descumpriram a legislação ambiental vergonhosamente, fizeram todo tipo de lobby pela manutenção de seus privilégios espúrios. Dá pra dizer que é mentira? Não, né?! Então, como ficamos? Só tento refletir aqui, não tenho certeza de nada. Mas acho que a primeira coisa a fazer seria parar essa troca de farpas infantil e inútil. Satisfaz a quem e serve a quê, além de egos inflados? Porque eu queria entender… tanta coisa pra fazer, tanta luta pra lutar, tanta injustiça pra sanar. E esse povo se digladiando nas redes, se fragmentando nas ruas. “Impossível a unidade, que tolice… nunca foi assim e nunca será”, respondem com ar irônico. Bom, pode ser, mas eu ainda acho que há pautas importantes, e que estas mereceriam uma mínima unidade. Agenda regressiva de retirada de direitos sociais, genocídio do povo negro, misoginia e LGBTfobia cruéis e mortais, especulação imobiliária atroz e gentrificação das cidades, um governo de bandidos, um legislativo podre, um judiciário hiperelitizado e injusto, ascensão de um protofascismo a lá Bolsonaro, e as gentes preferem gastar energia em troca de farpas e mútuas ofensas em textos e mais textos e respostas e mais respostas. Penso que está na hora de mudar a forma de agir, nas ruas, nas redes, na vida. Tá na hora de trilhar aquele caminho do bodhisattva, superar o egoísmo e a infantilidade, tolerar mais as diferenças de opinião e enfoque, debater sem ofensas e ironias e agressões fratricidas, e principalmente AGIR, buscando reverter esse buraco fundo que estamos caindo. Volto então à palestra do Bisol assistida há quase 17 anos, num encontro da ABRAPSO em Santa Maria… cito o cara, que àquela altura (final da palestra) estava esquizoanalisando personagens do Lewis Carrol: “Hampt-dumpt disse para Alice: EU, quando digo uma palavra, dou a essa palavra o sentido que EU quero dar. Porque sou o dono do sentido. O senhor é senhor da palavra: ele fala, o servo escuta.” Então é isso, pessoal, mais ponderação no uso performativo da palavra; mais bodhisattva, menos Humpt-dumpt, porque estamos precisando muito transformar as condições atuais, e isso é impreterível. [i] RIVERO, N. (org). Psicologia social: estratégias, políticas e implicações. ABRAPSOSUL (Encontro regional da ABRAPSO, 2000), 2001. [ii] http://www.sul21.com.br/jornal/nao-ha-o-menor-risco-de-quebradeira-de-nossa-industria-da-carne-mesmo-porque-a-nossa-industria-nunca-foi-nossa-por-charlles-campos/ 1tu59