Filha de ateus deixa imóvel para a paróquia de Santa Teresinha Por Daniela De Bem Para quem acha que as pessoas não deixam mais seus bens para Igreja Católica, e que isso já é algo ultraado, a história da linda casa situada na Av. Venâncio Aires com a Santa Teresinha, pode surpreender. O casarão amarelo de três pavimentos, com dependências e um terreno que mede 13m85 de frente e mais 27m30 pelo lado da rua Santa Teresinha, foi deixado por Hebe Trindade, após a morte em 2003, para a Paróquia do Santíssimo Sacramento e Paróquia Santa Teresinha. A mansão, que chama a atenção dos que por ali am, foi alvo de batalha judicial. Hélgio, Maria Inês, Maria Zélia e Otto Trindade, junto aos filhos do irmão já falecido, não aceitaram a doação da mãe. Juntaram-se e entraram com um processo, acusando a entidade religiosa de “captação de vontade”. A benfeitora, Hebe Casses Trindade, nascida em 1917 na cidade de Quaraí, era filha do promotor, jornalista e poeta Atila Gutierrez Casses com a professora Hermelina Aquino Casses, ambos ateus. Seguindo a vida profissional da mãe, formou-se na antiga Escola Normal, em 1937. Um ano depois, casou-se com o juiz e tabelião Otto Bélgio Trindade e foi morar em Encruzilhada do Sul, onde nasceram os dois primeiros filhos. Foi por influência do casamento que Hebe se batizou e iniciou uma tardia, porém, intensa vida religiosa. Após períodos em outras cidades, como Flores da Cunha e Nova Trento, o casal se mudou para Porto Alegre. Por dois anos, de 1946 a 48, Hebe foi professora do Instituto de Educação. Porém, abandonou o magistério – quando seu quinto e último filho nasceu – com o intuito de se dedicar ao lar. Desde que chegou à capital ou a frequentar a Paróquia do Santíssimo Sacramento e Igreja Santa Teresinha, na rua José Bonifácio. Perto dali, a família adquiriu o casarão amarelo, a uma quadra de distância. O que antes, no terceiro piso, abrigava uma pensão e, nos outros, uma empresa de mudanças foi transformado. Após dois anos de reforma, os primeiros andares aram a ser a moradia da família e o terceiro foi dividido em dois apartamentos. Hebe é conhecida pelos que a cercaram como alguém que fazia o bem. A Creche beneficente Santa Terezinha contou com a sua ajuda por longo período de tempo. Dos anos de 1980 até 1987, foi presidente da instituição ao lado da amiga e vice-presidente Vanda Becker, hoje com 91 anos. Depois de ter deixado a chefia, continuou trabalhando na instituição até 1996, quando ficou doente. Vanda, já com dificuldades da caminhar pela idade avançada, discorre sobre a personalidade da companheira. Diz que ela sempre foi preocupada com as questões sociais e participante de atividades filantrópicas, além de ser comunicativa e muito católica. Foram as duas que conseguiram, com uma ajuda da Alemanha, comprar a atual sede da creche, na Av. Venâncio Aires 1030, que antes funcionava nas dependências de um asilo, na Ramiro Barcelos. Marilene Motta Lopes, ativa na mesma igreja e coordenadora da Caritas Paroquial – organização humanitária católica destinada a atender pessoas carentes – da qual Hebe também fazia parte, conta que “ela era uma líder espiritual, dava palestras, ensinava a bíblia, era uma pessoa que não só falava, mas vivia o evangelho.” Vanda conta que em 1988 a amiga perdeu o filho, o tabelião Fernando Trindade,e um ano após, morreu o marido, que estava doente há doze anos depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral. Nessa época, através de pesquisas ao processo gerado pela doação da casa da família, é possível verificar que Hebe já havia feito pelo menos dois testamentos com o marido, em 1978 e em 1983. O patrimônio do casal era grande, compreendendo a casa da residência, imóveis de renda – vários deles comerciais localizados na rua Andradas -, outros não alugados, como uma casa de veraneio e um sítio. Foi em janeiro de 1994, com 77 anos, que Hebe Trindade decidiu doar o imóvel, que era de sua família há cinco décadas , para a paróquia da qual fazia parte. Acompanhada de cinco testemunhas, freiras palotinas, ela assinou o documento na presença do tabelião e registrou em cartório. Esse ato foi feito em sigilo, sem que os quatro filhos ainda vivos pudessem saber. O testamento foi fechado e só poderia ser aberto por um juiz após a morte de Hebe. Além disso, com medo de rasgar ou perder o papel, ela deixou sob a guarda do tabelião. Em 1996, teve um tumor no crânio e ficou hospitalizada por, aproximadamente, oito meses. No últimos anos de vida, já estava muito doente e, segundo Marilene Motta, já não mais podia ir às missas diárias. Em fevereiro de 2003, Hebe morreu e na certidão de óbito, os motivos: parada cárdio-respiratória, cardiopatia isquêmica, linfoma. Após o falecimento da testadora, o documento foi aberto e, tanto os filhos e os netos, quanto a Paróquia, ficaram sabendo da doação do imóvel da Venâncio Aires. Os herdeiros naturais, logo em seguida, entraram com um processo de anulação de testamento, afirmando que a mãe não estava lúcida e que havia sofrido captação de vontade. Na primeira instância, a família ganhou. Frei Marcos afirma que a igreja tinha pensado em desistir de lutar pelo imóvel, entretanto, um dos filhos teria afirmado que “os padres eram leões vestidos com peles de cordeiro”. Por esse motivo, diz ele, decidiram ir até o fim e venceram na segunda e na terceira instância. O processo durou cerca de seis anos e, conforme o frei, a sentença só saiu por volta de dois meses atrás. Na lei brasileira, explica o advogado Ricardo Luís Maya, só até 25% dos bens podem ser doados a terceiros , mediante testamento. O resto fica sob o domínio dos herdeiros necessários – filhos e, na ausência desses, netos. Isso significa que o casarão deixado para a igreja é apenas ¼ de tudo o que o casal Trindade possuía . Apesar de terem alegado que a mãe estava esquecida e sem lucidez, o juiz julgou o testamento perfeito, sem nenhum tipo de erro. Ainda, salientou que foi feito quase dez anos antes da morte e, por isso, se ela tivesse se arrependido do ato, teria tido tempo para mudar. Hoje, após intensas brigas judiciais, o imóvel pertence aos freis carmelitas descalços, ordem – explica Frei Marcos – que tem os bens separados da cúria metropolitana e da qual a Igreja Santa Terezinha é a sede provincial. Além dela, existem mais sete casas, incluindo paróquias, casas de formação e casa espiritual – quatro no Rio Grande do Sul, uma em Santa Catarina e duas no Paraná . Há, ainda, mais duas missões em Mato Grosso. Os representantes da igreja consideram que a doação foi coerente, já que a vida de Hebe sempre foi marcada pela solidariedade e pela religiosidade. Conforme Frei Marcos ainda em outubro a casa será entregue definitivamente para a entidade religiosa. O prédio é parte do patrimônio histórico da cidade. A igreja não pretende usá-lo para nenhum movimento ou projeto social, mas sim para alugar a terceiros. “Um homem veio nos procurar para alugar e fazer uma casa noturna. A casa é muito grande, tem vários ambientes e seria muito bom para fazer uma boate, mas isso não combina com a doutrina da igreja”. Marcos conta, ainda, que um grupo de cineastas o procurou para pedir emprestado o casarão por tempo indeterminado. “ Eles queriam que a gente deixasse eles filmarem, a fim de ajudar na produção cultural da cidade”. O filme, entretanto, era de terror e, após uma risada, o frei arrematou: “ Filmes desse tipo não podem colaborar para o patrimônio cultural gaúcho, por isso também não concordamos.” O fato é que muitas pessoas já estão de olho no imóvel e , nos próximos meses, a casa terá outro destino. Sem saber o que funcionará lá, a única certeza é a de que ela não será mais o ponto de encontro da família Trindade. 3z3o2u