Polêmica do Pontal do Estaleiro ignora o peso da indústria naval na economia gaúcha 715ve

Geraldo Hasse A controvérsia sobre a construção de prédios no pontal do Mello ignora sistematicamente o que o Estaleiro Só e outros estabelecimentos similares representam para a história da indústria no Rio Grande do Sul – não apenas a indústria naval, mas a metalúrgica. Seja qual for o aproveitamento da área do extinto estaleiro, a memória histórica de Porto Alegre daria um salto se um dos mais antigos estabelecimentos fabris da capital reservasse uma parte de sua área para abrigar um museu de indústria naval gaúcha. O Estaleiro Só foi fundado em 1850, época em que Porto Alegre era pouco mais do que uma aldeia, como escreveu o jornalista Manoelito de Ornellas num folheto publicitário sobre o centenário dessa indústria. Seus fundadores foram Antonio Henriques da Fonseca, João Ribeiro Henriques e José Manuel da Silva Só. Tratava-se da primeira ferraria e fundição de que se tem notícia na capital, estabelecida no coração de Porto Alegre — esquina da rua Uruguai com a Praça Montevideo, mais conhecida então como a Praça dos Ferreiros. O centro da cidade era voltado para o Lago Guaíba. Em cada boca de rua transversal havia um trapiche. Era por água que a cidade recebia tudo que precisava para viver. O catálogo de produtos da oficina era imenso. Ela produzia canos, pregos, lamparinas, bacias, lampeões para faróis de navegação, bandejas, ferros de ar roupa, bombas para poços, sinos para igrejas e tachos de cobre. Durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), forneceu bocais, estribos e cornetas para o Exército Brasileiro. Foi nesse período que a empresa descobriu uma nova vocação após fazer reparos em navios da Marinha do Brasil. Também fez reparos em barcos particulares. Henriques era sócio da Companhia de Navegação do Jacuhy, dona dos vapores Riopardense, Correio, Viamão, 7 de Setembro, Guarani, Irapuá e Tupi. Pela reforma do vapor Tupi, em dezembro de 1865, o estaleiro recebeu 215 780 réis. Em 1870, Henriques saiu da firma, que ficou sob controle de José Manuel da Silva Só, deputado provincial pelo Partido Liberal. Em 1900, depois de várias alterações societárias, ou a se chamar Só e Filhos e, posteriormente, Só e Cia., mudando, também, diversas vezes de endereço. Em 1901, na exposição estadual, apresentou o primeiro motor a querosene fabricado no Brasil. Foi premiado com medalha de ouro. Nas últimas décadas de sua existência, estabeleceu-se finalmente como sociedade anônima, adotando o nome de Estaleiro Só S.A. Depois de já constituído como um estaleiro, produziu mais de 170 embarcações, cerca de 30 modelos de navios, entre eles ferry boats, navios-tanque, baleeiras, rebocadores, iates e pesqueiros. Seu apogeu ocorreu durante a década de 1970. Nessa época, que coincide com a maior atividade da indústria naval brasileira – concentrada então em Niterói e no Rio de Janeiro –, o Só chegou a ter cerca de 3 mil funcionários. Nos anos 80, o setor naval no Brasil sofreu um forte declínio, principalmente devido à falta de financiamentos para a construção de navios. O Estaleiro Só iniciou, então, um processo de diversificação de suas atividades, abrindo uma divisão de metal-mecânica, destinada à fabricação e pré-montagem de caldeiraria pesada, semi-pesada e leve. Essa iniciativa, que chegou a dar uma sobrevida à empresa, não foi suficiente para impedir sua extinção. Além do Só, houve outros fabricantes de barcos em Porto Alegre. Os mais conhecidos e duradouros foram os estaleiros Alcaraz, João Becker, Mabilde e Marteletti. Como o Só, mas sem alcançar o porte do pioneiro, eles viviam da prestação de serviços para navegadores avulsos, do atendimento de encomendas de empresas de navegação e principalmente de contratos com o governo estadual, sobretudo antes que as rodovias começassem a tomar conta do transporte de cargas. Sempre houve licitações de barcos novos e de reformas em embarcações de serviço, como as dragas usadas na manutenção de canais, lagoas e rios. Em 1940, o mercado de serviços para os estaleiros gaúchos era constituído por cerca de 3 mil embarcações – dragas, vapores, gasolinas, veleiros, lanchas, botes e escunas – catalogadas pela Secretaria de Viação e Obras Públicas. As relações entre os estaleiros e o governo estadual nem sempre foram serenas. Em 1927, o presidente do estado Getúlio Vargas criou estaleiros públicos em Porto Alegre , Pelotas e Rio Grande. Esses estabelecimentos não deram conta dos serviços, tanto que os estaleiros particulares continuaram em atividade, atendendo demandas privadas e encomendas públicas. Às vésperas da revolução de 1930, o Estaleiro Mabilde fabricou dois tanques de guerra em suas oficinas na Ilha da Pintada. Esses veículos foram usados para intimidar os adversários na Revolução de Outubro. Fundado no início do século XX pelo belga Pierre François Alfonse Mabilde (1856-1918), o Estaleiro Mabilde também começou com uma oficina próxima de um trapiche no centro de Porto Alegre. Assim que sentiu a firmeza do mercado, instalou-se na Ilha da Pintada onde prosperou até ser arrasado pela enchente de 1941. A luta pela recuperação foi infrutífera: em 1943, o Mabilde foi comprado pelo Consórcio istrativo de Empresas de Mineração (Cadem), que precisava cuidar da sua frota de transporte de carvão das minas da região de São Gerônimo para grandes consumidores de Porto Alegre, inclusive navios. Em 1947, quando possuía 467 funcionários, o estaleiro da Ilha Pintada foi encampado pelo governo do Estado, que reduziu o pessoal para 10% do encontrado. Suas instalações foram alugadas para estaleiros particulares. O locatário mais duradouro foi o Estaleiro Só, que por mais de 20 anos fez da Ilha Pintada a sua base de reparos navais. Da década de 90 até o início do século XXI, o Estaleiro Sorenave operou na Pintada até se transferir para Triunfo. A partir de 2004, a antiga área do Mabilde foi arrendada pelo Estaleiro Ecnavi, pertencente à Navegação Amandio Rocha, que opera uma frota de 15 rebocadores no Lago Guaíba e arredores. O Ecnavi dá prioridade à manutenção dos barcos do grupo, mas faz reparos em embarcações de terceiros e pode fabricar veículos novos. Um ano antes da criação do Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais (DEPRC), em 1951, o governo gaúcho comprou o terreno onde instalaria um estaleiro de reparos em Triunfo. Nos seus melhores momentos, essa oficina junto ao rio Jacuí teve mais de uma centena de operários aptos a fazer reformas navais e fabricar toda espécie de bóias e sinais náuticos. Crescentemente desfalcado, seu pessoal reduziu-se ao mínimo necessário para fazer reparos leves nas embarcações de serviço da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), sucessora do DEPRC. Por isso, o estaleiro oficial de Triunfo é considerado hoje um bom retrato da situação da navegação no Rio Grande do Sul. (O texto acima faz parte do livro Navegando pelo Rio Grande, que conta a história das hidrovias gaúchas. Para adquiri-lo, ligue para Já Editores no 51 3330.7272). 55563