Ciclo de cinema aborda temas contemporâneos 3ew3x

O Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, instituição vinculada à Secretaria de Estado da Cultura, promove o ciclo Cinema e História: Problemas Contemporâneos. O evento, realizado em parceria com o Centro Acadêmico de Estudantes de História (CHIST), da UFRGS, ocorre em 14 sessões de filmes, em encontros quinzenais, aos domingos, às 19 horas. A entrada é franca e as vagas são limitadas. Serão fornecidos certificados para àqueles que obtiverem (no mínimo) 75% de presença. A proposta é apresentação de filmes seguidos de debates sobre questões contemporâneas, promovidos por alunos de graduação e pós-graduação, além de participações especiais. O ciclo aborda dois tópicos distintos. O primeiro, intitulado GERAL, trata dos seguintes temas: África problemas contemporâneos; Meio Ambiente; Estados Unidos versus Oriente Médio; Migrações contemporâneas; Guerra Fria; Contra Cultura. O segundo tópico, BRASIL, fala da Questão indígena; Ditadura Militar; A questão racial e o cinturão de pobreza; Sociedade de consumo; Questões de gênero; Tráfico de gente; Desafios contemporâneos; Reforma Agrária. As exibições e debates ocorrem nos dias 05 e 19 de junho; 03, 17 e 31 de julho; 14 e 28 de agosto; 11 e 25 de setembro; 02, 16 e 30 de outubro; 13 e 27 de novembro. Serão duas modalidades de inscrições: para ouvintes e para apresentação de trabalhos. O ouvinte deve fazer sua inscrição através do e-mail [email protected]. A apresentação de trabalho deve ser efetivada até o dia 28 de maio, com o envio da ficha de inscrição, disponível em www.musuedacomunicacao.rs.gov.br, na programação do museu. 4v5124

Memórias do amigo capataz 1q2j27

Deoclécio Motta, o tio Bijuja, foi o melhor amigo de João Goulart. Eram quase irmãos. Brincaram na infância, dividiram segredos na adolescência e, já adultos, fazendeiro e capataz continuaram confidentes. Jango lhe confiou uma procuração para tocar os negócios nas estâncias enquanto amargurava no exílio.
Em 2004, durante pesquisas para compor a biografia de João Goulart, os jornalistas João Borges de Souza e Cleber Dioni Tentardini visitaram a casa dos Goulart, que agora virou museu, acompanhados de um amigo de infância de Jango, Deoclécio Barros Motta, chamado carinhosamente de tio Bijuja.
Os jornalistas queriam conhecer o outro lado do ex-presidente da República, o perfil do fazendeiro sãoborjense e sua relação com a cidade natal. Entrevistaram tio Bijuja em duas tardes abafadas de janeiro. Melhor do que uma entrevista, foi uma ‘contação de causos’.
Bijuja faleceu em 2007. Ele foi o amigo fiel de João Goulart. Eram quase irmãos. Brincaram na infância, dividiram segredos na adolescência e, já adultos, fazendeiro e capataz continuaram confidentes. Jango lhe confiou uma procuração para tocar os negócios nas estâncias enquanto amargurava no exílio.

Bijuja | Foto: Cleber Dioni
Bijuja | Foto: Cleber Dioni

Aos 81 anos, se vangloriava das quatro safenas: “Tenho cada remendo véio de assustá, é ponte, aterro, pinguela, fiz de tudo, mas tô aqui ainda, peleando bonito”. Ele tinha um humor imbativel.
Nesta conversa, Bijuja falou das coisas simples que dividia com o amigo no Interior. Da esperteza de Jango nos negócios, da amizade com Getúlio, das idas e vindas ao exílio no Uruguai, dos filhos de Jango, inclusive sobre Noé, mas foi logo avisando: “Eu acompanhei a vida particular dele e sempre tive muito carinho e respeito por sua família, e o lado político eu não sabia nada. Quando tinha visitas lá nas fazendas, ele dizia: “Olha, vocês fiquem tomando mate aí, que eu vou conversar com o coronel, nós vamos dar nossas bolichadas”.
Por que Bijuja?
Uma vizinha veio me conhecer, bebê, e disse “olha, parece um bijujinha”, não sei por quê. Depois, meu pai chegou e disse pra botar o nome dele e tava resolvido.
Como ficaram amigos?
Tinha sete anos quando me juntei com o Ivan e o Jango no pátio da casa deles. Eu tinha idade parelha com o Ivan, que era cinco anos mais moço que o Jango. Fiquei com eles até a hora de morrerem, sempre ao lado, mas nunca tirei vantagem desses homens que eram ricos, nem um centavo, a não ser amizade, e hoje uso o chapéu tapeado na testa, não preciso me esconder de ninguém. Me chamavam de coronel, agora de tio Bijuja.
Coronel era um apelido?
Me chamavam gratuitamente. A única ligação é meu irmão, general da reserva, Astolfo Motta.
O pai do Jango tinha muitas terras?
O pai do Jango era um homem rico, mas a herança não chegava nem perto do que o Jango juntou. O Vicente deixou 17 quadras de campo pra cada filho quando faleceu. Eram sete filhos. Uma vez ele disse: “Janguinho, parece que tu vai prestar, trabalhador que tu é, eu vou te dar uma mão pra ti começar a trabalhar por conta. Vou garantir um dinheiro, mas vou depositar no banco, não posso te dar dinheiro porque senão teria que dar para os outros também e vocês são sete.
O Banco avalizou não sei quantos contos e o Jango pegou e comprou tudo em bois. O pai dele disse: “E não vou te dar mais campos porque iria ter de dar para os outros, então tu vai te arranjar, arrenda um campo bom, paga mais, mas que seja bom, não arrenda porcaria.” Aí, ele arrendou uma fazenda lá em Itacorubi, o dono do campo era Viriato Vargas Andrade. Ali deu o tiro, já ganhou um saco de dinheiro, e dali por diante arranjou não sei quantos bois. Tinha muito crédito.
Por honrar as dívidas?
Era um homem cumpridor. Uma vez num Cassino no Uruguai chegou um graúdo do Brasil. Tava cheio do dinheiro, mas se pelou. Foi pedir par trocar um cheque e o gerente recusou. Ele engrossou a voz : “Vocês não sabem com quem estão falando?”. O gerente disse que a única pessoa ali que trocava cheque era o presidente Jango. Esse coronel ficou furioso e falou mal do Jango. E o gerente retrucou : “Do doutor Jango a casa aceita até guardanapo com a dele”. Esse coronel bufava.
Como era o amigo fazendeiro?
Me lembro de uma fazenda que o Jango tinha uns 900 hectares. Tinha que andar uns 10 quilômetros pelo corredor e depois entrar nos campo de um francês para chegar lá na dele e o Jango me dizia:
– Mas que merda desse francês que não me vende essa porqueira, tem que tá sempre pedindo licença pra cruzar.
– Mas tu é pretensioso, hein, Jango, o outro tem 10 mil hectares e tu com 900 querendo comprar do homem.
Essa fazenda lá ele comprou dum turco velho, o Martin Sema, e um dia o turco me chamou:
-Tio Bijuja, doutor Goulart vai pro céu assim que morra.
– Porque diz isso?
– Conseguiu lograr um turco velho e ladrão como eu
Esse turco tinha umas cinco mil ovelhas, capão, lanuda, e disse que só vendia a estância se comprasse todo o bicharedo também. Aí o Jango tironeava, visitava o velho, mas não havia jeito de vender sem os bichos. E o Jango sempre a par de tudo, soube que a lã não sei aonde, subiu muito, aí o Jango comprou todas ovelhas e com a venda da lã comprou a estância do velho.
O Jango gostava de fazer um negócio que era coisa linda de se ver. Ele fez negócio com uns gringos da Swuift Armour, frigorífico, vendeu 10 mil boi gordo, mas ele não tinha tudo isso de boi invernado.
Aí ele vendeu, comprou, vendeu, e saiu com sacos de dinheiro. Numa outra fazenda, o Jango ia comprar umas vacas, pegou um cavalo manso, porque tinha que ser por causa da perna dura dele, deu uma volteada e disse que queria 50 e perguntou qual era o prazo pra pagar.
Mas o prazo era só o tempo de dar a volta na guaiaca, tinha que ser ali mesmo. Ele comprava já fazendo os cálculos de quanto ia ganhar nos frigoríficos.
E quantas fazendas o Jango tinha?
As fazendas que ele teve aqui pro Sul, se não me esqueço, era a Rancho Grande, Santa Luíza, Cinamomo, Granja, Palermo. Teve no Mato Grosso também, as Três Marias, mas bem mais tarde. Na Argentina ele teve a La Periá, La Sussi, La Villa.
A fazenda Rancho Grande era a rapariga dos olhos do Jango, a maior de todas e a melhor. Tinha oito mil e poucos hectares, o melhor campo do mundo, era melhor em tudo, só a casa que não era de luxo, porque o Jango não era de luxo.
A Granja São Vicente era mais conhecida porque ficava dentro da cidade, mas tinha meia dúzia de gado, o Jango ava ali mas logo se mandava para Rancho Grande. Tinha uma outra bem pequenininha, que o Jango sempre visitava, Palermo, era de difícil o, estrada ruim, ele ia num aviãozinho e ficava por lá, na beira do rio Uruguai. Inclusive, no dia em que foi embora do Brasil, ele deu uma ada por lá.
E ou lá na fazenda Santa Luíza. Que é pegada a Rancho Grande. Nesse dia, o Jango mandou me chamar e pediu para eu desse uma controlada nas suas fazendas. Eu fui capataz da fazenda São José, da dona Tinoca, a mãe dele.
E no Uruguai?
No Uruguai ele não tinha campos antes de ir para o exílio. Tanto que ele foi para casa de um amigo, não lembro o nome, que ficava na praia de Piriápolis me parece, ou num daqueles lugares ali. Depois ele comprou uma em Taquarembó, teve outra em Maldonado.
Foto: Cleber Dioni
Foto: Cleber Dioni

Nos fale de quando eram jovens, o que faziam?
Eu tirei o ginásio e depois tive que trabalhar. O Jango estudou por aí, em outras cidades, mas sempre voltava para ar as férias. Fazia coisa de guri. E o Jango era muito popular aqui. Participava do Carnaval, entrava em tudo. Tinha a Jorgina e a Jocelina, aqui, uma preta bem alta e magra, e outra baixa e gorda.
Morreram com noventa e tantos anos. O bloco delas era na frente do Comercial e o Jango tomava a frente do bloco, puxava o cordão e se ia pro Comercial, bah, aquela veiada graúda ficava tudo sem jeito. Tinha até um versinho: “Hoje é de graça no boteco da Jorgina, entra o Jango e o Ivan, e o Bijuja com as china.”
Mentira do pessoal, né, mas sabe que pega. Depois ele participou do bloco dos rengo.
E ele tinha muito bom gosto com as namoradas. Lá em Porto Alegre ele teve um problema de saúde, com a perna, teve gonorréia, que se alojou no joelho, infeccionou. Um dia ele comentou comigo: “-
Olha Bijuja, o que o pai gastou com essa perna lá em São Paulo dá uma estância”. Ele fez uma cirurgia, trouxe aparelhos de fisioterapia, mas não fazia direito o tratamento, dizia que tavam judiando dele. O bicho era teimoso, não gostava de médico. Um dia, depois que eu ei a istrar as fazendas dele, isso foi por volta de julho de 64, eu disse que ia comprar uns touros charolês, e ele :
– Me desculpe coronel, mas eu não gosto de gado charolês. Os campos lá do Rancho Grande servem para criar qualquer bicho, mas esses charolês são muito exigentes, comem muito.
– Bueno, então não vamos criar. Mas eu criava igual, era pro bem dele.
Como assim, istrar?
O Jango, já como exilado político, me pediu para istrar oficialmente as fazendas dele. Tava lá o que era procurador dele, o Aírton Ayub. E Jango me disse: “Coronel, precisamos de ti, tu é um homem campeiro, vou te dar uma procuração, pra guias, vender, comprar.”
Ele andava muito de avião sobre as fazendas ?
O Jango voava que não era brinquedo. As fazendas tinham pistas porque ele sempre teve avião particular. Como muitos outros. O Uruguai era uma quantidade de avião pequeno. No exílio, o piloto provocava, dizia que ia ar lá na fazenda tal, mas nunca chegou a descer em São Borja, e depois o Jango vinha contar que tinha dado um aperto no peito, de saudade.
Mas o Jango era um homem simples, gostava de gente humilde, era bem povo. Chegava na Rancho Grande, ia na cozinha, pegava um fervido com mandioca, e comia conversando ali com a senhora. Pra ele aquilo era o máximo. E gostava muito de cachorro. E de carro, teve vários.
Ele tinha um modelo preferido?
Era um homem apaixonado por autos. Uma vez ele me pediu para comprar um doge. Mas olha, tchê, tinha que sair dum posto e entrar no outro. Aí ele devolveu de vereda. E a rural. Naquele tempo o Uruguai não tinha estradas, e a rural tinha tração nas quatro rodas.
Um dia eu quase me incomodei com esse carro, porque veio um da cor da Brigada e eles encrencaram:
– Não pode andar com carro dessa cor.
– Mas eu comprei assim
– É, mas o senhor pode ser preso.
– Mas então pode aproveitar, eu não vou mandar pintar.
Eu era encrenqueiro.
Eu tive uma veraneio, caminhonete grande, e a licença era 90 dias. Aí o Jango me pediu pra tirar a licença por mais dias pra ir mais seguido lá no exílio visitar ele. Ele tinha visto o doutor Getúlio isolado, no auto-exílio, e foi um dos poucos que ia visitar ele. Então ele sabia como era isso.
Frequentou a casa do Getúlio Vargas?
Uma vez nós chegamos lá de carro, o Jango com uma baita dor de estômago. O doutor Getúlio tava tomando um café e mandou chamar a senhora que cuidava da casa:
– Tia, faz um chá de marcela pro Jango.
O Jango foi tomando chá, e comendo bolachinha, quando viu tinha comido toda. E o doutor Getúlio:
– Mas que lindo a tua dor, não. Tomou um balde de chá e comeu toda minha bolacha.
Num aniversário do doutor Getúlio, no capão do mata fome, diz que fizeram um churrasco tão grande que só para o tira-gosto carnearam 30 vacas. O homem que cuidava dos espetos tinha um zaino que tava suado de tanto andar pra lá e pra cá. Diz que pra salgar, usaram aquelas máquinas semeadeira de arroz.
O doutor Getúlio era muito conservador nos negócios, pensava muito antes de comprar alguma coisa. E tinha uma fazenda aqui, a Santa Amélia, que o doutor Getúlio não queria comprar, era muito caro, e foi o Jango quem praticamente obrigou ele a comprar, gado de primeiríssima qualidade. Eu fui ajudar a receber. O doutor Protásio Vargas, irmão do doutor Getúlio, mais velho, também era amigo do Jango.
Outro que conheci foi o Gregório Fortunato. Ele chegou a ser minha babá. Em 23, a mamãe já tava pra ganhar outro e o papai tava aquartelado aqui em São Borja, e eu fiquei lá no meio dos milico. Era homem valente, bagual. Tinha um outro que foi capanga do papai. Eu brincava com ele:
– Quantos o senhor matou na sua vida?
– Que o seu pai mandou, diversos.
– Então vamos encerrando o assunto.
O senhor acompanhou todo o tempo do exílio do Jango?
Sim, e durante o exílio, o Jango nunca foi de noite em São Borja, isso que dizem é invenção. Ele ava perto com o avião, e dizia: “Coronel, ei perto da tua terra lá, e o Rivera ligou a rádio de São Borja, que foi minha, deu uma saudade”. Não me lembro bem se foi a rádio Cultura de São Borja ou a Fronteira do Sul que o Jango começou, tinha jornal também. Ele comprou a rádio com o Manoel Antônio Vargas, filho do doutor Getúlio. E também eu nunca soube que o Che Guevara tivesse visitado o Jango.
É que misturavam as coisas. Por exemplo, o Jango teve um piloto que era Tupamaro, ficou um monte de anos preso no Uruguai.
Me lembro de um guarda que cuidava o Jango na cidade, dia e noite, o dom Soto. Ficava numa cadeira na entrada do prédio. Um cagalhão. Uma vez, fazia um frio horrível no Uruguai.
Nós congelamos um lagarto vivo e colocamos um buçalzinho pra não morder o focinho e a hora que o guarda tava dormindo, botamos o lagarto embaixo do cobertor. Daí umas horas, se aquentou o lagarto e saiu pelas calças e esse castelhano saiu correndo, rasgou o cobertor porque enganchou no portão, bah.
Outra vez botamos um cágado na cama do castelhano, bah, outro cagaço. Aí, o guarda começou a ficar chaveado num quarto. Nós tinha que fazer um pouco de graça também, né.
O que ele comentava sobre o Brasil? Ele recebia visitas, os companheiros de partido?
Ele saiu, custou muito pra sair porque ele não queria deixar essas terras nem atado, ele amava esse Brasil como ninguém, e não se sentia culpado de nada. Ele fazia os cálculos pequenos pra voltar. Dali de San Tomé se enxerga São Borja. Ele tinha o pesqueiro na costa, Palermo. Ele gostava de ficar ali pra pescar e como era de difícil o, não iam muitos chatos bijujas incomodar lá, sabe.
São Borja era tudo pra ele. Ficava triste quando eu ia lá na fazenda, no exílio, e no outro dia já me preparava pra ir embora. Ele dizia: “Tu gosta dessa vida porque tu vem e vai a hora que tu quer, e eu tenho que ficar nessa merda aqui, obrigado”. E às vezes ele contava na mão, e sobrava dedo, os amigos mesmo dele que iam visitar no exílio. Muita gente ia só pra pedir favores, cria de cavalo.
Quando era empréstimo muito grande, ele me mandava um bilhete : “Coronel Bijuja, peço que resolva o problema do fulano dentro das nossas possibilidades”. Aquilo era uma senha pra eu não dar o empréstimo. Ele não podia resolver o problema de todos.
Mas era um homem generoso. Quando o Jango comprou terras do Brizola, eram 1,2 mil hectares, ele me disse:
– Coronel, bota esses campos no teu nome.
– Mas porque Jango , não sou teu herdeiro, nem teu filho.
Aí peguei a procuração, mas na hora de escriturar, não botei. Aí coloquei mil hectares para o João Vicente e menos pra Denise, que é no caso de algum alcaide querer casar com ela por causa dos campos. Teve outra estância que ele queria me dar, então essa aceitei, mas depois de uns acontecimentos também não quis mais. Eu era amigo do Jango, então vou ficar pobre e amigo da alma dele.
Eu cuidei de toda a fortuna do Jango, se eu quisesse me enchia de dinheiro, mas hoje teria que andar com o gorro tapando os olhos, mas não, qualquer bem bom ou filha da puta tem que me respeitar. E isso faz bem, dignidade não se compra, ou se tem ou não se tem.
E ele tinha um grande coração. Uma vez ele me chamou e disse que tinha um problema pessoal com o Brizola, mas que não era pra eu deixar de ir lá visitar o Brizola e a irmã dele, a Neuza: “Eles vão ficar sentidos contigo e comigo também, vão achar que eu não deixo tu ir lá ver eles”, ele disse.
O senhor chegou a ser preso?
Uma das tantas vezes que eu fui preso, quer dizer, fui convidado pra dar depoimento, lá no quartel, um coronel diz assim:
– Mas o Jango é um baita comunista, né?
– O senhor quem tá dizendo?
– Se o senhor não sabe, fique sabendo que ele é um baita comunista.
Aí pensei comigo: o que esse véio vai saber de alguma coisa do Jango comunista? Esse pessoal de extrema esquerda nem gostava do Jango.
E a mulher e os filhos do Jango, se adaptaram rápido no Uruguai?
A Maria Tereza e os filhos moraram na praia de Pocitos, estudavam nos colégios uruguaios, mas iam seguido lá ver o Jango.
Sempre que podia o Jango tava grudado com o João Vicente e a Denise. Eles estudaram em Montevidéu por um bom tempo. Eu andava de carro com o João Vicente e a Denise, almoçava com eles, ia pra praia com as crianças, a Denise era pequeninha e eu tinha uma filha, que eu criei.
Como o senhor soube do Noé?
Essas histórias de filho do Jango, bah, o que vinha de gente aqui. Veio uma advogada bonita falar comigo:
– Mas coronel, o senhor acha que pode ser filho ?
– Não sei, como é que eu vou falar da mãe dele, mas uma coisa eu posso lhe garantir, se aparecer alguma terneira ou potranca parecida com o Jango, é filha dele, porque gostava de um sereno no lombo. Tchê, essa advogada riu tanto que ou mal.
Fui no Fórum e tava o seu Noé lá, eu nunca tinha visto, achei parecido, aí o juiz me pergunta:
– O senhor conhece esse cidadão?
– Sei quem é mas não conheço.
No exílio, o Jango me perguntou :
– O que tu acha coronel?
– Tu é quem tem que saber, Jango.
– Se é verdade que é meu filho, eu vou ajudar.
Esse era o coração dele.
Um coração doente também
Ele fumava muito, não comprava, mas fumava dos outros:
– Cigarro, coronel. Era um, dois, três, lá pelo quarto eu dizia:
– Tu sabe duma coisa Jango, dá câncer fumar, não comprar”. Aí ele pedia pra outro e assim ia.
O pessoal irava a nossa intimidade, mas porque nós andávamos juntos desde criança, né. Com os outros era doutor pra lá, doutor pra cá, e comigo ele se sentia um homem comum.
Eu chegava lá na fazenda, no Uruguai, e dizia: “Olha, eu não sou pobre pra andar comendo ovelha velha, bichada no casco”. E os peões olhavam pro Jango, que dizia: “É o coronel que está mandando aí, vocês se arrumem com ele, e vamos carnear, o que adianta ter esse mundo de boi e dinheiro, pra andar comendo ovelha velha”. Aí já se carneava uma vaca e meta carne.