Eduardo Maretti Ao escrever estas curtas impressões, esclareço que minha preocupação, aqui, não tem a ver com filtros do senso comum. A premissa é que escrevo pensando em algo “más allá”, mas sempre dentro da esquerda brasileira. Dito isso, quero dizer que a esquerda brasileira tem que evoluir muito para ser transformadora. Penso no mestre Pier Paolo Pasolini. Uso para esta modesta análise impressionista o caso Andreas von Richthofen. Como era de se esperar, após vir a público a informação de que Andreas — o irmão de Suzane, condenada por ser a autora intelectual do assassinato dos pais em 2002 — foi encontrado em condições precárias e com “sinais de uso de drogas”, não tardaram as abordagens simplistas e, eu diria, espiritual e filosoficamente limítrofes, sobre o caso, por parte da nossa nobre esquerda. Uma dessas abordagens, típicas, diz o seguinte: “é fácil ter compaixão e empatia pelo Andreas. Bem nascido, loirinho, frequentou os melhores colégios e vivemos, todos, a sua dor. Vimos a destruição da sua família. Solidarizamos a dor dele, quando teve os pais assassinados. Difícil mesmo é enxergar humanidade e ter compaixão e empatia com o viciado que parece vindo de outro mundo. Que é analfabeto. Que sempre morou na rua e que já ou pela cadeia algumas vezes”. É o que diz Marcelo Feller, advogado criminal. Data venia, é o mesmo tipo de argumentação que encara um atentado como o de Paris em 2015, ou o de Manchester, no mês ado, com afirmações do tipo: é fácil lamentar as mortes de Paris, mas difícil mesmo é enxergar a humanidade dos assassinados nas periferias de São Paulo etc etc etc. É como se a pessoa “bem nascida, loirinha”, abençoada por ter frequentado “os melhores colégios”, fosse destituída de humanidade. É um argumento filosoficamente indefensável. Um argumento que, no limite, justificaria os atentados de Paris de 2015. Ambos, Andreas e o menino pobre da periferia, merecem a mesma compaixão. A dor de ambos dói igualmente, na alma. Mas na alma deles. A dor é espiritual e física, e existencial. Se ser humanista é ser antiquado, eu sou antiquado. A questão de Andreas estar ou não na Cracolândia não importa. A esquerda, da qual eu faço parte, precisa ir além do materialismo e do determinismo. É óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que o país, e particularmente São Paulo, estão submetidos a políticas higienistas e fascistas. Voltamos décadas no tempo. Sofremos um golpe (que, aliás, foi conseguido de maneira tão fácil que chega a ser deprimente ser brasileiro na atual conjuntura – mas isso é outro assunto). E não é isso que discuto aqui. Aqui, parto do pressuposto de que o fascismo é incabível no século XXI. Mas, repito: a esquerda brasileira precisa ir além do materialismo e do determinismo. A esquerda brasileira deveria ler Nietzsche, Dostoiévski, Sartre e Baudelaire, para interpretar a história sob perspectivas menos materialistas e deterministas. Perspectivas que possam superar as abordagens fáceis. Entender o sofrimento de Raskólnikov (o protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski) da mesma maneira que entende o sofrimento dos perseguidos pelo higienismo fascista de João Doria. São dimensões diferentes. Mas dimensões que precisam ser compreendidas como paralelas. A esquerda brasileira precisa se desvencilhar de seus moralismos e ir “más allá”, se quiser transformar este pobre Brasil em algo digno de ser chamado de uma nação. É só isso. Data venia. (Publicado originalmente no blog Fatos Etc.) 6v5v5o