Tabajara Ruas: o autor e o personagem, oitenta e um invernos depois 623a4u

Foto: Divulgação Facebook de Tabajara Ruas

Aos 81 anos, comemorados em agosto, Tabajara Ruas chega à 69a Feira do Livro de Porto Alegre, da qual é patrono, com um lançamento, três reedições,  um roteiro de filme e muitos projetos. Consagrado autor, personifica o escritor cioso do seu ofício.      4r2x5m

GERALDO HASSE

O escritor Tabajara Ruas lança neste final de ano, pela Editora AGE, Você Sabe de Onde eu Venho, livro de 300 páginas sobre a conquista brasileira de Monte Castelo, na Segunda Guerra Mundial.

Trata-se de uma nova narrativa sobre a participação brasileira na luta contra o nazismo. “É uma versão ampliada de um folhetim que escrevi anos atrás para o jornal Zero Hora”, explica o autor nascido em Uruguaiana em agosto de 1942, os mesmos mês e ano da entrada do Brasil na guerra.

O título do livro vem do primeiro verso do longo poema de Guilherme de Almeida transformado pelo maestro Spartaco Rossi no Hino do Expedicionário, que exalta as paisagens de onde saíram os 25 mil soldados brasileiros enviados à Europa. É quase impossível não arrepiar-se ao ouvir o resultado dessa parceria nacionalista de larga abrangência geográfica. Fala do pampa e dos cafezais, do engenho e dos canaviais. A vitória final ocorreu em 21 de fevereiro de 1945, após três meses de cerco para desalojar os inimigos alemães entrincheirados na montanha coberta de neve, a 60 quilômetros de Bolonha, no norte da Itália. Nos combates morreram 451 “pracinhas” sepultados no cemitério da vizinha cidade de Pistoia.

A GUERRA COMO TEMA

Um novo livro sobre ocorrências da última guerra mundial é mais uma prova do apelo que os temas bélicos exercem sobre Tabajara Ruas.

Ele aprendeu a falar quando ainda se ouviam pela Voz do Brasil as dramáticas notícias sobre os combates na Europa. Fora isso, é bom lembrar que a fronteiriça Uruguaiana sempre esteve nas ordens-dos-dias militares desde que foi invadida e ocupada pelo exército do Paraguai em 1865, quando o imperador Pedro II esteve lá para os devidos fins.

E nem é preciso falar das revoluções intestinas de 1893, 1923 e 1932 para entender o estado de espírito dos nativos dessa cidade, militarizada (Exército, Marinha e Brigada Militar) para vigiar inimigos estrangeiros e contrabandistas de combustíveis, pneus e outras mercadorias.

Não se pode cravar que Tabajara Ruas seja o fruto mais original dessa conjuntura armada, mas os fatos estão aí: aos 81 anos, ele se fez reconhecer e consagrar como autor de livros e filmes que focalizam sobretudo atividades guerreiras de figuras históricas como os generais Antonio de Souza Netto, Bento Gonçalves e Davi Canabarro, além dos civis Giuseppe Garibaldi e Gumercindo Saraiva — personagens que descobriu aos poucos, à medida que lia, estudava, discutia e comparava narrativas, que não rejeitam a imaginação para preencher lacunas entre os fatos. Sua conclusão final é que, por conta de manipulações politiqueiras, “a mitologia é mais firme do que a História”, como consta em depoimento seu à segunda edição do livro Lanceiros Negros (JÁ, 2006). Para poder exercitar-se sem hesitações no terreno da ficção, ele sempre leu livros de História a fim de desvendar contradições, manipulações e sofismas em torno dos fatos. “Eu gosto muito de História, mas sou ficcionista”, eis sua profissão de fé no ofício de escritor.

PATRONO

Em 2023, Tabajara Ruas é o patrono da  69a Feira do Livro de Porto Alegre, o maior evento cultural da capital.

Aproveitando a visibilidade, além do lançamento de Você Sabe de Onde eu Venho, estão sendo reeditados: Os Varões Assinalados e O Amor de Pedro por João, dois dos seus livros mais lidos, ambos pela L&PM. Pela JÁ Editora, sai  A Cabeça de Gumercindo Saraiva, em coautoria com Elmar Bones, um ensaio-reportagem sobre o caudilho que apavorou a República na guerra de 1893.

O tema do primeiro é a Guerra dos Farrapos. Ele conta a gênese da obra: “Eu estava em Portugal quando li um livrinho do Alfredo Varela, o autor da história da “grande guerra” sulina contra o Império do Brasil em meados do século XIX”.

Ao voltar para o Brasil, em 1981, mergulhou na leitura da coleção completa de Varela (seis volumes, alguns com 800 páginas), ganhando coragem para escrever o romance épico-varonil que, na literatura gaúcha, só encontra paralelo em Érico Verissimo.

A primeira versão de Os Varões saiu como folhetim no jornal Zero Hora. Os primeiros capítulos saíram no primeiro semestre de 1985, o desfecho foi no 20 de setembro, o dia da proclamação da República Rio-Grandense, em 1836.

Para Ruas, não há como negar que a controvertida guerra dos farrapos buscava a liberdade – os caudilhos tentando se libertar do jugo imperial e os soldados negros querendo deixar de ser escravos.

Segundo o romancista Luís Antônio de Assis Brasil, as 550 páginas do romance de Ruas constituem a obra definitiva sobre a revolução farroupilha. Nele, o ficcionista revela-se um exímio montador de diálogos, habilidade fundamental na elaboração de roteiros de cinema. Apesar de sua densidade e envergadura, Os Varões não é o favorito do autor.

FUGINDO DA DITADURA

“Meu melhor livro é este!”, afirma, apontando o novo volume recém-impresso de O Amor de Pedro por João. Trata-se de um romance sobre a busca da liberdade sob o sufoco da ditadura militar, motivo de sua saída clandestina do Brasil em 1971.

Não é obra autobiográfica, embora romanceie episódios vividos ou presenciados por ele na vida estudantil e na luta pela sobrevivência fora do Brasil.

Em depoimento ao JÁ, Ruas contou como deixou o Brasil. Compartilhava com mais três colegas uma república estudantil, cursava Arquitetura na UFRGS e trabalhava num escritório onde desenhava plantas. Vida espartana com seguidos sobressaltos de origem política: sem ser um militante exaltado, participava da Ação Popular, organização que combatia o governo, mas não aderiu à luta armada contra o regime militar.

Em pleno período dos “anos de chumbo”, o apartamento no segundo andar de um predinho no bairro Auxiliadora foi denunciado por vizinhos incomodados com o barulho e o entra-e-sai de estranhos que se hospedavam ali por uns dias e logo seguiam viagem para onde ninguém podia saber.

Um dia, no rastro de uns panfletos políticos, a polícia chegou e prendeu o mais sereno dos moradores, o poeta Nei Duclós, outro nativo de Uruguaiana, militante do jornalismo. Tabajara escapuliu por uma janela e “evadiu-se do local” só com a roupa do corpo, sem carregar nenhum pertence. Por alguns dias abrigou-se na casa de conhecidos no vale do rio dos Sinos, onde se convenceu de que não teria alternativa senão fugir para o Uruguai, mas sem correr o risco de expor-se na estação rodoviária ou dentro de um ônibus para alguma cidade da fronteira. Salvou-o a ajuda emergencial do jornalista santanense Jorge Escosteguy (1946-1997), que lhe arranjou uma carona discreta num carro da reportagem do jornal Zero Hora que cumpriria pauta jornalística em Livramento.

Depois de uma viagem tranquila, o motorista o deixou numa rua do centro da cidade. Mal desembarcou, caminhou até atravessar a avenida que separa o Brasil do país vizinho. Livre em Rivera, nem pensou em ir para Uruguaiana, pois sabia que a casa paterna estava vigiada. Foi parar em Paissandu, onde – quase arquiteto – trabalhou por cerca de dois meses na construção civil.

Dali atravessou o rio Uruguai e entrou na Argentina por Concepción, de onde se deslocou para Buenos Aires e, logo depois, para o Chile, onde muitos brasileiros torciam pelo governo de Salvador Allende. Foi morar em Valparaíso, onde obteve um emprego regular numa fábrica de móveis que soube aproveitar muito bem seus conhecimentos de arquitetura.

Em 11 de setembro de 1973, o dia do bombardeio do palácio presidencial que marcou a morte de Allende e o início da ditadura do general Augusto Pinochet, Tabajara estava casualmente em Santiago. Para não ser preso junto com outros brasileiros, decidiu buscar refúgio numa embaixada. Boca braba. A oportunidade surgiu na frente do casarão da representação diplomática da Argentina. Ele ficou na avenida com um grupo de pessoas que observavam o movimento. De repente, quando o portão se abriu para a agem de um carro, ele arrancou e entrou correndo no espaço diplomático argentino, ignorando os gritos de protesto dos guardas. Assim conseguiu asilo político. Dali foi levado para Buenos Aires, onde viveu até obter asilo na Dinamarca. Foi a partir daí que se empenhou em realizar o ideal de escrever. Seu primeiro livro, A Região Submersa, foi um policial publicado originalmente na Dinamarca e em Portugal. O personagem principal é o detetive Cid Espigão. Só depois veio O Amor de Pedro por João, cuja história começa dentro de uma embaixada.

ESCRITOR NO EXÍLIO

“Desde pequeno eu queria ser escritor”, diz ele. irou inicialmente Érico Verissimo de O Continente. Depois ou a apreciar americanos como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Por fim se ligou nos narradores latino-americanos Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Márquez, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. No meio de tantos gênios, apareceu um divisor de águas: Juan Carlos Onetti, uruguaio que ele só foi conhecer graças ao jornalista Danilo Ucha (1946-2016). Com a autossuficiência típica dos santanenses, Ucha baixou numa mesa de café em Porto Alegre com um livro do ídolo a quem acabara de entrevistar em Montevidéu, no final dos anos 60.

“Nunca vou esquecer a pose de Danilo Ucha observando nosso silêncio de fim de mundo”, escreveu Ruas, em relato sobre o impacto da descoberta dos fascinantes escritos do ícone da literatura uruguaia. Ruas considera Onetti um especialista na elipse – a arte de contar apenas o necessário, deixando ao leitor o direito de imaginar o restante.

Por aí sabemos que Tabajara Ruas bebeu em várias fontes para poder se tornar não apenas escritor, mas roteirista e diretor de cinema. Dublê de escritor e cineasta, ele se configurou como um caso único no Rio Grande do Sul. Poderia ter se contentado com o trabalho como arquiteto, redator de releases, jornalista folhetinista, escritor. Foi muito além. Ao abraçar o cinema, colocou-se em condições de fundir duas expressões artísticas, uma milenar, outra secular.

“Quis fazer cinema para realizar talvez a fantasia da nossa geração”, disse em 2023 em depoimento ao Jornal do Comércio. A geração em tela é aquela que frequentou a universidade nos anos 60 e fez eatas contra a ditadura militar enquanto curtia filmes brasileiros e estrangeiros discutidos e analisados calorosamente em bares e repúblicas dos arredores do campus da UFRGS. Entre outros, Ruas gostava do baiano Glauber Rocha, do americano John Ford e do inglês David Lean, que dirigiu o épico “Lawrence da Arábia”. Sempre prestou atenção no modo como eram feitos os filmes de faroeste, de guerra e de mistério. Com orçamentos apertados e recursos escassos, chegou a fazer filmes com centenas de figurantes armados e montados a cavalo, contando com a ajuda de unidades da Brigada Militar e o apoio entusiástico de Centros de Tradições Gaúchas. Proezas de um esquerdista sem preconceitos ideológicos.

Se tudo correr bem, essa carreira integrada livros-filmes seguirá adiante com a filmagem de “O Fascínio”, novela de sua autoria que narra a história de um advogado que, disposto a receber uma herança, viaja de camioneta de Porto Alegre para a fronteira com a Argentina. Desnecessário dizer que é ficção sem viés autobiográfico. O roteiro está pronto. Falta arranjar os recursos financeiros, mas está definido que o codiretor será seu filho Tomás Walper Ruas, 21 anos, estudante de cinema na UFSC que desde criança acompanha a carreira cinematográfica dos pais. Este ano, Tomás estreou oficialmente como codiretor de “Edifício Bonfim”, longa rodado em Florianópolis sob o comando de Ligia Walper, sua mãe. Além de “Edifício Bonfim”, a Walper Ruas Produções está montando “Perseguição e Morte de Juvêncio Gutierrez”, baseado no livro de Tabajara ambientado em Uruguaiana. Os dois filmes serão lançados em 2024.

Há outros projetos de longo prazo cuja realização depende da obtenção de recursos. Tabajara espera baixar a poeira da Feira do Livro para se dedicar a novos textos. Confessa sentir-se “travado” desde que contraiu o vírus da Covid em 2021, quando trabalhava na pré-produção de Juvêncio Gutierrez em Uruguaiana. Natural na idade, mas ele não se conforma com os lapsos de memória que interrompem suas conversas. Fora disso, sua saúde não o preocupa. Ainda assim, não disfarça certa a ansiedade às vésperas de protagonizar um dos momentos de maior ‘glamour’ a que pode chegar um militante das letras do Rio Grande do Sul.

Após meio século de escrita, ostenta um cartel de uma dezena livros, meia dúzia de filmes e a disposição de aprofundar-se nas duas atividades principais de uma carreira profissional sem paralelo no Sul do Brasil. Ainda que seus leitores e espectadores não conheçam detalhes de sua vida, ele explica sem rodeios sua origem. Foi o segundo de uma penca de cinco irmãos, todos batizados com nomes compostos. “Meu nome completo é Marcelino Tabajara Gutierrez Ruas. Meu pai usou a mesma nomenclatura dupla para seus cinco filhos. Pela ordem: Ubirajara, Tabajara, Tapejara, Potiguara e Paraguaçu. Além de mim, o único vivo é o caçula, que se chama Francisco Paraguaçu, mas é conhecido por Chico. Mora em Porto Alegre”.

Enquanto o pai, Napoleão, morreu com mais de 70 anos, a mãe, Irma Gutierrez, viveu até os 98 anos. O sobrenome materno levou muita gente a supor que a história narrada no livro e no filme Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez seria autobiográfica. Negativo. Tabajara esclarece que havia sim em sua família um tio chamado Juvêncio Gutierrez que nada tinha a ver com as atividades correntes em Uruguaiana. Ele era ferroviário em Alegrete. Seu nome evoca a primitiva genealogia sulina, com sua sonora mescla de ascendências luso-espanholas.

Embora ambientada em Uruguaiana, Juvêncio sintetiza uma história típica da fronteira, onde é forte a tradição do contrabando, pano de fundo dessa ficção. O autor-diretor explica: “Eu fiz questão de recriar o contexto da minha infância/adolescência na cidade onde vivi até os 17 anos. Eu morava perto do rio Uruguai, a poucos metros do Colégio Santana. O narrador da história é um menino de 13 anos que estava abrindo os olhos para as coisas da vida. Tanto embaralhei histórias de amigos e colegas que dois deles vieram me perguntar quem era quem no livro”. Claro que o autor aproveitou para deixá-los mais em dúvida ao brincar sobre as habilidades de ambos no futebol.

Eis aí um aspecto revelador da personalidade desse ficcionista que, de tanto escrever e fazer filmes, acabou por alcançar a dimensão de um personagem. Cabe lembrar aqui que o inefável Taba é multimídia capaz de atender a demandas extraordinárias. Em 2012, por exemplo, deu um curso sobre preparação de roteiros para vinte candidatos a escritor em Curitiba. Em 2009 foi convidado a participar de um seminário sobre “Os Anos de Onetti na Espanha”, organizado pelo Núcleo de Estudos sobre Onetti mantido na Universidade Federal de Santa Catarina. Eram 15 acadêmicos cujas conferências foram reunidas em livro editado pela editora Letras Contemporâneas. O único estranho no ninho de acadêmicos era Tabajara Ruas. Coube a ele ler uma crônica singela sobre como se encantou com a leitura de livros de Onetti no final dos anos 1960 em Porto Alegre e, depois, em Paissandu, onde acabou por concluir que seu fervor literário era maior do que o ardor revolucionário. É o texto mais fluente da coletânea, na qual consta também um belo ensaio do escritor uruguaio Carlos Liscano (então diretor da Biblioteca Pública de Montevideo) sobre o sonho de quem escreve.

“Todo escritor é um personagem inventado pelo indivíduo que quer ser escritor. (…) O processo de invenção, no melhor dos casos e com sorte, ocorre ao redor dos trinta anos”. Segundo Liscano, Onetti lutou por isso desde a juventude. E chegou lá.

Sua engenhosa teoria pode aplicar-se a outras personagens. No Uruguai, também chegaram ao patamar mais elevado escritores como Eduardo Galeano e Mario Benedetti. No Rio Grande do Sul, alcançaram esse status alguns como Érico Verissimo, Mário Quintana, LF Veríssimo, LA Assis Brasil e Sergio Faraco. Nessa constelação de estrelas da literatura pode se encaixar o mais profícuo escritor da margem oriental do rio Uruguai. Mesmo tendo atravessado 81 invernos, ele mantém o afã. E conserva o visual da juventude. Embora a barba esteja quase toda branca, como acontece com a maioria dos velhos, não perdeu a cobertura capilar. O cabelo grisalho continua caído para o lado direito. Nem boné usa. Chapéu também não. Capa, de vez em quando, como se viu durante as filmagens de “Senhores da Guerra”, o livro de José Antônio Severo (1941-2021) sobre os irmãos Bozzano, que se colocaram em lados opostos em conflitos armados em 1924. Não falta nada para Tabajara Ruas virar lenda.