Sérgio da Costa Franco: “Porto Alegre não se rendeu” 3t4a4u

Elmar Bones 2kw35

Trecho de A Cidade Sitiada, livro de Sérgio da Costa Franco sobre o cerco a Porto Alegre, lançado em setembro de 2000
Trecho de A Cidade Sitiada, livro de Sérgio da Costa Franco sobre o cerco a Porto Alegre, lançado em setembro de 2000

Essa história ficou encoberta, até que o historiador Sérgio da Costa Franco encontrou nos arquivos do Instituto Histórico um calhamaço de mais de 200 páginas manuscritas, que lhe tomou seis meses de trabalho. “Foi uma trabalheira”, diz ele, lembrando o paciente esforço que teve de fazer para decifrar os garranchos de um certo Queirós, autor de um diário inédito sobre o período em que Porto Alegre esteve sitiada pelos farroupilhas.

A descoberta motivou‑o a enfrentar um desafio do qual ele tinha desistido por “fastio” da Revolução Farroupilha. Partindo das informações do diário, ele retomou suas pesquisas para contar o que foram os 1.231 dias em que a cidade viveu sob a ameaça de escassez e abaixo de bombardeios.

 

Franco recebeu a reportagem do JÁ para esta entrevista exclusiva no dia 13 de julho de 2016.

JÁ – O senhor voltou a estudar a Revolução Farroupilha …

Eu me aproximei novamente do assunto por causa da história de Porto Alegre. O sítio farroupilha à cidade foi um episódio muito importante, influiu no seu desenvolvimento, causou uma paralisia dos negócios durante quatro anos, então sob este aspecto é que interessou. Vi que tinha muita coisa ainda inexplorada… e o assunto tinha quase virado um tabu.

Como foi o cerco?

O sítio de Porto Alegre nunca mereceu maior atenção dos historiadores regionais. Este fato é, de certo modo, compreensível. Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial aos rebeldes, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense, por mais revisões que se faça.

O sítio foi um fracasso….

Foi um fracasso militar dos farroupilhas. Depois de perderem a cidade na reação de 15 de junho de 1836, os rebeldes nunca mais conseguiram retomá-la. Mesmo com forte superioridade numérica, submetendo os moradores da capital à fome e a restrições diversas, jamais conseguiram dominar a sede provincial. Por isso, a cidade ganhou o título honorífico de “leal e valorosa”, outorgado pelo governo Imperial em 1841.

A omissão do cerco então foi deliberada?

Não soaria simpático aos porto-alegrenses o relato dos reiterados canhonaços e bombardeios com que as forças de Bento Gonçalves, Souza Netto, Bento Manoel e David Canabarro alvejaram repetidamente a cidade, intranqüilizando e atemorizando sua população.

Que efeitos teve sobre a cidade?

Freou a expansão da cidade durante vários anos. Equipamentos e serviços precisaram conter-se dentro do estreito perímetro das fortificações e trincheiras, e a população rural da periferia viveu submetida a repetidas mudanças de senhores sob a angústia das requisições forçadas, das violências pessoais e dos saques. A Câmara Municipal tinha vários portugueses e foi engraçado. Eles deram no pé, porque os farroupilhas tomaram a cidade e esses vereadores comerciantes portugueses se afastaram com as alegações mais estranhas. Por exemplo, o Lopo Gonçalves, fundador da Associação Comercial de Porto Alegre, figura importante da cidade, pediu uma licença por três meses para ir aos banhos de mar…. e se mandou em inícios de outubro!

Por que eles mantiveram o cerco se era inútil?

Taticamente, a manutenção do sítio pelos rebeldes teve apenas a eficácia de manter numerosas forças legalistas retidas na capital, privando-as de tentar o controle militar no interior da província. O sítio de Porto Alegre não ilustra os feitos guerreiros dos Bentos e dos Netos, nem os irmana à memória sentimental da capital gaúcha. Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram, e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas.

Esse é o tema de seu livro?

Sim. Ele foi também motivado pela recente descoberta de um esquecido diário manuscrito, no qual se narram, o a o, as peripécias do sítio entre 1837 e 1838. Tal documento, inédito, somado a outros já divulgados há muito tempo, patenteia o quanto foi dramático para a população citadina o cerco que lhe foi imposto, com algumas interrupções, desde junho de 1836 a dezembro de 1840.

Onde estava esse diário?

Eu o encontrei no Instituto Histórico, até copiei à máquina, me deu um trabalho enorme, porque era um manuscrito de difícil leitura. Interessante que a primeira parte desse manuscrito, o Moacyr Flores tinha encontrado e publicou num livrinho, uns anos atrás. Mas a parte que ele encontrou era pequena. O que eu encontrei é a continuação. Me dá a impressão de que o autor tinha um objetivo jornalístico, ele devia remeter para o Rio de Janeiro, provavelmente porque, ao fim de alguns capítulos, ele fala assim: “Seguiu pela sumaca tal”.

Quem era o autor do diário?

Era um português que se chamava Barreto Queirós. Ele só assina Queirós. O Moacyr dá como certo esse nome, e na investigação que fez diz que o sujeito era secretário do Cônsul da Sardenha, aqui. O que se identifica nele é que era português e hiper-reacionário, talvez partidário de Dom Miguel, porque é contra as Constituições, antiliberal. Mas ele registra o dia-a-dia: hoje, chegou o cara vendendo galinha, charque, então é interessante do ponto de vista de um relato do cotidiano.

2009-franco2Como era esse ambiente?

Porto Alegre ficou dividida. Os legalistas reconquistaram a cidade, mas havia o grupo dos partidários do Araújo Ribeiro, tio‑bisavô do deputado Paulo Odone, de tendência liberal, inclinado à negociação, e outro grupo radical, dos portugueses, que era contrário. Entre eles se digladiavam violentamente pela imprensa, e, no clima da cidade sitiada, as brigas eram ferozes. O português do diário era dos mais reacionários e suas observações são constantes. Eu tinha pensado em publicar, mas a copidescagem seria tão grande que não valia a pena. Depois, ele enchia muita linguiça, era linguagem de jornalista mesmo.

Com que freqüência ele escrevia?

Todos os dias. Mandava quando havia barco para o Rio, mas escrevia diariamente, textos enormes, até demais, descrevia o dia‑a‑dia e acrescentava divagações filosóficas. Eu entreguei a cópia ao Instituto Histórico, deu mais de 200 páginas datilografadas. O original era uma maçaroca no meio de outros documentos. Há outro diário, que foi publicado em 1885 ou 86, de um anônimo. Na verdade, era um advogado, Fagundes, que foi provedor da Santa Casa e deputado provincial. Ele escreveu sob o anonimato, mas era um diário dos anos 39 e 40, do final do sítio. Então, com o diário do Queirós, que se refere a 37 e 38, mais os documentos militares, a troca de correspondência e as atas da Câmara Municipal sobre problemas de desabastecimento e especulação de preços, com esse conjunto consegui fazer o livro.

Ficou esclarecido o local das fortificações?

As fortificações, sabe-se que eram só trincheiras cavadas, não havia construções de alvenaria, nada, salvo alguns baluartes que fizeram para botar canhões. Também havia os chamados “pontos” artilhados, que eram 16, um pouco mais fortificados, cada um tinha uns dois canhões.

O sítio chegou a perturbar a vida da cidade?

Ah, sim! A comunicação toda era via fluvial. O que garantia o abastecimento eram os lanchões que iam para São Leopoldo, isso quando os farrapos não estavam dominando aquela região, daí não ava nada. No mais, eram operações de guerrilha, na direção do Guaíba.

Como era a cidade dessa época?

Em Porto Alegre, viviam funcionários e comerciantes, principalmente. Deviam ser uns 10 mil na época da guerrilha, mas não era tão pouca gente. E dois mil homens foram defender as trincheiras, paisanos que não hesitaram…

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Pintura a óleo da primitiva Santa Casa de Porto Alegre, de autor desconhecido

Sobre as causas da Revolução, qual é a sua conclusão?

Bom, o primeiro manifesto dos farroupilhas não fala absolutamente em qualquer problema econômico. Não há nada. Só fala no problema político, nos presidentes estranhos à província, só isso. Depois, quando houve a proclamação da Independência, no manifesto de 1838, três anos depois, vem a justificativa econômica, já para legitimar a República. Aquilo sempre me chamou a atenção, a argumentação a posteriori. Eles queriam mesmo era o poder. Logo após a Guerra da Cisplatina, Bento Gonçalves, Bento Manoel e outros haviam sido generais do Exército brasileiro, tinham sido mal-sucedidos… Perderam a guerra, perderam o Uruguai, para eles foi um revés enorme. Eles eram gente da fronteira, acostumados a negociar com a Cisplatina, a ir e vir. Aquilo foi uma forte causa de inconformidade. É uma das causas mais quentes da Revolução Farroupilha, a derrota da Cisplatina.

Foi deflagrada por razões políticas, então?

Sim. A meu ver, no início foram razões estritamente políticas. Depois, então, surge aquela fundamentação toda para justificar a declaração da independência. Aliás, quem faz aquilo, o manifesto todo é do Domingos José de Almeida, que de gaúcho não tinha nada, era mineiro. A Revolução nunca contou com o apoio de Porto Alegre, nem de Rio Grande ou de São José do Norte, as praças do litoral ligadas ao comércio. E o comércio não tinha interesse nenhum naquilo. Os farrapos estavam em completa impopularidade, tanto que meia dúzia de oficiais que estavam presos se organizaram e reconquistaram a cidade. Enfrentaram o cerco dos farrapos e os dominaram, com apenas 200 homens contra mais de 500. Aguentaram porque tinham o apoio popular. E, no final, vieram os populares para as trincheiras. Nisso também entrava o medo dos escravos, o exército dos farroupilhas era puro negro. No diário desse Queirós, ele só fala nisso “os negrinhos voltaram aí, olha a turma do São Benedito”, era tudo negro. Quando eles davam cifras de prisões, elas eram assim: 20 negros e cinco brancos. Os soldados e os lanceiros eram os escravos dos legalistas, que haviam sido recrutados com promessas de liberdade. Claro que a população da cidade tinha medo disso: imagine um exército de ex-escravos.

O que fica, hoje, dessa Revolução?

Agora é um negócio que se incorporou ao imaginário, uma porção de mitos se acumulou ao longo do tempo. A Revolução Farroupilha, na verdade, foi uma divisão dentro da sociedade. A disputa pelo poder, não era mais do que isso. Eu tenho estudado muito a história de Jaguarão, que é a minha terra, e descubro coisas engraçadas… O chefe farroupilha e o chefe legalista da cidade eram vizinhos, moravam no mesmo quarteirão. Os pátios das casas se encontravam. Eles até morreram na mesma época e pude ver o inventário dos dois. Era semelhante, os dois cheios de escravos.

A Câmara Municipal de Jaguarão foi a primeira a apoiar a República, logo que proclamada. Tinha um vereador que era irmão de Bento Gonçalves, e outros parentes, então a Câmara solidarizou-se com a República Rio-grandense. Quando de novo se reúnem, em 1845, a mesma Câmara que tinha prestado solidariedade ao Bento Gonçalves e à República Rio-grandense saúda o Duque de Caxias e agradece a pacificação, com um caloroso elogio à Caxias. Em seguida, realiza-se a eleição e vê-se o seguinte: os que foram declaradamente farrapos tiveram menos votos e os eleitos são gente da nova geração, que estavam aparecendo naquele momento.

Sobre o suposto acordo do Canabarro com Caxias, qual a sua versão? A carta forjada seria uma manobra de contra-informação?

Não sei. Mas que os escravos vêm a ser uma pedra no sapato dos Farrapos, isto sim. Eram. Eles tinham a promessa de liberdade e o acordo não saía por isso. Quer dizer, não é fora de propósito que os Canabarro resolvessem sacrificar os negrinhos…

Iam buscar os escravos dos adversários para lutar nas suas fileiras em troca de liberdade, mas mantinham os seus.

Chamavam os escravos dos adversários, sim. A Constituição Farroupilha não aboliu a escravatura, mesmo vindo depois da uruguaia, que aboliu.

Eram separatistas os farroupilhas? 386v2e

Essa pergunta está sempre presente quando se fala da Revolução e já rendeu muita polêmica através dos tempos. Mas nem mesmo um inimigo declarado dos farrapos, como Tristão de Alencar Araripe, ousou afirmar categoricamente que eles pretenderam em algum momento a separação definitiva da comunidade brasileira.

Diz ele: “Os rio-grandenses, parece, não terem tido jamais o pensamento definitivamente assentado de separação da nossa nacionalidade, salva a pequena fração dos agitadores idealistas”.

E mais adiante: “Se, por ventura, os rebeldes tivessem em mente a ideia de separação sem regresso, um de – seus primeiros os teria sido o de confraternização formal e expressa – com as repúblicas vizinhas. Isso, porém, nunca fizeram: “apenas convenções secretas pactuavam e furtivo auxílio recebiam de chefes de bandos sublevados nessas repúblicas e isso a troco da prestação de gente, pólvora ou cavalhada para seus repentinos acometimentos em dias oportunos”.

A conservação das leis imperiais e esse retraimento que não deixava fazer causa comum com os vizinhos do Uruguai e da Argentina indicam que, no ânimo dos rebeldes, nunca desaparece a ideia de regresso à união brasileira.

“Diz uma testemunha, que assistiu à proclamação e escreveu umas memórias narrando os detalhes mais íntimos dos acontecimentos, que Neto foi colhido de surpresa pela decisão da oficialidade”, escreve Dante de Laytano.

Manoel Lucas de Oliveira
Manuel Lucas de Oliveira

Manuel Lucas de Oliveira, que seria Ministro da Guerra na nova República Rio-grandense, e Joaquim Pedro Soares foram à barraca de Neto no acampamento do Seival onde estavam os farroupilhas.

Argumentaram: era preciso uma bandeira para manter o movimento aceso naquele momento em que começava a primeira grande ofensiva das forças imperiais. Houve uma corrente separatista entre os políticos farrapos? Parece fora de dúvida que havia, mas era minoritária. Com o desenrolar dos fatos, no entanto, sua influência se tornou crescente, uma vez que os acontecimentos, depois de deflagrada a Revolução, começaram a tomar rumos imprevistos e incontroláveis.

“O separatismo foi um momento, ou melhor, um condicionamento que se achou para galvanizar a opinião pública, orientá-la para uma doutrina que dessem novos resultados, até mesmo militares. O que se pensou, na verdade, foi uma posição provisória, um afastamento temporário e uma república que se incorporaria ao Brasil quando todo o país se tornasse republicano”, sintetiza Laytano.

“Quisemos ontem a separação de nossa pátria, hoje almejamos a sua integridade”, declarou David Canabarro quando negociava a paz.

Autores divergem sobre as razões da proclamação

Fernando Callage

“Neto proclamou a República por ser republicano e pretender levar esta forma de governo ao restante do Brasil”.

Rubens Barcellos

“Os revolucionários queriam a República, a separação foi um meio acidental para conquistá-la”.

Walter Spalding

“Foi um ato de desforra, que antes jamais fizera parte das cogitações de Antônio de Souza Netto, pois não era republicano. Foi convencido por Joaquim Pedro Soares e Manuel Lucas de Oliveira”.

Henrique Wiederspahn

“Domingos José de Almeida, o verdadeiro cérebro da Revolução, e João Manoel de Lima e Silva, republicanos exaltados, convenceram Neto a aproveitar o momento da vitória”.

Domingos Almeida
Domingos Almeida

Coelho de Souza

“A separação foi provisória, até que as demais províncias da república proclamassem a República, unindo-se pela federação”.

Dante de Laytano

“Foi uma imposição que fizeram a Antônio de Souza Neto”.

Alfredo Varela

“O ato de Antônio de Souza Neto é uma resposta às instigações de Oribe, presidente do Uruguai, a fim de que o Rio Grande do Sul se unisse ao país platino, contra o Império do Brasil”.

Tarcísio Taborda

“A República não estava nos propósitos da Revolução. Netto não se manifestara republicano em nenhum momento”.

Tasso Fragoso

“A vitória do Seival não basta para explicar a proclamação”.

Governo caiu sem resistência 16y6f

Porto Alegre amanheceu deserta, as casas com as janelas fechadas. Homens de Bento Gonçalves haviam entrado na cidade à noite. Uma pequena patrulha, chefiada pelo visconde de Camamú, havia tentado enfrentá-los quando alcançavam a Ponte da Azenha, mas foi um fiasco. Dois de seus homens foram mortos e o visconde escapou ferido, todo embarrado, com a roupa rasgada, sem uma bota e sem chapéu. “Ao irromper, roto, ensanguentado, esbaforido e só, às primeiras horas de 20 de setembro no palácio presidencial, o visconde de Camamú tinha mesmo que deixar todos (…) completamente espavoridos, como arauto do pavoroso desastre, cuja extensão ainda ninguém poderia medir, nem mesmo as suas consequências”, anota Wiederspahn.

Visconde de Camamu

Para completar o pânico com a chegada do desarvorado visconde, ouviu-se um tiro no palácio. Foi descuido de uma sentinela, mas a confusão foi total: “… todos procuram um abrigo, abandonando a sede do Governo. Fecham-se as portas e janelas, tangem os sinos com o alerta, esboçam-se algumas medidas para a defesa da cidade. Arrastam-se algumas peças de artilharia com alarido para proteger a pessoa do presidente. Este faz distribuir granadas de mão entre os poucos que ainda o rodeiam, indecisos.”

Quando clareou o dia, os farroupilhas ocupavam pontos estratégicos para impedir a entrada de gêneros alimentícios na cidade, achando ainda que o presidente iria resistir. No entanto, as guarnições locais aderiram aos rebeldes. “Vendo minguarem-se cada vez mais os elementos de que ainda poderia dispor, o presidente Fernandes Braga convocou de novo os militares, seus partidários, decidindo concentrar a resistência em torno do arsenal, à espera de reforços. Só então teve ele a consciência do abandono em que se achava, pois 17 homens apenas se apresentaram para constituir a sua escolta”, relata Wiederspahn.

Maior revolta depois de Palmares

O poder rebelde chegou a fundar uma república, mas não conseguiu dominar a Província inteira

Não foram dez anos ininterruptos de guerra. Às vezes, os combates se suspendiam por meses. No inverno, por exemplo, a luta cessava ou se restringia a mínimos confrontos. A guerra teve também diversas fases. Começou como uma rebelião em 20 de setembro de 1835. Tornou-se um confronto armado em fevereiro do ano seguinte. Até então, negociava-se a indicação de um governador que fosse do agrado dos revoltosos.

Definiu-se como uma revolução com a proclamação da República Rio-grandense em 11 de setembro de 1836. O poder rebelde chegou a proclamar uma nação independente, mas nunca dominou a Província inteira, e sua “mais duradoura dominação” foi na parte sudoeste do Rio Grande do Sul, na região da campanha, contígua às repúblicas do Prata.

“Depois de Palmares, foi o maior movimento armado entre as revoltas internas que o Brasil viveu”, de acordo com Riopardense de Macedo.

Outro historiador, Dante de Laytano, contou “56 encontros bélicos” ao longo de 3.466 dias de revolução, com um saldo estimado entre três mil e cinco mil mortos (há muita divergência entre os pesquisadores quanto a datas e números).

No ponto culminante da guerra, havia quase 20 mil combatentes de ambos os lados.

Com a rendição dos rebeldes gaúchos, em 28 de fevereiro de 1845, pela primeira vez, desde a Independência, todo o central.

“Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”

Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin
Tela Fogo no pasto, de Guido Mondin

Segundo Tristão de Alencar Araripe, o presidente não conseguiu reunir mais do que 270 homens, menos da metade das forças a favor dos revolucionários. Às onze horas da noite, restavam apenas o 1º comandante, capitão Francis Félix da Fonseca, o 2º comandante, tenente Alvarenga, um cabo, o corneteiro e um soldado. “Decidiu, pois, embarcar na escuna Riograndense, levando consigo todo o numerário existente no Tesouro e recomendando ao inspetor em exercício, Joaquim Manuel de Macedo, que não abandonasse a repartição e seus subalternos”. Comboiado pela canhoneira 19 de Outubro, seguiu para Rio Grande, deixando uma proclamação: “Às armas, cidadãos! Às armas, que a Pátria se acha em perigo!”.

Os farroupilhas ocuparam a cidade e Bento Gonçalves divulgou um manifesto, tentando acalmar a população: “Os cidadãos, que se acham armados, são vossos irmãos, amam e respeitam a lei, e para fazê-la respeitar se viram obrigados a empunhar as armas. Com a fuga do ex-presidente, dr. Antonio Rodrigues Fernandes Braga, a arbitrariedade desapareceu e, nas nossas mãos, a oliveira substituiu a espada”.

Cinco dias depois, Rio Pardo, São Gabriel e Rio Grande, onde se refugiara o presidente, são os únicos redutos de resistência à revolução. Bento Gonçalves, já dono da situação, faz um novo pronunciamento, jogando a culpa de tudo na intolerância do presidente deposto e manifestando fidelidade ao império:

“A inquietação que, desde os primeiros meses da presidência do Sr. Braga se tinha derramado na maior parte desta Província, e que por todas vezes a prudência e o amor à ordem haviam acalmado, como acendida por virtude elétrica, apareceu novamente e se fez geral. A nossa Pátria pareceu ao esperto observador como um enfermo a quem a febre ardente mortifica, e que alternativamente espera e teme que a crise que o atormenta lhe dê saúde ou morte.

Em vão, compatriotas, buscáveis a tábua de salvação, ela estava na Carta, mas naqueles momentos a Carta era letra morta, as vias legais vos eram obstruídas, a apatia do governo central não vos deixará traduzir a mais pequena esperança de melhoramento, os males vos ameaçavam já de perto, qualquer dilação vos ia dominar, e destruístes, cidadãos, a força com a força. Cumprimos, rio-grandenses, um dever sagrado repelindo as primeiras tentativas de arbitrariedades em nossa cara Pátria; ela vos agradecerá e o Brasil inteiro aplaudirá o vosso patriotismo e a justiça que armou vosso braço para depor uma autoridade inepta e facciosa, e restabelecer o império da lei.

Compatriotas, eu acrescentarei à glória de haver sido em outros tempos vosso companheiro nos campos de batalha, e haver-vos conduzido contra nossos inimigos externos, a glória ainda mais nobre e perdurável de haver concorrido para libertá-la dos seus inimigos internos, e salvá-la dos males da anarquia. O governo de facção desapareceu de nossa cena política, a ordem se acha restabelecida.

Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin
Transpondo a Ponte da Azenha, de Guido Mondin

Com este triunfo dos princípios liberais, minha ambição está satisfeita, e no descanso da vida privada a que tão somente aspiro, gozarei o prazer de ver-vos desfrutar os benefícios de um governo ilustrado, liberal e conforme os votos da maioria da província.

Respeitando o juramento que prestamos ao nosso Código Sagrado, ao Trono Constitucional e à conservação da integridade do Império, comprovais aos inimigos de nosso sossego e felicidade que sabeis preferir o jugo da Lei ao dos seus infratores, e que ao mesmo tempo nunca esqueceis que sois os es do melhor patrimônio das gerações que vos devem suceder, que este patrimônio é a liberdade, e que estais na obrigação defendê-la a custa de vosso sangue e de vossa existência…”

Mal sabia ele que estava começando uma guerra que ia separar a Província do Rio Grande do Sul do Império brasileiro, uma guerra que iria durar quase dez anos.

O caudilho que devia ser padre 636h1n

Quando ele nasceu, em 23 de setembro de 1788, na Estância da Piedade, em Triunfo, os pais decidiram que Bento seria um padre. Ele era o décimo filho do casal Joaquim e Perpétua Gonçalves da Silva e não revelou em nenhum momento pendores para o sacerdócio.

Atilado e com espírito de iniciativa, sentia prazer nas lides do campo. Carta de seu pai observa que o filho “sabe o que é trabalhar e cuidar do que se encarrega e eu, sem ele, não posso estar um dia”. Ao redor dos 18 anos, Bento matou um homem em um duelo.

O nome do homem não ficou registrado, mas segundo o historiador Riopardense Macedo, era “um provocador contumaz, de porta de venda” (no final da Revolução Farroupilha, também em duelo, mataria seu companheiro Onofre Pires).

O velho Joaquim, nessa época, pensou em fazer o filho assentar praça, mas acabou desistindo. A carreira militar era mesmo a vocação de Bento, mas ela só se manifestaria quando ele tinha 23 anos.

Em 1811, apresenta-se à Companhia de Ordenanças de D. Diogo de Souza, que preparava a invasão da Banda Oriental (Uruguai atual). Dispensado como excedente, seis meses depois, ele adquire uma casa de negócios em Cerro Largo (atual Melo, no Uruguai). Pouco depois, compra uma estância chamada Leonche e se fixa em definitivo na região.

Estância Leonche, em Vergara, Uruguai/foto Cleber Dioni Tentardini
Estância Leonche, em Vergara, Uruguai/foto Cleber Dioni Tentardini

Em 1814, aos 26 anos, casa-se com a uruguaia Cayetana. Nessa época, muitos rio-grandenses se haviam estabelecido na Banda Oriental, já anexada ao Brasil. Alguns tinham aderido ao movimento republicano, inclusive naturalizando-se para melhor participar da luta dos federalistas uruguaios.

Em 1820, ao ar pela região, o botânico francês Augusto de Saint Hilaire escreve sobre “os corpos de voluntários formados no decorrer da guerra atual por um estancieiro chamado Bento Gonçalves”. E registra: “Segundo me relataram, esse homem tinha a princípio reunido sob seu comando uma dúzia de desertores. Em seguida, essa tropa foi reconhecida de utilidade pelos chefes militares e aumentada posteriormente, de um número considerável de voluntários”.

Saint Hilaire se referia a acontecimentos de 1816, quando Bento organizara um pequeno grupo de guerrilha para proteger sua fazenda e a de vizinhos contra o roubo de gado, praticado pelas facções em luta.

Naquele ano, seus homens chegaram a ocupar Cerro Largo. O historiador argentino José Domingo Sarmiento sustentou que o pastoreio no pampa garantia aos estancieiros as mesmas condições dos cidadãos livres de Esparta ou Roma. O gado substituía o escravo, como sustentáculo da vida material, deixando aos proprietários o tempo livre para se dedicar à política ou à guerra, o que frequentemente era a mesma coisa.

A campanha se dividia em comandâncias, de que faziam parte todos os habitantes. As milícias eram tropas ocasionais “surgindo ou se dispersando com a mobilidade indispensável à guerra no pampa”.

O comandante era sempre um estancieiro, “pronto para agrupar a gauchada da zona”. O Estado “recorria aos chefes prestigiosos entregando-lhes os comandos”. Ter propriedade rural, charqueada ou comércio e se dispor a fardar e armar seus guerreiros eram condições indispensáveis para ser um oficial de milícias.

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Espada de Bento | Foto: Tânia Meinerz

Bento, assim como Neto, ascendeu rapidamente nesta “escola de desgraças”, como define Rubem de Barcellos. Aos 29 anos, Bento era major de milícias, amigo dos caudilhos orientais. Muitos deles o visitavam na fazenda Leonche. Seu irmão, Antônio Gonçalves, era amigo pessoal do próprio Artigas.

Mas quando estoura a guerra de libertação da Banda Oriental (hoje Uruguai), em 1825, a casa comercial de Bento é destruída e a fazenda Leonche, saqueada. Ele transfere sua casa para a estância Cristal, em Camaquã, no lado brasileiro.

Em 1833, como comandante da fronteira de Jaguarão, sofre um duro golpe: influenciado por integrantes da Sociedade Militar, o presidente da Província, José Mariani, acusa Bento de conspiração com rebeldes uruguaios para anexar o Rio Grande à Cisplatina. Ao fazer a própria defesa perante o padre Diogo Feijó, ministro da Justiça com poderes excepcionais, Bento não só provou sua inocência como derrubou o acusador. A seguir, indicou o novo presidente da Província, que iria derrubar pouco depois.

Estátua de Bento, de Antonio Caringi
Estátua de Bento, de Antonio Caringi/foto de Luiz Ávila

Braga renovaria a acusação a Bento em abril de 1835, pouco depois de ele haver sido nomeado comandante da Guarda Nacional do Rio Grande do Sul. Na abertura da primavera daquele ano, ele se insurgiu contra o presidente, obrigando-o a fugir. Bento Gonçalves morreu dois anos depois da pacificação, quando ainda era proibido falar em Revolução Farroupilha.

Uma das lendas a seu respeito diz que ele morreu “na miséria”, socorrido pela caridade de amigos. Seu inventário desmente isso, segundo Costa Franco. Ele deixou uma fazenda de mais de uma légua de sesmaria, com 700 cabeças de gado e 33 escravos, totalizando um patrimônio de 57 contos de réis.

A sombra dos Lanceiros Negros 661652

Na madrugada de 14 de novembro de 1844, guerrilheiros comandados pelo ardiloso Francisco Pedro de Abreu, o Chico Moringue, surpreenderam um acampamento farroupilha numa curva do Arroio Porongos, entre Piratini e Bagé.

Deu-se, aí, não apenas um massacre dos soldados rebeldes, mas também o episódio mais polêmico da guerra. O alvo principal do ataque foi o Corpo de Lanceiros Negros, formado por mais de 100 ex-escravos, que foram exterminados. Um detalhe: eles haviam sido desarmados na véspera por seu comandante, o general David Canabarro. Coincidência ou traição?

Os mais respeitados pesquisadores da Revolução, como Moacyr Flores e Riopardense de Macedo, não têm dúvidas de que houve traição, um arranjo entre Canabarro e Caxias para resolver a questão dos escravos, que emperrava o acordo de paz. A dúvida, em todo o caso, persiste, uma vez que o único documento sobre o fato – uma carta de Caxias informando Moringue da combinação – não tem autenticidade comprovada.

O certo é que as contradições da Revolução Farroupilha em relação aos escravos não se esgotam neste episódio de Porongos. Elas estão, inclusive, impressas nas páginas do jornal O Povo, onde artigos de veemente doutrina republicana e libertária estão lado a lado com anúncios de fuga ou de aluguel de escravos.

Bento Gonçalves, Neto e outros chefes tinham escravos e os mantiveram durante a guerra. Segundo Abeillard Barreto, foi com a venda de 17 escravos em Montevidéu que Domingos José de Almeida pôde comprar a tipografia onde era impresso o jornal farrapo.

Parte da confusão deve-se ao fato da Revolução haver mobilizado ex-escravos como soldados, formando os famosos Corpos de Lanceiros Negros. Diz Moacyr Flores:

lanceiro2-1“Os chefes de polícia dos distritos desabafavam que não podiam mais efetuar o recrutamento, porque os homens livres fugiam para o lado legal; então, Bento Gonçalves prometeu liberdade aos escravos que se alistassem nas fileiras rebeldes… O alistamento de ex-cativos deveu-se, igualmente, à necessidade- farroupilha de formar uma infantaria de lanceiros, corpo utilizado com sucesso pelos imperiais. O homem livre sulino considerava indigno lutar a pé. Também era possível a um senhor ou seu filho escaparem do recrutamento mandando no lugar um cativo, que era alforriado para servir como soldado.

Os senhores farroupilhas cobravam pelos serviços prestados por seus cativos à República. Os negros que lutaram nas tropas sulinas jamais o fizeram em igualdade com os homens livres. Seus oficiais sempre foram homens brancos. Nas tropas farroupilhas, negros e brancos marchavam, comiam e dormiam separados.

O Império também libertou cativos para combaterem os farroupilhas e concedia carta de alforria e agem para fora do Rio Grande aos soldados negros que desertassem das fileiras farroupilhas.

Sobre os “legendários Lanceiros Negros”, muito se escreveu e muito pouco se sabe. Segundo Hélio Moro Mariante, a única referência oficial a respeito deles é uma minuta de janeiro de 1844, que fala da regularização do exército farroupilha e menciona “ … o Primeiro Corpo de Lanceiros a a denominar-se Corpo Auxiliar de Lanceiros, integrado pelas praças libertas dos de-mais corpos de cavalaria”.

Tela de Vasco machado
Tela de Vasco Machado

Nem o número certo deles se fica sabendo. Wiederspahn diz vagamente que “eram estes soldados afro-brasileiros do Corpo de Lanceiros e de um Batalhão de Caçadores, unidades cuja criação se deve a uma iniciativa pessoal do então major João Manuel de Lima e Silva. O uniforme desses lanceiros era uma camisa vermelha e calça de brim bege, exaltados por Garibaldi como os melhores e mais destemidos cavalarianos”.

Em 1839, segundo Mário Maestri, dos 4.396 soldados das tropas de primeira linha farroupilha, 952 eram lanceiros negros, organizados em dois corpos. “Com a crescente dificuldade dos farroupilhas de arregimentarem soldados livres, a proporção de ex-escravos deve ter crescido ainda mais.” Outros autores afirmam que teria chegado a 600 o número de cativos engajados nas forças rebeldes. Restariam, quando foi assinada a paz, 200 ou 300. Mais de 100 foram assassinados em Porongos. Um ofício de Caxias, de 5 de março de 1845, sobre as condições da pacificação informa: “Os escravos que eles ainda conservavam armados foram entregues com suas armas e seu número não excede a 120”.

Diz Wiederspahn: “Canabarro acabaria entregando, depois, um contingente de cerca de 120 destes seus soldados ex-escravos, por ele apartados dos demais para serem encaminhados ao Rio de Janeiro, onde deveriam ficar confinados na Fazenda Imperial de Santa Cruz, inicialmente como escravos estatizados, depois alforriados com a condição de que não voltassem ao Sul. Valeu-se de um aviso imperial que prometera liberdade a todos os soldados republicanos ex-escravos que desertassem de suas fileiras e se apresentassem às autoridades imperiais”.

170 anos depois, a polêmica continua acesa

Monumento aos Lanceiros Negros, em Caçapava
Monumento aos Lanceiros Negros, em Caçapava/Divulgação

É ponto pacífico que os esquadrões de lanceiros negros, formados por escravos, foram importantes na Guerra dos Farrapos. Só do lado rebelde houve mais de mil guerreiros, que se engajaram na esperança (e com a promessa) de se tornar livres, mas também do lado imperial se formaram batalhões de escravos. Eles usavam lanças de três metros de comprimento e lutavam a pé ou montados (em pelo, quando havia cavalos). Finda a guerra, ganha pelo Império, poucos lanceiros se tornaram livres – caso dos que foram para o Uruguai sob a chefia do general Neto, que tinha uma fazenda lá. A maioria voltou ao regime escravo, só extinto pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888.

ados mais de 170 anos do fim da Revolução Farroupilha, permanece obscuro e polêmico o último episódio guerreiro, ocorrido no Cerro de Porongos, no atual município de Pinheiro Machado, a 350 km de Porto Alegre, na madrugada de 14 de novembro de 1844, quando já não havia mais combates e estavam todos esperando o fim das conversações de paz. A História o registra ora como “a surpresa de Porongos”, ora como “o massacre” ou “a traição”.

David Canabarro
David Canabarro

Em Porongos se concentrava o exército farrapo, sob o comando do general David Canabarro, que tinha nas redondezas os esquadrões dos generais Neto e João da Silveira. O outro general farrapo, Bento Gonçalves, havia se retirado das lutas depois de ferir mortalmente seu primo Onofre Pires num duelo de espadas. Enquanto isso, a algumas léguas de distância, perto de Bagé, o vitorioso presidente da província, general Luis Alves de Lima e Silva (futuro Duque de Caxias), dava as cartas em nome do governo do Rio de Janeiro.

Em resumo, o Império aceitava indenizar os fazendeiros, charqueadores e comerciantes por prejuízos sofridos durante a guerra, mas se negava a libertar os escravos que haviam lutado sob a promessa de ganhar a liberdade. Mais do que isso, exigia a devolução dos escravos pertencentes a fazendeiros legalistas. Pode então ter sido um negócio, uma troca? Naquele tempo, os escravos valiam dinheiro — cada “peça” custava 150 mil réis em leilões públicos e negociações particulares. Sem eles, os negócios não andavam.

Naquela madrugada de novembro de 1844, o acampamento dos lanceiros negros foi atacado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, posteriormente agraciado com o título de barão. Estava escuro, mas Moringue não errou o bote: tudo indica que ele tinha informações de dentro das forças farrapas. Uma de suas fontes era a mulher conhecida por Papagaia, personagem misteriosa da história, cujo papel nunca foi devidamente estudado. Ela chegara ao acampamento como companheira do enfermeiro João Duarte, mas mantinha encontros noturnos com o general Canabarro, que estava na barraca dela quando Moringue atacou.

Uma centena de lanceiros foi morta, outra centena aprisionada e os restantes fugiram, sem armas nem munição, pois o armamento havia sido recolhido na véspera sob a alegação de que os negros ameaçavam revoltar-se contra a indefinição de sua situação. Dias depois os remanescentes dos lanceiros farrapos foram liquidados numa batalha em Arroio Grande, a poucos quilômetros de Porongos.

Cerro de Porongos/foto de
Cerro de Porongos/foto de Tainã Valadão/ Divulgação

Surpresa ou não, o evento foi esquecido por décadas, até mesmo porque após 1845 a Guerra dos Farrapos se tornara assunto proibido no Brasil. O primeiro a levantar o assunto foi Giuseppe Garibaldi, que havia liderado uma malograda marinha de guerra lançada contra Laguna, SC. Em suas memórias, organizadas pelo escritor francês Alexandre Dumas e publicadas em 1870, o revolucionário italiano elogiou a bravura e a destreza dos lanceiros negros chefiados pelo capitão Teixeira Nunes. “Nunca vi guerreiros mais valentes”, disse Garibaldi. Nem assim o tema prosperou.

O primeiro brasileiro a contar a história da revolução farrapa foi o cearense Tristão de Alencar Araripe, funcionário público no Rio que publicou em livro de 1880 a versão imperial do conflito. Em 1882, veio a resposta escrita por Joaquim Francisco de Assis Brasil, gaúcho de São Gabriel que estudava Direito em São Paulo, onde um grupo de subversivos havia fundado o Clube 20 de Setembro. Montados na data farroupilha, faziam propaganda do sistema republicano de governo.

Empatado o jogo, o assunto ficou em banho-maria até os primeiros anos da República proclamada em 1889. As lembranças sobre a Revolução Farroupilha enalteciam os heróis rebeldes e ignoravam a participação dos escravos, que serviam como vanguarda de batalhas ou davam golpes de mão em acampamentos inimigos. No final do século XIX, a questão dos lanceiros de Porongos estava resumida a duas alternativas contraditórias.

Para uns, em Porongos teria ocorrido uma emboscada imperial que pegou de surpresa um acampamento farrapo já sem disciplina; para outros, houve um massacre traiçoeiro que se consumou graças à ajuda dos chefes da tropa farroupilha. As duas alternativas são verossímeis.

O primeiro estudioso a buscar respostas concretas foi o jornalista-historiador Alfredo Ferreira Rodrigues em seu Almanak Literário e Histórico do Rio Grande do Sul, de 1899 a 1901. Mesmo tendo recebido cartas de ex-combatentes afirmando que Canabarro preparou o terreno para o ataque inimigo, Rodrigues se manteve na defesa do comandante farrapo. Depois, veio uma safra intermitente de livros a favor e contra os heróis farroupilhas:

1933 – Alfredo Varela, que escreveu mais de três mil páginas, deixando Canabarro mal

1935 – Aurelio Porto, que ou alguns anos no Rio pesquisando os documentos oficiais sobre a guerra dos farrapos

1936 – Dante de Laytano, o primeiro estudioso a reconhecer a importância sócio-econômica dos escravos na história rio-grandense

1938 – Tasso Fragoso, o primeiro militar a apresentar uma versão castrense do conflito

1944 – Walter Spalding, que tratou a rebelião como uma epopéia

1955 – Arthur Ferreira, outro historiador que preferiu uma narrativa militar

1961 – Fernando Henrique Cardoso, que estudou a presença dos negros na economia sulina

1975 – Claudio Moreira Bento, especialista em história militar, enalteceu os lanceiros negros

1978 em diante – Moacyr Flores, professor que estudou a fundo a revolução, tendo publicado mais de 20 livros, concluindo que houve uma trama para por fim ao conflito

1979 – Spencer Leitman, americano que estudou profundamente a presença dos negros na história

1981 – Henrique Wiederspahn, outro historiador militar

1984 – Tau Golin, historiador que abriu polêmica ao chamar Bento Gonçalves de herói-ladrão

1993 – Mario Maestri, historiador que dissecou a escravidão no Rio Grande do Sul

SÉCULO XXI

Ao longo do século XX, saíram outros livros sobre a revolta rio-grandense, mas as referências aos lanceiros eram quase sempre fragmentárias. A situação só mudou a partir de 2001, quando membros do Movimento Consciência Negra começaram a chamar a atenção para o silêncio em torno de Porongos. Para resumir a história, no século XXI foram publicados três livros de características distintas. O primeiro, lançado em 2005, expõe o assunto e não toma partido: os outros dois sustentam opiniões contrárias, mantendo acesa a polêmica secular.

“Lanceiros Negros” (JÁ Editores, 2006, 2ª ed., 140 pg.), dos jornalistas Geraldo Hasse e Guilherme Kolling, reconta a guerra e resgata a participação dos lanceiros, cuja memória ou a ser intensamente recuperada a partir de 2001.

“História Regional da Infâmia” (L&PM, 2010, com 342 pg), de jornalista e historiador Juremir Machado da Silva, faz uma revisão completa da polêmica antes de concluir que os lanceiros foram vítimas de uma traição armada por David Canabarro em conluio com Caxias.

“O Ataque de Porongos e os 170 anos de uma Farsa Intermitente” (Edigal, 2014, 70 pg), de Cesar Pires Machado, argumenta que o ataque de Porongos foi uma operação militar planejada por Caxias e executada por Moringue; e que as acusações desairosas contra Canabarro foram parte de um plano menor para terminar de desmoralizar os farrapos, que já estavam bastante divididos.

Um país com hino, bandeira e brasão 6bi6m

A maioria dos historiadores aceita o critério de Tristão de Alencar Araripe, funcionário do Império que escreveu a primeira história completa da revolução, em 1881. Araripe era contra os farrapos, mas seu livro A Guerra Civil no Rio Grande do Sul é considerado uma obra clássica sobre o assunto, apesar das ressalvas que fazem a ele muitos autores gaúchos.

Araripe divide a revolução em três fases: a sedição, que vai do 20 de setembro de 1835 até setembro de 1836, quando é proclamada a República Rio-grandense; a rebelião, que vai daí até 1843; e a reintegração com o acordo da paz, em 1845.

No período que se estende de 1836 a 1845, quase nove anos, o Rio Grande do Sul se constituiu em um país à parte do Brasil. Araripe chamou de República de Piratini, com um sentido pejorativo, de republiqueta, e afirma que houve apenas uma mudança de nome, império por república, e do imperador pelo presidente, já que as leis e a estrutura istrativa seguiam sendo basicamente as mesmas do Império. Disse ainda que foi “um regime militar”, pois o presidente Bento Gonçalves tinha poderes discricionários, nunca houve consultas para eleger seus magistrados, e a constituinte, que daria novas leis ao país, não chegou a ser votada, já no ocaso do movimento. A verdade é que foi um regime em permanente estado de guerra.

É preciso considerar também que os liberais daquela época não eram democratas, no conceito que se usa hoje. Eles não reconheciam no homem comum a capacidade para selecionar os dirigentes. Muitos autores, como Dante de Laytano, procurando minimizar o caráter separatista que a revolução assumiu a partir de 1836, dizem que a república foi “um afastamento provisório”, um meio para alcançar a federação brasileira mais adiante.

Moacyr Flores é mais enfático: “Os farroupilhas criaram de fato um Estado separado e independente do Brasil, pois tinham bandeira, dinheiro, projeto de constituição, leis e governos próprios.

Projeto Constituição
Projeto Constituição

Em seus jornais, as notícias sobre o Brasil apareciam na coluna denominada Exterior e os brasileiros eram considerados como estrangeiros”.

Este país, porém, não conseguiu ser reconhecido por nenhuma outra nação estrangeira – embora houvesse recebido apoios dos governos uruguaio e argentino, inclinados a uma federação platina. Entretanto, Bento Gonçalves, quando esteve em Paisandu, no Uruguai, recebeu honras de presidente de Estado, o que provocou reclamações do governo imperial ante o presidente uruguaio, Fructuoso Rivera.

Lenço farroupilha, de padrão diferente, no acervo da Biblioteca de Pelotas
Lenço farroupilha, de padrão diferente, no acervo da Biblioteca de Pelotas

O silêncio de quase meio século imposto à memória da revolução trouxe dificuldades para o entendimento até de coisas mais simples, como é o caso dos símbolos da República Rio-grandense.

Segundo Walter Spalding, as palavras Liberdade, Igualdade, Humanidade, inscritas no brasão da República Rio-grandense, não faziam parte do desenho original, “que deve ter sido criado logo após a bandeira em novembro de 1836”. As palavras foram, no entanto, oficializadas em 1891, pelos republicanos positivistas de Júlio de Castilhos.

A bandeira criada por decreto de Domingos José de Almeida deveria ter um triângulo isósceles na parte superior, outro igual e simetricamente disposto na parte inferior e uma faixa no centro, separando os dois triângulos.

“No entanto, esse decreto foi mal interpretado e as bandeiras começaram a surgir de todos os feitios. Encontramos hoje mais de uma dezena de bandeiras rio-grandenses diferentes”, escreveu Spalding, que chegou a entregar um estudo à Assembleia Legislativa para a uniformização da bandeira que mais tarde se tornou a bandeira oficial do Rio Grande do Sul. Também não é isento de controvérsias o hino da República.

Hino Rio-grandense
Hino Rio-grandense

O hino foi composto dois anos depois da proclamação, em abril de 1838, quando os farrapos tomaram a cidade de Rio Pardo e aprisionaram a banda de música, cujo maestro era o célebre músico Joaquim José Mendanha, “figura bastante popular na província”.

Segundo Spalding, o maestro simplesmente adaptou o trecho de uma valsa de Strauss e pôs o ritmo de marcha. O jornalista e crítico musical Ênio Squeff acha pouco provável: “O que sei é que o Mendanha não compôs uma peça original para o hino. Utilizou uma composição de sua autoria, não um trecho de Strauss”. Também a letra teve várias versões. Hoje é o hino oficial do Rio Grande do Sul.

Guerrilha no Pampa

No auge da revolução, os farroupilhas chegaram a ter dez mil homens em armas

Coleção Farrapos/Acervo Familia Lutzenberger
Coleção Farrapos/Acervo Familia Lutzenberger

As informações sobre os efetivos militares que tomaram parte na Revolução Farroupilha são precárias e geram controvérsia entre historiadores.

“No ano de 1835, ao eclodir o movimento revolucionário, o Rio Grande do Sul contava com cerca de dois mil homens em armas, somando-se os integrantes das unidades que compunham as 1ª e 2ª linhas”, registra Hélio Moro Mariante, que dedica um capítulo de seu livro “Guerra à Gaúcha” a essa questão. Segundo ele, apesar de toda a agitação política que se avolumava, “o Império descuidou-se de guarnecer militarmente o Rio Grande do Sul”. A guarnição militar de Porto Alegre, onde havia uns 12 mil habitantes, soma 270 homens. No interior, as principais unidades militares estão nas mãos dos rebeldes ou a eles se incorporam logo no início.

Vista do Guaíba a partir da Praça do Portão, atual Conde de Porto Alegre
Vista do Guaíba a partir da Praça do Portão, atual Conde de Porto Alegre

Quando se iniciou o movimento, os farroupilhas não tinham mais do que 400 homens em Porto Alegre. “Seriam entre 200 e 400 os homens reunidos no acampamento da Azenha e que penetraram na capital no 20 de setembro”, diz Mariante.

No momento da proclamação da República Rio-grandense, em setembro de 1836, o exército farroupilha contava com cerca de 1.700 homens. No ano seguinte, o marechal Elizeário de Miranda Brito informou ao governo imperial que os rebeldes perfaziam “um complexo de 3.000 combatentes”.

Em 1839, segundo Hélio Mariante, os republicanos chegaram ao seu melhor estágio em organização e ao seu maior efetivo, somando “quase dez mil homens em armas”. Quando terminou a guerra, o exército farroupilha tinha pouco mais de mil combatentes.

O exército imperial combateu com 8 mil homens em 1837 e, em 1843, na ofensiva final, chegou a 11.387 combatentes no Rio Grande do Sul. O efetivo militar do Império em todo o país era de 19.853 homens, o que significava que dois terços das forças armadas brasileiras estavam concentradas no Rio Grande do Sul, nos últimos anos da guerra.

Moacyr Flores: “Não foi o Rio Grande que se levantou contra o Império” 3n4d2v

Cleber Dioni Tentardini

Moacyr Flores ainda conserva a máquina de escrever em que compôs “O modelo político dos Farrapos” seu primeiro livro sobre a Revolução Farroupilha, resultado de sua dissertação de mestrado em História. No quase meio século transcorrido desde então, ele trocou a velha Lettera 22 por um computador, mas não se afastou do tema e é hoje uma fonte inevitável quando se quer abordar a questão farroupilha, que ainda levanta muitas perguntas sem resposta. Ele recebeu o JÁ em sua casa no dia 22 de julho para uma entrevista exclusiva para esta edição.

JÁ – Quais eram as motivações, o pensamento político que animava a Revolução Farroupilha?

Moacyr Flores – Eu pesquiso desde a década de 60, mas minha dissertação de mestrado, em 1978 foi que deu origem a um livro. Ali eu estudei o liberalismo. O que os farroupilhas discutiam antes da revolução, fanaticamente, violentamente, era o liberalismo. Uma ideia de liberdade, mas em um sistema excludente. Porque só tinha liberdade, direitos, quem era proprietário, quem não tinha propriedade era um cidadão de segunda classe, não podia votar nem ser votado. No fim do Império, havia 84% de analfabetos em todo o Brasil. Os letrados é que decidiam. Os jornais eram políticos e dirigidos aos 16% de letrados.

Por isso, dizer que o Rio Grande do Sul se levantou contra o império é uma falácia. Quem se levantou foi um grupo de intelectuais e militares, que fizeram a revolução. Havia estancieiros, charqueadores. O Bento Gonçalves era um militar, coronel e comandante de uma divisão da Guarda Nacional em Jaguarão. Domingos José de Almeida era major da Guarda Nacional.

O que lhe chamou atenção para pesquisar sobre esse tema?

flores-olho1Eu fui aluno do professor Dante de Laytano e entrei na PUC como auxiliar dele. A sua contribuição com a história do Rio Grande do Sul é fantástica, e o pessoal não tem valorizado. Eu aprendi muito com ele, fora da sala de aula também. Eu tinha pensado em fazer a dissertação sobre a política da Carlota Joaquina, mas fui ver o arquivo dela que está em Petrópolis e me apavorei de tantos documentos. E teria que viajar para Inglaterra, eu como professor não teria como. Aí pensei na Revolução Farroupilha, todos os intelectuais haviam escrito alguma coisa, mas fui ver a documentação e me encantei. E ninguém havia feito uma abordagem sobre a estrutura política da República Rio-grandense. Falavam das batalhas, dos personagens. Bom, então eu tive que estudar o que era o liberalismo da época, que não tem nada a ver com o de hoje. Porque não existiam partidos mas grupos políticos que estavam em torno de um militar. Li os seis volumes da coleção Varela, ei por todos os documentos, li os jornais da época. Minhas férias eram dentro dos arquivos. Fomos a Biblioteca de Rio Grande, que eu considero a melhor sobre livros antigos, a Biblioteca de Pelotas, vi a documentação de Assis Brasil e fui a Piratini, evidentemente, onde fiquei hospedado num quarto que havia no próprio museu histórico. E não dormi porque fiquei lendo a documentação. Minha dissertação ficou com 220 páginas, escrita numa máquina de escrever que ainda guardo. “Ideias políticas da Revolução Farroupilha”. Depois, lancei o livro com novo título: “Modelo Político dos Farrapos”. Dos 22 livros que lancei, sete foram sobre os Farrapos, e esse eu considero o melhor por ter feito uma abordagem inédita. Eu queria descobrir qual era o pensamento político na época. Era um verdadeiro caos porque as ideias eram importadas da Europa e mal interpretadas. Como era um grupo pequeno de intelectuais que escreviam nesses jornais, eles manipulavam as ideias e se apresentavam ao povo como verdadeiros salvadores.

Quem era o povo, nessa época? Os escravos?

Em 1835, por aí, havia 170 mil habitantes em toda a província do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, todo o território do município que ia de Viamão a Triunfo, havia 14 mil moradores. A cidade de Porto Alegre, tinha cerca de dois mil habitantes. Era um núcleo pequeno. A maioria das pessoas se conhecia. A Santa Casa ficava fora da cidade. Por isso conseguiram fazer uma revolução a cavalo. Porque o Rio Grande do Sul era um ermo. A Província era despovoada. O maior núcleo era Rio Pardo, que tinha uns três mil moradores, a cidade era maior que Porto Alegre. É que Rio Pardo abrangia quase a metade da província. Dali saíram Bagé, Alegrete, Rosário…

A economia estava nas chácaras, que produziam mais do que as grandes fazendas de criação e alimentavam os habitantes. As chácaras vendiam leite, frutas verduras, ovos, porcos, galinhas. Era a fonte de água também. As fazendas de criação mandavam gado para as charqueadas do Uruguai porque não pagavam imposto. Se enviassem para Pelotas, por exemplo, tinha que pagar. Outra questão é que os fazendeiros não gastavam o dinheiro aqui, compravam móveis em Montevidéu, as mulheres compravam vestidos na França.

E o trabalho de doutorado seguiu nessa linha.

Aí eu fui pesquisar o modelo social e o modelo econômico dos Farrapos. Abordei a organização da sociedade, a família, as instituições, o papel da Igreja, fundamental, apesar de ser pouca, aqui não havia seminários, local onde o pobre se alfabetizava. O seminário era proibido aqui porque os jovens tinham que ir para o Exército a fim de defender as fronteiras.

A maior parte dos escravos trabalhavam nas charqueadas?

Os escravos representam 40% dos habitantes da província. Eram comprados ainda meninos por comerciantes no Rio de Janeiro e revendidos aqui. Com 14 anos esses escravos já realizavam todas as tarefas de um adulto podendo inclusive ser convocados para a guerra. E a menina, dos 12 aos 15 aos, era a idade do casamento. Fiz esse estudo social com a população de Caçapava como mostra da Campanha, porque foi lá que os Farrapos sustentaram a guerra. Então levantei a constituição da família, do estancieiro, a sua relação com os escravos, com os peões. Havia capataz que tinha família e seus escravos. Havia peões índios, que não podiam ser escravizados por lei.

Quais são os livros básicos sobre os Farrapos?

flores-olho2O Assis Brasil foi o primeiro gaúcho a escrever – A República Rio-Grandense -, e ele me deu uma pista quando disse que a revolução não foi um movimento democrático, mas liberal. Só que ele não explicou o que era o liberalismo da época. Esse livro parou no primeiro volume. Eu considerei quatro livros fundamentais: do Assis Brasil, do Alfredo Varela, embora não concorde com a tese dele, do Araripe, que traz a visão do Império, e do Aurélio Porto. O Araripe sustentou que nunca houve tratado de paz, mas pedido de anistia, e eu encontrei no Arquivo Histórico esse pedido de anistia, que já vinha pronto, faltando só o oficial colocar o seu nome.

Não houve um documento assinado pelos pelas duas partes?

Não, porque o Império nunca reconheceu como nação. O Paraguai mandou embora o embaixador da República Rio-Grandense para não ter que prendê-lo a pedido do Império brasileiro. Foram feitos seis tratados, quatro com o Uruguai, um com a Província de Corrientes, que era separada da Argentina, e outra com Buenos Aires. A Rio-Grandense foi a primeira república organizada no Brasil, que funcionou, com ministérios, secretarias, com serviços de polícia, correios – em Pernambuco houve um movimento republicano que não chegou a instalar uma república. Isso é um fator importante porque a Rio-grandense facilitou depois o golpe de 15 de novembro de 1889. Não houve reação do Rio Grande do Sul porque existia aqui um ideal republicano, que já havia pelo mundo. E, ao contrário do que se pensa, não houve influência da Revolução sa. A Constituição da República Rio-Grandense é baseada na Constituição dos Estados Unidos. E da Constituição espanhola.

Havia um clima de insatisfação geral…

Desde de 1828. O jornal O Recopilador Liberal já fala que se trama uma revolução republicana. O grupo Farroupilha foi fundado em 1832. Mas já tinha um movimento entre intelectuais que defendia uma república independente. A ideia do quadrilátero de José Artigas, que envolvia o Uruguai, Rio Grande do Sul, Entre Rios e Corrientes. E isso voltou em 35.

O Bento Gonçalves estava nesse grupo republicano?

Acontece que a família do Bento Gonçalves detinha postos chaves na província, o pai dele era tesoureiro geral do Rio Grande do Sul, os irmãos eram comandantes da Guarda Nacional, todos estancieiros. Então a família dele dominava desde Torres até a região de Melo, no Uruguai. Os parentes, tios, primos, todos ocupando posições. Aí os liberais caem do poder lá no Governo Federal, e o Fernandes Braga assume aqui, por indicação do próprio Bento, mas a para o lado dos conservadores, convencido pelo irmão, Pedro Chaves. Com a morte do pai do Bento, a família perde o poder. Bento Gonçalves é enviado para o comando da fronteira de Jaguarão, longe do poder de Porto Alegre.

Bento tinha muita ligação com os uruguaios, morou lá, casou…

Sim, inclusive foi alcaide em Melo. O sogro dele foi o maior contrabandista de gado do Uruguai. Bento era de família riquíssima, poderosa, mas que em dado momento, o novo presidente Fernandes Braga que era liberal republicano muda de partido e a para os conservadores. Bento e seus parentes e amigos perdem o poder.

Quando tomam o poder, os revolucionários pensam separar o Rio Grande?

Não, aí o 20 de setembro é um saco de gatos. Havia os descontentes com uma gama imensa de coisas e o Bento Gonçalves declarava fidelidade ao Império para unir todos esses descontentes. Havia os que queriam a separação, outros a República, mas outros queriam somente a troca dos postos de comando da Província. A comunicação com o Rio de Janeiro era muito difícil. Era mais fácil com Montevidéu. E havia uma centralização muito forte do poder no Rio de Janeiro, como hoje há em Brasília. Um país supercentralizado. E muita gente queria uma federalização, à semelhança dos Estados Unidos. Leis regionais. Tinha jornal que dizia que a lei que vale em Pernambuco não poderia valer no Rio Grande.

O que levou Neto a proclamar a República Rio-Grandense?

Porque ele era um republicano, com ideais. Mas nunca foi abolicionista. Ele tinha fazenda no Uruguai, no Quequay. O pai do Carlos Gardel foi lugar-tenente do Neto. Então ele traz vários uruguaios em sua tropa para lutar nos Farrapos. Inclusive ele tinha filhos escravos, das mulheres negras. Ele nunca foi abolicionista. Há uma carta de um filho dele, Moisés, pedindo a liberdade porque lutou e o seu pai, Neto, iria manter ele escravo. Essa era a base de poder deles. Possuíam exércitos particulares. E, por isso, a dificuldade de vencer os Farrapos, porque eles possuíam comandantes separados, cada um com seu exército, e Bento como um comandante geral.

O Bento não foi pego de surpresa com a proclamação do Neto?

Não, Bento sabia. Só que ele estava aqui naquele morro da Cruz, em Viamão, próximo a Porto Alegre nas mãos imperiais. E o Neto estava na região da Campanha, onde os farrapos tinham mais força. Então Neto fez a proclamação para manter viva a ideia da revolução, que era uma república. O problema é que havia a turma que queria a federalização, mas com o Império, e estava se retirando do combate porque estavam satisfeitos com a demissão do Braga e posse do novo presidente Araújo Ribeiro, primo do Bento Gonçalves. Então aquela proclamação da república era para levantar uma nova bandeira. E trazer para perto dele, Neto, maior apoio, porque o pessoal de Piratini e Canguçu não queriam o Neto. Estavam caindo fora da revolução. E o Lucas de Oliveira alertou o Neto de que a república iria mobilizar as forças novamente.

Quem era o grande general?

O grande estrategista foi o Bento Manoel Ribeiro. O Bento Gonçalves era comandante de guerrilha, como o Moringue, que montou um exército ali na região em que Bento tinha a estância, em Camaquã.

A Constituição da República Riograndense ficou no projeto…

Demorou bastante, e mesmo assim ficou só no projeto.

Quem elaborou?

Os que haviam sido eleitos deputados. Foi assinado em 3 de fevereiro de 1843 por Domingos José de Almeida, José Pinheiro de Ulhoa Cintra, Francisco de Sá Brito, José Mariano de Matos, Serafim dos Anjos França. O projeto foi impresso para ser discutido, mas não chegou, e nem votado.

Não deu tempo?

É que o Bento Gonçalves não quis perder seus poderes. Aí ele se desentende com seu primo Onofre, que lidera a oposição ao Bento. Nessa época foi morto Paulino da Fontoura. Ele voltava para sua casa, na rua da Igreja, em Alegrete, e foi atacado a espada e tiro. Seus escravos anda tentaram o salvar. Dizem que foi a mando do Bento, se não foi, sua morte favoreceria muito o Bento.

Isso, um pouco antes dos primos duelarem?

Sim, mas eles não brigaram por causa de mulher coisíssima nenhuma. Foi porque Bento não queria perder seus poderes discricionários. Ele, inclusive, manda que o projeto da Constituição seja submetido a ele antes que fosse levado à votação na Assembleia, em Alegrete, em 1843. A questão é que o projeto da Constituição reproduzia a ideia da república federativa, o modelo de Constituição dos Estados Unidos, e a ideia do liberalismo, com um Legislativo forte. É o sistema parlamentar. Isso vem do pensador inglês John Locke.

flores-olho3Bento era muito autoritário?

Sim, um ditador. E sua família uma das mais poderosas da província. Seu irmão, Roberto, era o padre lá naquela região de São Lourenço. Ninguém escreveu uma biografia do Bento, apenas glorificaram ele.

Ele ficou órfão de mãe muito cedo.

Isso era um problema na época. As mulheres morriam de parto. Havia o costume de não poderem se lavar durante 30 dias após o parto, inclusive o recém-nascido. Daí o tal mal de sete dias, que é a infecção umbilical. Costume medieval.

Havia pontos polêmicos no projeto da Constituição dos Farrapos?

Todos. Começa que o Artigo 1º – “República do Rio Grande é associação política de todos os cidadãos rio-grandenses.” O problema é que os cidadãos eram os proprietários, a minoria, portanto.

Era abolicionista, pelo menos?

Não, a República Rio-Grandense era escravocrata. E, em nenhum momento do texto do projeto é mencionada a questão dos negros ou escravos. A base se espelha com a constituição do Império, com as modificações republicanas, claro. Por exemplo, o Artigo 6º – “São cidadãos Rio-Grandenses todos os homens livres nascidos no território da República…”. Se consta a expressão homens livres é porque existem nessa república homens que não são livres.

E as mulheres nessa nova República?

Não tinham direito algum. Eu não invento nada. Minhas fontes são os jornais da época. Inovaram no sentido de fazer uma federação. Como eles não conseguiram fazer a federação no Império, tentaram a separação. Antes, como hoje, as decisões do governo eram muito centralizadas. Não se faz nada se não tiver o beneplácito lá do centro. Hoje, lá de Brasília. O que está errado se levar em conta o tamanho do Brasil. Nós não somos uma federação, embora carregue o nome de república federativa.

Bom, depois do tratado de paz, os chefes revolucionários ainda conseguiram assumir seus postos de oficiais.‘

Não houve um tratado de paz, mas um acordo, com pedidos de anistia que deveriam ser assinados pelos líderes Farrapos. Em dezembro de 1844, o Caxias recebeu ordens do ministro da Guerra para conceder as anistias, que já veio impressa. Era a única forma de acabar com a guerra e Caxias percebeu isso logo depois da traição em Porongos.

David Canabarro traiu os negros, afinal de contas?

Caxias tinha ordens de não dar liberdade aos escravos que estavam lutando. Então, ele combinou com o Canabarro, comandante do Exército da República Rio-grandense, e o único general ali no acampamento porque o Bento já havia se recolhido para sua estância, e o Neto, que estava no acampamento, se retirou com seu exército para o Uruguai, antes do ataque.

Uma combinação para por fim à guerra.

Na realidade, o acordo para por fim a guerra foi em 1843, pouco antes do combate do Ponche Verde, onde os Farrapos deveriam ser derrotados e, então, seria concedida a anistia aos oficiais. Mas a combinação não deu certo, porque os Farrapos estavam em bom número e melhor posicionados, então sustentaram a luta. À noite, ambas as forças se retiraram da batalha. Em Porongos, Canabarro mandou retirar à noite as pedras de pederneiras dos fuzis da infantaria, formada por negros. Mais de cem foram mortos. Não foram lanceiros os mortos ali. Os lanceiros negros foram traídos também, mas quando foram entregues aos imperiais depois da guerra, lá na fazenda dos Cunhas, onde os farrapos entregam todo o armamento.

E a carta não foi falsificada por Moringue?

O Francisco de Abreu atacou apenas um dos três acampamentos, deixando o dos brancos e dos índios fugirem, pois conforme ordens de Caxias, eles poderiam ser úteis mais tarde. Canabarro fugiu, deixando para trás sua carretilha com todo o arquivo, mas que foi devolvido a ele.

Por que isso foi uma condicionante para a paz?

Esse acordo imposto pelo Império e por Caxias não agradou Bento nem Neto, que saíram. Canabarro ficou com 800 homens, contra 12 mil do Império. O que lhe restava?

E a carta que é atribuída a Moringue, professor?

É do Caxias mesmo. A correspondência era manuscrita. O Caxias pode ter feito um rascunho, chamado borrador, e seu secretário, que era um sobrinho, ou a limpo. Fizeram uma cópia para deixar no arquivo do Caxias, escrito no alto da folha a palavra cópia, e enviaram a original para o Moringue. Eu esmiucei isso aí. Essa cópia foi escrita em livro, não foram folhas avulsas. E há uma sequência, uma ordem no livro, não tem como embutir no meio das outras. O Caldeira, que era comandante dos lanceiros negros, sustentou que houve a traição do Canabarro. O Domingos José de Almeida confirma que esteve com o Moringue e este lhe mostrou a carta original do Caxias.

Com a paz e a anistia, veio o silêncio sobre os Farrapos.

Imposto pelo Império.

Os jornais foram calados. Nem a morte do Bento Gonçalves foi registrada, só uma notinha em um jornal de Pelotas.

A nota e um pequeno poema, publicado em um ou dois exemplares adiante. Só bem mais tarde, o Apolinário Porto Alegre é quem vai resgatar os Farrapos. Ele iniciou um movimento de libertação de escravos e um movimento republicano. Ele e o irmão, Aquiles, fundaram o primeiro clube republicano do Rio Grande do Sul, com o nome de Bento Gonçalves. E, mais tarde, é que o Júlio de Castilhos, acho que o pior ditador que já tivemos, vai dominar o Partido Republicano Rio-grandense e afastar o Apolinário do movimento.

Assim renasceram os Farrapos.

Visando o movimento republicano. E isso veio de encontro ao ideal de August Comte que defendia pequenas repúblicas, reunidas em uma federação. Só que, no final do século, o Partido Liberal, que depois se transforma no Partido Federalista, reivindicou a herança dos Farrapos, por ter sido um movimento revolucionário que queria a federação. Esses dois partidos se enfrentam em 93.

A Revolução Federalista.

Nesse momento, Castilhos acha que o Rio Grande do Sul é um país à parte. Os republicanos que vão lutar contra os estrangeiros, os maragatos, que eram gaúchos também. E vem daí essa coisa do gaúcho se dizer um povo diferente, essa dicotomia entre o bem e o mal que até hoje só trouxe prejuízo à população. Porque se tu não é do meu time ou do meu partido, não é necessariamente meu inimigo.

E a fusão da cultura gaúcha com a saga farroupilha?

Aí é João Cezimbra Jaques. A Revolução se tornou símbolo do Rio Grande do Sul. E como símbolo, ela foi mitificada. O tradicionalismo. Daí a dificuldade até hoje de se tratar de algumas questões. Mudaram até o sentido da palavra gaúcho. Porque, antes, eram os rio-grandenses. Gaúcho era um bandido. Os jornais que defendiam o Império dos farroupilhas usavam gaúcho para ofender alguém. O significado da palavra gaúcho, na sua origem, é de um marginalizado, cachorro sem dono, como disse um colunista da época. Para mim, vem do francês gauche, a margem esquerda do rio Sena, onde moravam os artistas, os marginais. Do italiano sinistra, do latim, sinistru, esquerdo, assustador, desajeitado. Foi adaptado para o espanhol, então ficou gaucho, e aportuguesado para gaúcho, com o novo sentido, de um povo independente, corajoso, que já se separou do Brasil. E a nossa constituição estadual de 1891 determina que a bandeira do Rio Grande do Sul seja a usada pela República Rio-grandense.

flores-olho4Sim, aí entra também o hino.

Não, o atual hino não tem nada a ver com o que o maestro Mendanha compôs a mando dos Farrapos e tocado em Caçapava, nova capital, no baile de aniversário de um ano da vitória na batalha de Rio Pardo. Nem a letra, nem a música. A edição de O Povo, de 4 de maio de 1839, traz a letra. A música provavelmente o Mendanha rasgou a partitura porque ele era imperial. Quando foi libertado, vem para Porto Alegre, para o coral da Cúria Metropolitana. E é ele quem inaugura o teatro São Pedro com música.

E a influência da Maçonaria na República Rio-grandense?

Conversa. Todos oficiais do lado dos republicanos e dos imperiais eram maçons.

Mas há símbolos maçônicos no Brasão.

Isso sim. É do Bernardo Pires, estancieiro e chefe de Polícia de Piratini e maçon.

Mas há uma ata, do gabinete de leitura Continentino, assinado pelos revolucionários no dia 19 de setembro de 1835…

É falsa. Foi feita bem depois. Certa vez o coronel Caminha, do Exército, me enviou uma cópia dessa ata. Há cinco palavras ali que não eram empregadas na época. Por exemplo, o sistema imperialista. Essa expressão não era usada. Outra vez fui fazer uma palestra e um maçon me confessou que um companheiro dele da loja foi quem escreveu aquela ata.

Com tudo isso, ainda há pesquisas a serem feitas sobre a Revolução Farroupilha?

Sim, toda documentação que está lá no Arquivo Nacional. Eu abri alguns documentos e descobri, por exemplo, que o Araújo Ribeiro, presidente da Província a partir de 36, era primo do Bento Gonçalves. O Corte Real foi morto por um primo. As pessoas se conheciam e quem não era parente era compadre.

Há um quadro de autor desconhecido no Museu Julio de Castilhos que seria o mais fiel retrato do Bento. Há outros que são do Guilherme Litram.

O Litram é do tempo do Borges de Medeiros, então não conheceu o Bento. O mais fiel é um retrato falado, uma descrição do rosto do Bento feita pelo seu filho, após a morte do pai.

O general que gostava de bailes e parelheiros 136c16

O enigma do arroio Seival

As razões que levaram Antônio de Souza Netto a declarar o Rio Grande do Sul uma república independente do Brasil ainda provocam muita discussão.

Henrique Wiederspahn diz que “levantar a bandeira da República foi o único meio que os farroupilhas encontraram para dar alento à Revolução, depois de uma seqüência de insucessos”.

Outros autores consideram o gesto de Netto uma reação à “falta de garantias aos farroupilhas”, depois do episódio de Fanfa, quando não foi cumprido o acordo para rendição e Bento foi mandado para a Fortaleza de Santa Cruz. “Não notaram – diz Moacyr Flores – que a proclamação da República foi antes do combate do Fanfa.”

A proclamação foi em 11 de setembro de 1836.

A revolução ia completar um ano. Bento Gonçalves “assediava Porto Alegre com 900 homens”, tentando recuperar a capital que havia sido retomada pelo Império. Desistiu e iniciou a retirada na noite de 18 de setembro.

Quando tentava atravessar o rio Jacui, ficou cercado na ilha do Fanfa e teve que se entregar, foi preso no dia 4 de outubro.

“Netto, portanto, proclamou a separação da província no momento em que as armas revolucionárias eram vitoriosas e Bento Gonçalves teve sete dias, tempo mais do que suficiente, para receber um mensageiro.”

Flores conclui que Bento se deslocou de Porto Alegre para o interior exatamente para unir suas forças com as de Antônio de Souza Netto, “por causa da proclamação da República, longe de seus olhos e ordens”.

A derrota em Fanfa, neste caso, seria conseqüência e não causa da proclamação. Com isso, fica no ar a pergunta: “por que, então, Netto, amigo íntimo e leal a Bento Gonçalves, deu o golpe republicano, sem consultá‑lo?”

1409-arroio2Na versão mais aceita, Netto teria relutado, alegando que era Bento quem comandava, mas foi convencido por Joaquim Pedro Soares e Lucas de Oliveira, emissários dos exaltados. “Na correspondência de Antônio de Souza Netto, não encontramos nenhuma referência sobre ideologia ou justificativa de seu ato. Seus ofícios e cartas relatam combates, solicitam armas e munições, pedem armamento, numa impressionante rotina militar”, constata Moacyr Flores.

Terras e parelheiros

Antonio de Souza Neto é um produto típico da cultura pastoril rio-grandense. Sua família tem origem no cruzamento de duas correntes da colonização do Rio Grande do Sul, ao tempo em que “a terra indivisa era retaliada em propriedades de léguas de extensão”.

Da Colônia do Sacramento veio a familia do pai. O coronel Francisco de Souza Soares, seu bisavô, estava entre os que se mudaram para Rio Grande quando Portugal entregou a Colônia aos espanhóis, em troca das Missões, em 1777.

16-general-netoA família da mãe veio de São Paulo. Descendia de Amador Bueno, “o paulista que não quis ser rei”. Estabeleceram-se em Vacaria, inicialmente. Consta que de lá saíram porque a estância foi atacada por índios. O historiador Paulo Xavier garante que foi apenas questão de negócio: cada hectare vendido em Vacaria permitia comprar dez hectares nas novas fronteiras do extremo sul.

Certo é que Salvador Bueno da Fonseca transferiu-se com os seus para os novos territórios que se abriam à ocupação portuguesa na região de Piratini. Teve dissabores no início, suas terras foram desapropriadas. Mudou-se, então, para Rio Grande.

Teotônia, uma de suas filhas seria a mãe do general Neto. Ela casou com José, neto do coronel Francisco de Souza Soares e que, por isso, desde mocinho nas carreiras de cancha reta, era chamado “Neto”. O casal teve onze filhos. Antonio, o último, nascido em maio de 1803, viria a ser o general Antonio de Souza Neto.

Cresceu numa estância. Morava na “várzea, à margem direita do São Gonçalo. Ia a cavalo até o o dos Negros, atravessava o rio numa canoa para ir à escola na Freguesia de São Francisco de Paula, povoação que deu origem à cidade de Pelotas. O historiador Paulo Xavier registra que “Neto viveu na estância paterna até os 25 anos de idade”.

José Neto, o pai, lutou nas primeiras guerras da Cisplatina. Pediu terras ao imperador como compensação pelos 25 anos de serviços. Seu comandante abonou o pedido. Pouco depois a família transferiu-se a para os campos do Piraí, hoje município de Bagé.

Desde moço, Antonio Neto, comprava e vendia gado em toda a região, “entrava constantemente em território uruguaio, levando e trazendo tropas”. Figura romântica, cavaleiro habilíssimo, tinha predileção por corridas de cavalo (tinha o melhor plantel de parelheiros da província) e um gosto especial por bailes. “Era boa pinta e um grande partido, disputado pelas moças”, registra Moreira Bento.

netto-olho1Em duas cartas, que a família ainda guarda, ele fala em bailes e de umas “bordonas” para a guitarra. As cartas são de 1859 , quando ele já tinha 56 anos.

“Bento Gonçalves e Antonio Neto tiveram renome como dançarinos exímios. Neto galanteador de estirpe não perdia festas. E de Bento Gonçalves murmuram as críticas que ele banalizava as funções de presidente enquanto bailarico ou arrasta-pé se apresentasse”, diz Lindolfo Collor.

Neto, ao que consta, superava Bento num quesito decisivo para um lidador pampeano – o cavalo. “Bento Gonçalves…perfeito centauro, manejando o cavalo como só o vi fazer o general Neto, modelo consumado de cavaleiro”, diz Garibaldi em suas memórias.

Sarmiento sustentou que o pastoreio no pampa garantia as mesmas condições dos cidadãos livres de Esparta ou Roma. O gado fazia o papel do escravo, sustentando a vida material, deixando tempo aos proprietários se dedicarem à política ou à guerra, o que frequentemente era a mesma coisa.

A campanha dividia-se em comandâncias militares, de que faziam parte todos os habitantes. As milícias eram tropas ocasionais, “surgindo ou dispersando-se com a mobilidade indispensável à guerra no pampa”.

Ter propriedade rural, charqueada ou comércio e se dispor a fardar e armar uma milícia – eram as condições para ser um oficial da Guarda Nacional.

Aos 25 anos, Neto era capitão de milícias, no comando de uma guarda da fronteira na região de Bagé. Quando o Brasil ocupou o Uruguai, na Guerra Cisplatina, ele foi chefe militar em Melo.

Era coronel, como Bento Gonçalves, quando iniciou a revolução. Assumiu o comando da 1ª.Divisão, com o posto de general. Meses depois, assumiu o comando geral do “Exército Farroupilha”, quando adoeceu o titular, João Manoel de Lima e Silva.

Não era “muito estratégico”, conforme Manoel Caldeira, cronista da revolução. Era homem de cavalaria, “senhor da espada, muito alto e apessoado, muito reservado, sério e reflexivo”.

A maioria dos autores diz que Neto fez a pregação revolucionaria na região da campanha. Um ano antes do 20 de setembro ele já era visto “ao lado do irmão José, engajando gente no movimento”.

“Aliciando elementos entre a tropa e civis, preparou uma marcha sobre a vila, desde o arroio Piraí”, diz o historiador bageense Tarcísio Taborda. Tomou Bagé praticamente sem resistência.

No início do século ado, quando enaltecer o caráter republicano e federalista da Revolução Farroupilha tornou-se necessidade política, a figura de Neto foi ressaltada, como “síntese do tipo rio-grandense”.

Era preciso abrandar a imagem que os brasileiros ainda tinham dos habitantes do Rio Grande do Sul. Silvio Romero, influente intelectual e crítico, dizia que os rio-grandenses eram “almas semi-bárbaras, egressas do regime pastoril”.

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Casa onde viveu Neto

Neto provavelmente concentrava as melhores qualidades do “pastor guerreiro e livre” do Rio Grande do Sul. Lindolfo Collor, intelectual e político, avô de Fernando Collor, que participou ativamente desta construção política, o descreve como o “tipo integral de gaúcho, irradiante de simpatia e franqueza, verdadeiro gentil homem rural, que tanto estava à vontade nas refregas das batalhas como nos galanteios dos salões, dançando com o mesmo desempenho dos moços e sabendo como ninguém fazer-se agradável às senhoras”. E completa: “…homem de irradiante simpatia, irado e estimado”. “Sua presença causava entusiasmo entre os combatentes”, diz Walter Spalding.

“Vede o vulto de Neto, onde a estesia espontânea de um povo modela atitudes de desempenho e garbo”, exclama Rubens de Barcellos. E prossegue: “Quem mais rio-grandense do que esse Antonio de Souza Neto – grão-senhor campesino, galante e batalhador? Nem Bento, o generalíssimo, guerreiro gentil, se lhe avantaja no liberalismo, na bravura e no fascinante prestígio”. E mais: “Chefe espontâneo, general de nascença, é o homem resumo, representativo dum povo e expoente de uma época”.

“A gauchada segue Bento Gonçalves, segue Neto porque eles são as únicas energias de comando que conhecem e acatam, contemplando- se neles como resumos”, diz Barcellos.

Nos últimos anos quando a guerra estava perdida e só se buscava uma saída honrosa, Neto conseguiu se manter acima das intrigas e das disputas internas que dividiram os líderes do movimento.

Bento Gonçalves matou Onofre Pires num duelo pela honra. Mas ficaram as palavras de Onofre: “Ladrão da fortuna, ladrão da vida, ladrão da honra e ladrão da liberdade”. Ficou também sua fama de general azarado e seu autoritarismo.

David Canabarro “era taciturno, às vezes ríspido, quase sempre desconfiado – faltava-lhe sem dúvida aquela poderosa irradiação de simpatia tão viva e irresistível em Bento Gonçalves e Neto. Canabarro era um “soldado animoso e rude”, Neto “uma galarda figura de homem, na definição de Othelo Rosa.

Neto também sofreu uma derrota humilhante. Atacado de surpresa, teve que aproveitar a escuridão para fugir, diz a lenda que nem o poncho conseguiu levar. Mas sobre Canabarro pesa até hoje a suspeita do acordo com Caxias em Porongos, no ataque ultrajante.

Uma febre maligna 3012g

O general Neto mandou erguer seu próprio mausoléu no cemitério de Bagé, onde queria ser enterrado. Foi construído na Itália e transportado em blocos. Tem duas virgens esculpidas em mármore carrara e uma figura alada ao alto. Seus ossos levaram cem anos para chegar ali.

Neto morreu no hospital de Corrientes, Argentina. “Vitima de impaludismo contraído na região insalubre do o da Pátria”, registra o professor Antonio Rocha Almeida nas “Efemérides”.

Não é certeza absoluta que tenha sido febre. Há testemunhos de que ele foi ferido em combate. Podem ter sido as duas causas conjugadas. “Há referências a ferimentos, mas dentro da família sempre se falou numa febre”, conforme descendentes da família em Bagé.

Detalhe da tela "A batalha de Tuythy"
Detalhe da tela “A batalha de Tuyti”

“Ele foi ferido em Tuyuti”, segundo testemunho do psicanalista uruguaio Carlos Mendilaharsu, bisneto do general, neto de Maria Antonia, a filha mais velha dele.

O atestado de óbito não foi encontrado pela família. “Minha avó não sabia mas havia informação que sofreu um ferimento à lança, que infeccionou”, contou Mendilaharsu.

Tuyuti foi o maior confronte militar já ocorrido na América do Sul – 21.500 homens das forças conjuntas do Brasil, Argentina e Uruguai contra 24 mil das forças paraguaias. Quase mil homens marchavam sob o comando de Neto.

A Brigada Ligeira, de Neto, era a vanguarda das tropas brasileiras. Mas naquele terreno de banhados e pântanos em território paraguaio, as condições eram ruins para a cavalaria. Os cavalos estavam estropiados e sem alimento. Neto e seus homens ficaram na retaguarda.

As linhas de frente já davam combate. A cavalaria procurou um pasto para os animais combalidos, num escasso pedaço de campo, junto ao mato. De dentro do mato surgiram os paraguaios de Solano Lopez, de emboscada.

Neto e seus homens combateram, em retirada, até que chegaram reforços para repelir o ataque. “Acodem vários corpos para conter o inimigos que emergem do mato e os que avançam pelos boqueirões”.

Em seu minucioso livro sobre a Guerra do Paraguai, o general Tasso Fragoso descreve o ataque. Sessenta e dois oficiais e 657 soldados brasileiros morreram em Tuyuti. Foram feridos 179 oficiais e 2.113 soldados. Mas não menciona Neto entre os feridos.

No dia seguinte, 25 de maio de 1866, ele completaria 63 anos.

Os trinta e oito dias, entre Tuyuti e sua morte no hospital de Corrientes, no dia 1 de julho, não tem registro. A mulher e duas filhas que viviam em Montevidéo não puderam ir a Corrientes para o enterro.

Ele era casado com a uruguaia Maria Medina Escayola. Quando casaram ele já tinha 57 anos, ela andava pelos 40. Filha de uma família de políticos de Paysandu, no Uruguai, era instruída, gostava de literatura e teatro. Tiveram um noivado prolongado e cheio de “rusgas” como atestam as poucas cartas que a família ainda guarda.

Quando ele morreu, Maria Escayaola e as duas filhas – Maria Antônia, com cinco anos e Teotônia, com um ano incompleto – foram viver em Montevidéo. Teotônia casoau com o coronel Guillaume Gaillard, do Exército francês e foi viver em Nice, onde morreu em 1954.

Maria Antônia tinha olhos claros, que dizia serem iguais aos do pai. Além dos olhos, herdou dele o gosto por pratos comuns no Rio Grande do Sul –frango ao molho pardo e canja de galinha, por exemplo. Casou-se aos 16 anos com Domingos Mendilaharsu, advogado, bem mais velho.

Os Mendilaharsu tinham na sala um retrato furado a bala no famoso cerco de Paisandu. Era colorados. Neto lutara ao lado deles em 1865, defendendo Venâncio Flores, contra o ditador uruguaio Aguirre.

A maioria dos pesquisadores não se interessou muito pelas posses do general. Não eram pequenas, sem dúvida. Ao fim da guerra, quando emigrou para o Uruguai, ele deixou duas estâncias com os irmãos em Bagé. O agrônomo José Otávio Gonçalves, bisneto de um de seus irmãos, não sabe quanta terra eles tinham. Não era pouca. Duas gerações depois ainda era o suficiente para deixar os herdeiros ricos: “Meu avô tinha sete filhos, quando morreu cada um herdou 38 quadras de sesmaria*, diz ele.

No Uruguai chegou a ter 800 quadras espanholas (mais de 60 mil hectares) em Piedra Sola, Paisandu, Durazno e Florida, segundo Carlos Mendilaharsu. Metade o próprio Neto perdeu em demanda com arrendatários. O restante foi dilapidado pelo genro.

Apaixonado pela política, o dr. Mendilaharsu consumiu quase todas as terras herdadas por Antônia e a irmã, financiando jornais partidários. Chegou a senador do Uruguai, o que não impediu que a mulher recorresse à Justiça para salvar o que restava de seus bens. “Foi a primeira ação judicial de separação de bens no Uruguai”, diz seu neto Carlos . Quando ela morreu em 1949, o inventário revelou que , das terras do general, restavam menos de 20 mil hectares da estância La Glória, em Piedra Sola, departamento de Tacuarembó.

Único herdeiro, Carlos Mendilaharsu tratou de vender 17 mil hectares (“por motivos obscuros o governo queria desapropriar”) e dividiu o restante entre os filhos.

Com a bandeira do Império

Em novembro de 1865, o Exército brasileiro invadiu o Uruguai mais uma vez.

Na vanguarda das tropas brasileiras ia Brigada de Voluntários Rio-grandenses, com 1.200 homens sob o comando do general Neto.

Em março do ano seguinte, menos de um mês depois de assinada a paz com a República Oriental do Uruguai”, Neto já estava engajado na Guerra do Paraguai.

Em ofício ao ministro da Guerra, o general Osório dá conta das tropas que reunia para marchar contra o Paraguai: “No dia 6 de março, com o acréscimo recebido esse número subiu para 9.957, não incluindo mais ou menos 1.300 praças comandadas pelo general Antonio de Souza Neto, que se achavam na campanha oriental”.

“A 29 de julho de 1865, ordenou Osório que o general Neto asse o Rio Uruguai e se lhe junta-se com sua brigada de voluntários riograndenses, com 993 homens grupados em três corpos”, registra Tasso Fragoso.

O bisneto Carlos Mendilaharsu contou que foi o proprio D. Pedro II quem lhe mandou o estandarte imperial que seu exército de voluntários levava ao lado da bandeira tricolor dos farrapos.

Em 1930, sua filha Antonia tentou transferir os ossos do general que estava enterrado no cemitério de corrientes, para montevidéo. Fez um pedido ao governo argentino, mas não obteve autorização,

Adotou, então, uma solução drástica: mandou roubar os restos do cemitério de Corrientes e enterrou-os no jazigo da família no cemitério central de Montevidéo.

Em 1966, o governo gaúcho obteve autorização da família para transferi-los para Bagé, onde o túmulo vazio aguardava há 100 anos. Duas inscrições no mausoléu anulam o seu ado de dissidente farroupilha. Gravado no mármore, se lê:

Ele foi um dos quatro comandantes dos Farrapos que am o acordo de paz em Cerros Verdes* (*José Gomes Jardim, presidente da República, David Canabarro, comandante em chefe, Antonio de Souza Neto, chefe do Estado Maior e João Antônio da Silveira, comandante da 2ª.Divisão. A paz foi assinada em 28.02.1845). Mas no último encontro quando os chefes farrapos tomaram a decisão de depor as armas, foi o único que votou pela continuação da guerra. Depois, à frente de um pequeno exército particular (“mais de 300 homens, a maioria escravos libertos), atravessou a fronteira e foi viver no Uruguai, onde tinha grandes extensões de terra.

Dos chefes farroupilhas é, talvez, o menos conhecido e o mais mitificado. As informações sobre ele estão dispersas em vários livros e são truncadas. Há um manuscrito de Carlos Rheingantz sobre sua família em Bagé, que se extraviou no Museu D. Diogo de Souza. Também o professor Paulo Xavier ampliou a pesquisa sobre a genealogia do general. Está com o trabalho pronto à espera do editor.

Há divergências sobre a data do seu nascimento, não há certeza sobre a causa da morte e seu gesto mais importante – a proclamação da República Riograndense – ainda não foi devidamente compreendido. Ele era um revolucionário republicano, radical até o separatismo. Ou era apenas um caudilho platino?

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No local onde Netto fundou a República Rio-grandense, no “Campo dos Menezes”, no atual município de Bagé, foi colocado um marco de concepção positivista: “Neste local, em 11 de setembro de 1836, travou‑se a batalha do Seival e foi proclama-da a república de Piratini.”

Na verdade, a batalha travou‑se a 200 metros do local e a proclamação foi no dia seguinte e noutro lugar a cinco quilômetros dali. Fora uma batalha sangrenta com mais de 100 mortos de cada lado. Neto colocou a tropa em forma e leu a proclamação.

A denominação República de Piratini denota a manipulação ideológica.

Foi usada depreciativamente por um funcionário do Império Araripe, para dar conotação de republiqueta. Mas foi, depois, adotada pelos positivistas gaúchos, por estar de acordo com sua concepção de “pequenas pátrias”.

Euclides Torres: “Herói ou vilão, ninguém queria Bento Manoel como inimigo” 3t5m1r

Neste setembro, quando se completam 180 anos da “República Riograndense”, um livro vai trazer à cena um dos personagens mais controvertidos deste período histórico: Bento Manoel Ribeiro.

Ilustração de Enio Squeff na capa da edição da Martins Livreiro, desenhada por Ronie Prado
Ilustração de Enio Squeff na capa da edição da Martins Livreiro, desenhada por Ronie Prado

Nas 320 páginas de O Caudilho Maldito (Martins Livreiro/Editora Edigal), o jornalista Euclides Torres mergulha nas conturbadas águas da história platina para entender o enigma do general, de feitos inegáveis, que o imaginário popular rotulou como trânsfuga, traidor e ladrão.

Decisivo no início da Revolução, Bento Manoel logo abandonou os farrapos e se tornou no seu mais temível inimigo, autor da prisão de Bento Gonçalves.

Depois voltou às fileiras farroupilhas para, em seguida, voltar a traí-los.

Em entrevista a Cleber Dioni Tentardini, Euclides Torres falou sobre o trabalho.

Por que o Bento Manoel?

Comecei por curiosidade pessoal e, depois, para saber de suas intervenções na história de Caçapava do Sul, minha cidade. Depois, por desconfiança de que nem tudo do que falavam mal dele seria verdadeiro.

Ficou com fama de traidor…

E velhaco, ladrão. E isso me chamou a atenção porque todos os milicianos da época ‘tomavam’ e ganhavam terras e gado. Muitos não perdiam a oportunidade de negociar com o Império, tornavam-se fornecedores das forças armadas, era um comércio garantido pra eles. Defendiam as fronteiras do Sul contra os platinos porque recebiam benesses em terras, onde fixavam gente. Então, em determinados momentos cada um desses estancieiros significava uma coluna com 800 milicianos na fronteira dispostos a lutar. (NE: Ele talvez tenha sido apenas o mais voraz?)

Mas era bom estrategista…

Veja a batalha da Ilha do Fanfa, em que ele prende o Bento Gonçalves. Meses depois ele prende o próprio presidente da Província a serviço do Império, o marechal Antero José Ferreira de Brito. Ninguém queria ter Bento Manoel como inimigo.

Um personagem desconhecido

Um personagem fascinante. Fala-se muito na conduta dele no Decênio Farroupilha, mas desde 1801 ele participa das guerras. Antes dos 40 anos, já era coronel, comandante de forças do império. Ele ficou conhecido na Corte como o general que vencia sem combater. Em 1822, com 90 soldados, ganhou dos uruguaios, que tinham 300 homens. Blefou. Simulou uma situação fazendo os inimigos crerem que ele estava em número bem maior. Cinco oficiais uruguaios foram enviados presos ao Rio de Janeiro. Ele poupou a vida e libertou os soldados da Banda Oriental com a promessa de que não pegariam mais em armas.

Ele era paulista, não é?

Nasceu em Sorocaba, em 1783. É descendente dos povoadores portugueses no Brasil, os Ribeiro de Almeida. Veio para o Rio Grande do Sul com cinco anos, acompanhando seu pai e um irmão mais velho, que eram tropeiros. O destino era Viamão. Viajou em um cesto, em cima de uma mula. Um ano de viagem, uma odisseia. Depois seu pai foi morar em Cachoeira do Sul, onde teve outros filhos. Ele foi morar em uma fazenda em São Sepé, de propriedade do alemão Adolfo Charão.

Aos 17 anos, alistou-se como soldado no regimento de milícias de Rio Pardo, em Caçapava do Sul. Já como alferes, casou com a filha do estancieiro mais rico do município. Em 1823, chegou a coronel. Como recompensa de suas vitórias sobre os uruguaios, recebeu grandes extensões de terra na região de Alegrete.

Elegeu-se deputado para a Assembleia Provincial, em 1835, junto com Bento Gonçalves, cinco anos mais moço que ele.

Era corpulento…

Era gordo, grande. Tinha fama de dormir em cima do cavalo. Provavelmente deixou uma descendência no Rio Grande do Sul bem maior do que seus sete filhos.

Era quase analfabeto, mas foi melhorando seu texto ao longo do tempo. Foi dono até de jornal em Porto Alegre, “O Justiceiro”, redigido pelo filho Sebastião Ribeiro, que estudou em São Paulo e praticamente ensinou o pai a escrever.

Onde ele estava quando os farroupilhas tomaram Porto Alegre, o 20 de setembro?

Ele não estava aqui, ou melhor, ninguém sabia onde andava, sempre arrumava um pretexto para não participar, mas avisava que estava sempre por chegar. Ou mandava avisar que estava doente.

Politicamente como ele seria definido?

Ele declarava apoio aos farroupilhas, mas era um entusiasta do Império. Dirigia-se “a meu amado imperador”. Em 1831, uma carta escrita em Montevidéu ao Império, denunciava que no Uruguai não se falava em outra coisa a não ser na ideia de separar a Província do Rio Grande e que ele, o coronel comandante do regimento de milícias Bento Manoel Ribeiro, era contra essa posição separatista.

No entanto, aderiu ao movimento… em que momento ele virou a casaca?

Em 1836 Porto Alegre está sitiada. É bombardeada. Bento Manoel muda de lado e a a apoiar os imperiais. O presidente da Província, José de Araújo Ribeiro, o nomeia comandante da armas. Vai ficar até março de 1837.

Ele justificava suas mudanças de lado?

Foi apelidado de “cangalheiro de Curitiba”. Cangalha é onde vinham atrelado os cestos no lombo da mula, onde ele viajou ainda criança com pai. Na realidade, havia uma enciclopédia de insultos: “Duas caras”, “Traidor, “Vira-casacas”, “Cangalheiro”, “Curitibano”. Curitiba era um engano das pessoas porque havia nascido em Sorocaba e nunca negou isso.

Era um homem do campo…

Cresceu em uma estância, aprendeu toda lida do campo, conhecia a campanha gaúcha como ninguém.

(NE: ele se dizia “gaúcho de Sorocaba”, mas o Apolynário diz que o termo gaúcho ainda não era usado naquela época…)

Havia um corpo de lanceiros negros sob suas ordens?

Ao contrário de outros comandantes, ele preferia índios guarani em sua coluna aos soldados negros. Ele gostava dos índios, inclusive criava alguns ‘bugrinhos’, como ele se referia às crianças indígenas. Tinha uma bronca do Rosas, que mandava matar os índios só por crueldade, mas ele não era assim. Matava, mas não era cruel. E seus soldados eram muito fiéis a ele.

Mas tem a famosa batalha do Sarandi, onde ele foi culpado pela maior derrota do exército brasileiro…

Na guerra pela independência do Uruguai, na Batalha de Sarandi, em 12 de outubro de 1825, ele comandou a maior derrota do Exército brasileiro, perdeu 470 homens e 600 foram aprisionados. Bento Gonçalves e Osório foram os que garantiram a fuga do Bento Manoel,com a gentileza do Rivera. Essa batalha de Sarandi, foi muito comemorada pelos uruguaios, inclusive com grandes bailes em Durazno, Foi nessa grande vitória onde os orientais ganharam ânimo para lutar por sua independência, que iriam conquistar somente três anos depois, em 1828.

O general uruguaio Rivera ajudou Bento Manoel?

Sim, Lavalleja mandou Rivera perseguir Bento Manoel mas só fingiu. Eles se perseguiam e se protegiam. Eram amigos, mas também mui amigos. Não dá para entender direito. Os oficiais dos inimigos eram respeitados, inclusive os mais graduados oficias do Império brasileiro presos no Sarandi participaram do famoso baile em Durazno, em homenagem a Lavalleja.

E a vitória?

Teve a tomada de Caçapava, em 1837, durante a Guerra dos Farrapos, que foi histórica. Os imperiais com 1.200 homens, inclusive os soldados sob seu comando. E, de repente, ele a para o lado dos Farrapos. Porque o novo presidente da província, marechal Antero manda Bento Manoel ar o comando das Armas para seu oficial imediato. Aí ele intercepta uma carta enviada pelo marechal Antero com a ordem de prendê-lo. O que ele fez? Preparou uma tocaia para prender o marechal antes. Essa agem é fantástica, em 1837. Ao mesmo tempo em que manda cartas aos superiores em Porto Alegre afirmando que está tudo bem, diz para o general Netto invadir Caçapava. Depois de prender o marechal Antero, Bento Manoel manda carta às forças imperiais em Porto Alegre avisando que o presidente da província estava preso sob ordens do Bento Gonçalves, que também estava preso. Portanto, o que acontecer com o Bento Gonçalves, acontece com o marechal Antero. Mandou que soltassem o general uruguaio Rivera, que estava em prisão domiciliar em Porto Alegre. E, mais tarde, depois que o Bento Gonçalves fugiu da Bahia, trocou a liberdade do marechal Antero por um oficial farrapo.

Bento Manuel Ribeiro
Bento Manuel Ribeiro

Há poucas referências na literatura sobre Bento Manoel?

Não, há muita. Mas também informações muito obscuras. Não se sabe o dia nem o mês em que nasceu, só o ano. Mais obscuros que os negócios dele com Rivera então, que financiou Bento Manoel para comprar o Cerro do Jarau. Ele ou da criança pobre que chegou só com as roupas do corpo para o chefe de umas das famílias mais ricas do Rio Grande do Sul. Quando morreu aos 73 anos, tinha gado que não dava para contar em mais de 60 mil hectares de campo, em cinco estâncias no entorno do Cerro do Jarau.

torres-olho3Ele foi decisivo também na tomada de Rio Pardo, outro momento importante da revolução…

Naquele momento Rio Pardo era a principal praça de guerra. Essa cidade esteve nas mãos dos Farrapos até abril de 1838, quando os imperiais tomaram o controle. Em abril de 1838, os farroupilhas investem novamente. E nessa investida, que ficou conhecida como o combate do Barro Vermelho, o Bento Manoel participa decisivamente. Foi uma grande vitória farroupilha. Na entrada de Rio Pardo os imperiais mandaram tirar as pontes de madeira para ninguém chegar. O resto era mato e água. O Bento mandou fazer uma picada de 800 metros, durante três ou quatro noites, e carregando terra e couros fizeram uma ponte em outro ponto do rio, e um aterro feito pelos corpos de cavalos magros, que mataram por serem fracos. O Netto e os outros oficiais com 1.200 homens tomaram Rio Pardo. Ali foi feita refém a banda imperial, do maestro Medanha, que depois tocou em Caçapava, em alguns bailes comemorativos dos Farrapos, e compôs o hino da República Rio-grandense. Só mais tarde é que o Moringue vai retomar Rio Pardo para os imperiais e libertar a banda sequestrada do Medanha.

Quem era o maior opositor do Bento Manoel entre os farroupilhas?

Ninguém confiava nele. Mas todos preferiam estar a seu lado nas batalhas.

Tem algum duelo histórico envolvendo esse personagem, como ocorreu entre Bento Gonçalves e o seu primo Onofre Pires?

Não, ele ganhava no grito. E quem foi prendê-lo, ele prendeu antes. E quem foi contratado para matá-lo, ele comprou. O “Dente Seco”, famoso capanga matador de Quaraí, foi contratado por 15 onças de ouro pelos Batistas, de quem Bento Manoel roubou campo e gado. Ao encontrar “Dente Seco” na sua fazenda, ele ofereceu 30 onças para o matador e salvou a vida.

Em que momento ele virou a casaca de novo?

Em 1839, ele começa a negociar a sua anistia com o Império. Não cumpre mais ordens dos Farrapos, está sempre ausente ou finge estar doente. Escreve para o Império pedindo anistia para parar de lutar e cuidar unicamente de seus negócios. A anistia chega mas no momento em que estão juntos o Bento Gonçalves, o Netto e outros oficiais. Ele lê e rasga o documento. Mas depois pede uma segunda via e assina. Era um artista. A frase emblemática da vida de Bento Manoel foi proferida pelo seu filho, Sebastião Ribeiro, ao amigo Sá Brito, nas ruas de Alegrete: “Lamento muito a atitude de meu pai ado a segunda vez para os farroupilhas e nem a água do rio Ibirapuitã vai lavar a honra da nossa família.”

E quando o Caxias chega ao Rio Grande, em 1843, onde está Bento Manoel?

Tentando ficar com a Presidência da Província e cancelar com a nomeação de Caxias, inclusive espalhando fofocas no Rio de Janeiro. Chegou a dizer que Caxias, com a metade de sua idade, era mais velhaco que ele. Mas não conseguiu. Caxias, sabendo de tudo, ganha a confiança de Bento Manoel só com vaidades, dizendo que não conseguiriam terminar a guerra sem a participação dele e essas coisas. Oferece bondades aos Farrapos, insiste que o inimigo era o Rosas, o que veio a se confirmam anos depois. Teve a ajuda do Bento Manoel para conseguir o acordo de paz que, na realidade, não foi assinado por ambas as partes porque o Império não reconhecia a República Rio-grandense como nação.

Bento Manoel chegou a lutar contra Rosas

Foi a última guerra dele. Já velho e doente, em 1851. Caxias chamou para comandar uma divisão das forças imperiais contra os argentinos de Rosas. Quando Caxias precisou se afastar para negociar com Urquiza, nomeia Bento Manuel comandante do Exército brasileiro. Aí, logo depois disso, ele morre.

Disputa local decidiu os rumos da revolução 3e334t

No local onde Neto fundou a República Rio-grandense, no “Campo dos Menezes”, no atual município de Candiota, foi colocado um marco de concepção positivista, em 1935, como parte das comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha.

Na placa está escrito: “Neste local em 11 de setembro de 1836, travou-se a batalha do Seival e foi proclamada a República de Piratini”.

Um reparo: a expressão “República de Piratini” foi o rótulo pejorativo que os inimigos aplicaram para diminuir o significado da separação – Piratini era um lugarejo perdido no interior da Província. Neto proclamou a República Rio-grandense

Foram os propagandistas republicanos meio século depois que a adotaram a “República de Piratini” porque se coadunava com as “pequenas pátrias” de Augusto Comte.

Outro detalhe. Ali onde está o marco se deu uma batalha, não entre duas nações, mas entre dois caudilhos, dois coronéis da Guarda Nacional, que disputavam o poder na região de Bagé.

O coronel João da Silva Tavares foi o único comandante da Guarda Nacional que permaneceu fiel ao Império. Era compadre de Bento Gonçalves e foi convidado. Não aceitou o convite para entrar na conspiração. Uma das razões era sua rivalidade com Neto, em Bagé.

Por isso, foi um dos primeiros a pegar em armas em defesa das posições imperiais. Tavares impôs a primeira derrota aos farrapos, menos de um mês depois da tomada de Porto Alegre. Mas com o avanço da rebelião por toda a província ele ficou isolado e teve que emigrar.

A revolução ainda não completara um ano, quando Neto recebe sinais de que Tavares está de volta para retomar Bagé. Tavares faz alto junto ao Arroio Candiota. Netto sai ao seu encontro. Tavares posiciona sua tropa no alto da coxilha, Neto posta-se no baixio, depois de atravessar o arroio Seival.

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General Neto

Segundo o historiador Othelo Rosa, Tavares tinha 560 homens e Neto, 430. Depois da primeira carga de fogo, as duas forças se atracam de lança e espada. A vanguarda dos imperiais leva vantagem no primeiro embate. Mas um acidente desorganiza sua ação: quebra-se o freio do cavalo de Tavares, o animal dispara e causa enorme confusão entre os que lutavam. Refeitos, os homens ainda tentam reagir, mas o oficial que comanda o ataque é ferido na coxa, cai do cavalo e sua gente se dispersa.

“Silva Tavares completamente destroçado deixa no campo 180 mortos, 63 feridos e mais de 100 prisioneiros”, escreve Othelo Rosa. Não menciona as perdas de Neto. “Foram mínimas”, segundo Araripe, um autor insuspeito.

A vitória na “Batalha do Seival” foi tão cabal , tão entusiasmante que Neto, instigado pelos oficiais exaltados do seu exército, toma uma decisão gravíssima, no dia seguinte. Ainda no acampamento e diante da tropa perfilada, ele proclama a República Rio-grandense, separada do Brasil.

“Camaradas, nós que compomos a Primeira Brigada do exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência dessa província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Riograndense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: “Viva a República Rio-grandense! Viva a Independência! Viva o exército republicano riograndense”

Foi um gesto tomado num local isolado, perante algumas centenas de soldados, num tempo em que as notícias andavam a cavalo. Mas foi suficiente para sustentar a guerra por mais nove anos.