Glênio Perez 2g5i41

Jornalista, político, poeta e ator, Glênio Perez destacou-se na oposição legal ao regime militar e na soli­dariedade aos presos políticos. Eleito três vezes vereador em Porto Alegre, teve seu mandato cassado no começo de 1977. Colaborando nos principais jornais do estado e em diversas revistas, foi também executivo de grupo de mídia e organizador de eventos culturais. Fundador do PDT, foi eleito vice-prefeito da cidade, cujo largo central leva hoje seu nome. Mesmo sob severa perseguição, publicou “Caderno de noticias”. Glênio Perez Interrogatório Como fazes para exercer teu ofício? Beijas também tuas crianças quando vais para o trabalho? E quando acordas de noite, lembras o que foi teu dia? Que gosto é que tem a carne nos braços de tua mulher? Quando a cobres com teu corpo e ela geme – te perturbas? Tua mãe ando o ferro para ar tua roupa não te inquieta ante o perigo do choque ou da queimadura? Quando ficas muito tempo de pé num só lugar não te cansas? Dormes num quarto sem ar ou frio como uma geladeira? Apagas todas as lâmpadas para descansar teus olhos? Comes, sempre, muito bem mesmo com tanto trabalho? E qual a sensação de receber mensalmente a paga do teu serviço? Tu amas, comes e dormes apesar do teu ofício? De que barro te fizeram – torturador – afinal?   Rua Pantaleão Permitam que relembre aqui uma rua Pantaleão Teles – hoje Washington Luiz. Havia um bonde amarelo que imitava Porto Alegre com sua Rua Pantaleão: quando chegava na Bento (Martins) dava volta virava o bancos de costas para não ver o putedo… E a Pantaleão, ali, firme: um bordel ao lado doutro prostitutas marinheiros soldados e estudantes os barcos Ponte de Pedra carro-motor futebol sobre um campo de carvão da Usina do Gasômetro. Um dia a puta chamou: – você menino moreno compra uma ceva pra mim? comprei voltei entrei nela – a primeira da minha vida. Quando um lençol de cimento cobriu a Pantaleão Teles pensei que a prostituição acabara em Porto Alegre. Para logo descobrir que a antiga Pantaleão é agora muitas ruas da cidade e do Brasil.   Tomara que tu morras Se grita o meu poema a fome dos roubados morram ele e seu tema na hora da comida. Podre realidade a que esculpe esta poesia da qual sou intérprete e inimigo. – Tomara que tu morras Com meus versos. Não quero ser poeta de torpezas.   Retrato de pintor Permiti senhoras e senhores que vos apresente a mais amável a mais terna compreensiva E sofrida pessoa que conheço já está morta (pior para a cidade que vai morrendo sem memória de Edgar Koetz seu amante e pintor) tão delicado de gestos tão desligado na terra do que não fosse a beleza do perene no coração do homem libertado. Por exemplo: foi a última pessoa que deu festa para saudar o nascimento de uma flor no vaso de lata de azeite no seu pátio e que certa vez no Jockey ou fome recusando-se à disputa do buffet. Ele achava – era artista o meu amigo – que a todo homem corresponde naturalmente o direito de comer. Edgar amava com suas cores mulheres de ateliê casas nas ruas o rio as praças as crianças mas o traço principal de sua grandeza era a suprema delicadeza em cada gesto tanto que um dia chegando de repente Vi Edgar a conversar com as tintas. Ele dizia: – Desculpai que vos misture Senhoras Ocorre que já está amanhecendo E eu tenho de pintar A Aurora.   Uma canção para a noite do exilado É preciso mais: é absolutamente necessária alguma experiência de saudade acrescentada à possível sensação de uma planta arrancada pelo caule E não seria demais a lembrança dos seios que perdemos da mãe e das amadas para o tempo Para entender-se o exílio há que um dia ter-se dormido sob um lençol de céu que não é nosso e sobre uma terra- colchão que não é ventre Ave submarina um ser fora do cosmos árvore no ar barco no chão ou feto na proveta assim morrem na vida os exilados. Muitos há suspirando pelo fim – tarifa que lhes cobram para a volta – outros contam o tempo em grãos de angústia chorados na ampulheta da saudade Mas sabemos: estão todos acordados enquanto nós os exilados que ficamos fazemos para eles a cama do regresso.   Aquarela do Brasil Honório Nardin esse teu quadro me faz um mal ao coração que nem te conto. Ou conto, sim: — Na moldura, entardece (há quanto tempo o sol não amanhece?) na praça o dia morre uma menina corre rodando um aro na areia do jardim. Que mal me faz agora Honório o teu poema em cores que foi sempre paraíso de amostra na parede. Porque essa praça de teu quadro, Honório me lembra outras longe, neste mundo onde, na hora morna em que a luz reflui, brincam crianças que não têm país. Pequeninos brasileiros exilados pelas praças do mundo em debandada que existem correm brincam — como as nossas – mas são filhos e netos de exilados não conhecem o céu que lhes pertence nem as praças e a terra que são suas.   Brava Gente Mulheres sois perigosas guerrilheiras desarmadas De noite agitais o sono pesadelo dos tiranos de dia agitais o lenço da paz pelos torturados — De onde tirais a força para lutar com palavras e fé contra as ditaduras? Por certo do vosso ventre onde se gera a criança livre que o mundo terá Quando não houver exílios nem prisioneiros de ideias algozes espancadores espiões da violência exploradores de homens – que fareis, bravas mulheres? Descansareis da guerrilha pela Anistia no mundo embalando em vossos braços os filhos da Liberdade.   História para cordel Senhor Doutor Sobral Pinto que gosta de escrever cartas aos poderosos do dia defendendo os inocentes fique sabendo por estas mal traçadas linhas que não creio em suas fotos nem na certidão de idade. — Por favor, não se apoquente (Epa, isso é palavra de antanho e antanho também já era…) não se põe aqui em dúvida a certeza do que diz e a beleza do que faz. Ocorre que há muito é noite no Brasil: quatorze anos (nem na Antártida é tão longo o sono do amigo Sol) e o senhor sempre na sua gritando pela Justiça mostrando os torturadores criticando as ditaduras. Por isso não acredito nessa idade que lhe dão. É uma pena que eu não seja um poeta de cordel para contar num livreto essa história nunca vista de quem – por ser justo e bom – vai ficando cada dia por condão de sua madrinha a Senhora Liberdade em vez de velho – mais moço.   Memória o escuro da sala teu nome na tela. Tua lembrança nas palmas das mãos que se encontram. Teu martírio lembrado: teu nome no filme. Teu nome na tela ilumina a memória do teu sofrimento. A censura não pode cortar a lembrança de um tempo de horror que se pode escrever com muitas palavras ou com teu nome Vladimir Herzog   Nem favela Um dia Velha Restinga visitei o teu colégio — Tu sabes o que achei? piolho e sarna Restinga nos cabelos das crianças. Elas não am na escola como os meninos que comem. Já nascem com a cabecinha lesionada pela fome. Velha Restinga ainda doem teu barro nos meus sapatos e a memória dos casebres residência da miséria. Te falta tudo Restinga porque nem favela és te falta um morro de pobres para ter ricos aos pés. Mas não te falta um dancing com meninas de dez anos nem cachaça nos balcões das tendas e armazéns. Tens demais algumas coisas brigas facadas pobreza tristeza e merda nas ruas. Mas tu e eu bem sabemos quanto te sobra Restinga: indiferença e injustiça bem mais velhas do que tu.   No exílio, em Berlim O metrô de Berlim Ocidental há muito tempo serve aos alemães leva crianças aos colégios empregados às fábricas funcionários para os escritórios e certamente amantes e amadas para a hora do amor. Numa tarde de maio de 1976 o metrô de Berlim ou por cima do corpo de Maria Auxiliadora estudante exilada no Chile e na Alemanha. Dora Dorinha ou Doralice mineirinha agora no exílio para sempre.   Para Sônia Prisioneira Sônia: dez anos! Quase quatro mil dias na prisão. tu estavas livre presa à enfermaria dos hospitais onde trocavas teu amor aos outros pela escassa ração de pão aos teus. Bendito pão – pois ganho em liberdade – dividindo o que tinhas para dar. Cada noite te pagava a faina com beijos da tua filha E da tua mãe. Não do marido que teu homem fora também jogado às lajes da prisão.   Quando o rio mudar de rumo Um dia esse rio que a o braço das suas águas na cintura da cidade e depois vai ser lagoa e dormir enfim no mar por artes de seu destino de ser caminho no tempo vai navegar para trás. As suas águas que levam barcos e homens aos peixes também são de retornar: foram rio-lagoa-mar serão mar-lagoa-rio E esse rio vai ser mais do que foi desde que é rio: uma avenida de águas para a volta dos banidos regresso dos exilados. E a Senhora dos Navegantes vai bendizer o Guaíba como o faz em fevereiro enquanto o povo fará – por então ser soberano – a festa de Iemanjá estender-se o ano inteiro.   Raul Sendic Uma grossa parede de vidro entre nós dois no Presídio Central del Uruguay Era um tempo de respeito aos prisioneiros e parecias cansado não ferido Estava contigo a Topolanski Uma feia campeã de pontaria e outros mais tupamaros na prisão. Te vi, Sendic com esse jeito de tímido colono dos que preferem por dentro ser leão. Quanto tempo, Sendic, desde aquilo? Houve a libertação Do cônsul brasileiro um túnel em Punta Carretas para a liberdade a morte de Mitrioni e esse pesado véu da ditadura que desceu também sobre vocês no Uruguai. Caíste com um tiro na boca em Ciudad Vieja e nunca mais se ouviu falar de ti. Em que tumba ou masmorra te enterraram? 1c6v3e

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