Marilia Verissimo Veronese Doutora em Psicologia Social pela PUCRS, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS Vivemos tempos tristes, de fragmentação e incompreensão mútuas. Tal qual no período do golpe de 64, brigas e desencontros entre familiares e amigos acontecem. Lembro de minhas primas mais velhas me contando dos desentendimentos entre nosso tio Alberto (simpatizante do integralismo, ultraconservador) e nosso tio Dirceu (pai delas), trabalhista e fervoroso brizolista, defensor da igualdade e da justiça social. Há até uma agem curiosa da época, na qual conta-se que correu um boato em Santo Ângelo-RS, no início da ditadura, que Brizola estaria escondido na casa de meu tio. A polícia invadiu o local fazendo uma busca e ele bradava “pois eu ficaria honrado se esse grande brasileiro estivesse aqui, mas ele não está…”, enquanto minha tia pedia desesperada que se calasse, ou poderia ser preso. Aliás, a parte progressista da família só não foi presa na Santo Ângelo de 1964 graças à intervenção de Dom Aloísio Lorscheider, bispo da igreja católica ligado à teologia da libertação. Eram outros tempos e eu nem era nascida ainda, mas imagino como seriam os almoços de domingo com esses dois tios discutindo… Quem, como eu, nasceu durante a ditadura e só presenciou a luta contra ela, a campanha das Diretas Já, a constituinte de 1988, as conquistas (parciais, incompletas) que foram a duras penas adquiridas, por exemplo nas áreas da saúde e combate à miséria, encontra-se hoje pasmo, incrédulo. Na manifestação do dia 31/8, gritávamos novamente “Diretas Já!”. Tive um déja vu. Aos 16 anos, em 1984, saí as ruas com esse brado. Apanhei da polícia a cavalo, de cassetete na cabeça, que batia a esmo em adolescentes de 15, 16 anos pedindo somente para votar pra presidente da república. Essa semana estou fazendo 49, próxima dos 50 e com uma filha de 20 anos, e respirando gás lacrimogêneo jogado sobre manifestantes enquanto a eata ainda era plenamente pacífica. A tropa de choque provavelmente “defendia” a sede do governo gaúcho, sita na esquina da Ipiranga com a Érico Verissimo (para os não gaúchos entenderem, trata-se do prédio da RBS/Zero Hora). E novamente a juventude que me cercava bradava “Diretas Já”! Como pode? Como? Porque a vida parece andar em círculos. A trajetória a humanidade é tudo, menos linear. Limito-me a comentar as últimas décadas. Cada vez que um governo minimamente progressista e defensor dos interesses populares ascende ao poder executivo – e bota minimamente nisso! –, a plutocracia que rege os destinos desse país há 500 anos reage e começa a gritar e espernear. Boa parcela da mídia comercial de massa, única fonte de informação de muita gente, imediatamente acompanha, pois sempre viveu de concessões e favores dessa plutocracia, até estabelecer-se definitivamente como parte dela. O brado é sempre o mesmo: “Corrupção! Mar de lama!”. Carlos Lacerda é uma figura que se reproduz infinitamente no Brasil. O jornalista Juremir Machado costuma chamar os replicadores dessa ideia de “lacerdinhas”. Sim, bom apelido para gente que acredita em grotescas manipulações midiáticas, ou mesmo inventa suas próprias mentiras e distorções em sites proto-fascistas do tipo Revoltados on line e outros do mesmo feitio. Jango foi deposto por um golpe civil-midiático-militar e os setores conservadores da sociedade brasileira aplaudiram. Veio uma ditadura que mentiu, torturou, matou, estuprou, endividou o país, exterminou índios e considerou “progresso” a destruição de biomas inteiros, a exemplo do estado do Mato Grosso. Precarizou o ensino público propositalmente e deixou um legado de desigualdade e injustiças. Há alguns anos, a Globo fez um ridículo “mea culpa”, lido no ar pelo boneco de cera William Bonner*. Aliás, fazendo um parêntesis, lembro desse golpista sendo entrevistado por Marilia Gabriela, declarando que a edição que o JN fez do discurso Collor x Lula em 1989 foi “muito corajosa”. Foi é manipuladora e eu a classificaria ainda como criminosa. Voltando à vaca fria, a patética declaração pedia “desculpas pelo equívoco do apoio à ditadura militar”. Daqui a 50 anos, provavelmente outro boneco vai ler no ar um pedido de desculpas pelo apoio ao golpe de 2016… isso se algo não for feito antes no sentido de democratizar os veículos de comunicações no Brasil, pluralizando-os e retirando o controle de umas poucas famílias riquíssimas que contratam vassalos como Bonner. Segundo os artigos 220, 221 e 222 da Constituição Federal, bastaria regular a comunicação no país para proibir monopólios, propriedades cruzadas (de vários meios, várias mídias); era preciso regulamentar o capital que gere isso tudo e criar também TVs públicas, comunitárias, geridas pela sociedade civil. Não havendo meios de comunicação democráticos, a democracia é infalivelmente fraca e parcial. (Detalhe do § 2º do artigo 220 – “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Hahahaha!). Em 2016 a situação foi um tanto distinta, guardando, contudo, algumas semelhanças com 1964. O projeto da plutocracia – arrocho salarial, exploração do trabalho, desmonte da CLT (o segundo governo Vargas foi um ótimo exemplo do que falo aqui), transferência de recursos públicos para os rentistas através do sistema da dívida pública – foi derrotado nas urnas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Aí eles não aguentaram e começaram um movimento duro de desestabilização do governo Dilma, fraco em muitos pontos e tendo mesmo cometido erros políticos na relação com vários setores da sociedade. Tendo se abraçado ao diabo (Temerário e o resto da corja), tendo compactuado com a corrupção há séculos existente – embora Dilma individualmente tenha feito esforços notáveis para evitar sua continuidade, como a urgência das leis anticorrupção que enviou aos deputados, derrubada pelo congresso nacional mais corrupto dos últimos 30 anos -, esse governo não pode evitar a traição e o golpe “palaciano”, midiático-parlamentar, com ampla conivência do STF. O sistema político apodreceu-se por dentro e no excelente artigo Reforma política: democracia ou plutocracia?**, Francisco Fonseca explica o caso: “distorções as mais distintas foram ocorrendo, tornando o sistema político um mosaico de perversidades: coligação nas eleições aos cargos proporcionais, que implica que o eleitor vote num partido/candidato e eleja outro, de outro partido; a lógica de que os partidos derrotados também governam, em razão da referida necessidade de maioria parlamentar a qualquer custo; a controversa desproporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados; o estímulo ao personalismo na vida política, associado ao descrédito que o sistema político confere tanto ao subsistema de partidos como ao Parlamento (…).” Foi tudo muito vergonhoso. A infâmia e o show de horrores que vimos em 17/4 e 30/8 deste ano nos mostraram que se encerrou um ciclo. Os plastificados e botoxados deputados e senadores – muitos deles denunciados por corrupção, sob investigação e tendo participado de áudios vazados como aquele no qual o corrupto Romero Jucá afirma: “Rapaz, a solução era botar o Michel. Aí parava a porra toda [Lava-Jato]” ***, com patéticos discursos mencionando Deus e a família, decretaram o impedimento. (Conferir a extensão do cinismo deles é possível nesta matéria aqui****) A presidenta (sim, está correto e consta no dicionário da língua portuguesa), abandonada pela cúpula corrupta do seu próprio partido, manteve a dignidade e a cabeça erguida, pois não tinha crime do qual envergonhar-se, a não ser a inabilidade política. Mas não foi citada nem uma vez na Lava-jato, ao contrário de alguns dos parlamentares imundos que a impediram, campeões em denúncias de corrupção, muitos com bens já bloqueados pela justiça. O ciclo ao qual me referi antes seria o iniciado em meados dos anos 80, pós-redemocratização, constituição de 1988 e relativo consenso em torno da ampliação de direitos, que havia inclusive, a duras penas, sobrevivido à fúria neoliberal dos anos FHC. Mas agora, a plutocracia ataca com tudo: exige desmanche da CLT, cortes de gastos sociais, precarização da saúde e educação públicas. Ainda mais do que jáestavam precarizadas! Há que pagar os juros e amortizações de uma dívida pública já paga mil vezes, há que transferir mais riqueza aos já muito ricos rentistas. Novamente, parte da classe média é convencida que essa é a “saída da crise”. Inacreditavelmente, parte dela acredita que piorando a situação a situação melhorará mais adiante. E cortam-se programas que combatiam a miséria, que integravam os pobres à universidade, que permitiram alguma mínima mobilidade social. Que, diga-se de agem, desagradam sobremaneira à plutocracia, pois no Brasil ela ainda é escravagista. Diante de tudo isso, os que habitam a caverna de Platão contemporânea aplaudem o golpista Temer, o corrupto Jucá, a vitória do bandido Cunha, que certamente será “salvo” pelos coleguinhas (deu-lhes o impedimento de bandeja, por vingança*****), em cima do sofrimento de milhões de pobres e de trabalhadores, de seu cotidiano massacrante e semiescravo, sem oportunidades de mobilidade social minimamente equânimes. A igualdade de oportunidades, tão cara ao liberalismo clássico, aqui no Brasil é uma quimera da qual falsos “liberais” dão risada, evitando-a a qualquer custo há séculos. Pessoas brigam com seus pares que têm uma perspectiva crítica na análise do processo. Estabelecem-se discussões semelhantes àquelas dos meus tios nos idos dos anos 60. Os que saíram às ruas para defender a plutocracia, de camisa verde e amarela, hoje fazem que não sabem de nada e ignoram – ou fingem ignorar – a ampla corrupção que ajudaram a manter intocada. Os que sempre saíram às ruas pela democracia, agora saem novamente. Pedem novas eleições. Os representantes da plutocracia nacional não querem nem ouvir falar, pois sabem-se rejeitados nas urnas. Melhor seguir manipulando, a mídia hegemônica ajuda e faz o serviço sujo. Estamos mesmo precisando de grandes brasileiros como Leonel de Moura Brizola ou meu tio Dirceu Rodrigues. Este texto é em homenagem à sua memória. Mas, por ora, teremos nós mesmos que fazer a resistência e continuar a luta da democracia contra a plutocracia. Tentemos ser um pouco mais grandiosos também, com humildade e com muita força de vontade. * https://www.youtube.com/watch?v=bABCjGS-_M4 ** http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1843 ***http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html ****Essa matéria ilustra bem a pusilanimidade e o escárnio da corja que votou “por deus e pela família”: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2016/04/1763233-um-sim-pelo-impeachment-para-a-mulher-um-afago-no-whatsapp-para-a-amante.shtml *****http://www.tijolaco.com.br/blog/o-brasil-envergonhado-cunha-o-ladrao-vinga-se-de-dilma/ y6y1i
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Filosofia da Distribuição do Produto Social 6t2s2j
Duílio de Avila Bêrni – Professor de economia política aposentado (UFSC e PUCRS). Co-autor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Movido por indisfarçável sarcasmo, criei há um par de anos o que vim a batizar como “o primeiro teorema do PIB” que, singelamente, afirma que o PIB representa 100% do PIB. Não deixa de ser, já que vamos falar em filosofia econômica, um traço filosófico, na linha da afirmação originária da filosofia grega de que (A) é (A) e também que (A) (não é) (não-A). Um número expressivo de economistas, jornalistas e outros agentes societários desconhece meu truísmo por não ter clareza sobre a definição de valor adicionado. Fazendo algumas simplificações, como o domínio de uma tecnologia muito simples, omissão da luz do sol, da água da chuva, etc., a noção de valor adicionado resplandece, caso pensemos na semeadura feita pelas mulheres maias, quando plantavam, digamos, um quilo de grãos de milho e colhiam cinco. A diferença entre cinco quilos de produto e o quilo do insumo é o valor adicionado que se deixa medir por meio de três óticas de cálculo[1].
Uma vez que aceitemos a existência de um valor adicionado e três óticas de medi-lo, é seguro afirmar que todas elas devem conduzir ao mesmo resultado, o que, de maneira mordaz, leva-nos a sugerir a expansão daquele primeiro teorema: (P) é (Y) e também é (D), ou seja, o conceito de valor adicionado foi concebido de tal forma que podemos medi-lo usando as óticas do produto P, da renda Y e da despesa D. O produto é mensurado da forma sugerida (cinco quilos de milho menos um quilo de milho). A renda, que pode ser mensurada em quilos de milho, horas de trabalho, reais, ou qualquer outra unidade de conta, representa os rendimentos auferidos pelos trabalhadores e outros agentes, eufemisticamente designados por residual claimants (entre eles, a tributação indireta estabelecida pelo governo) que se encarregam de recolher o montante não apropriado pelos trabalhadores. Voltamos ao teorema fundamental: quando maior for a participação dos trabalhadores na renda, menor será o montante a ser “clamado” pelos não-trabalhadores, seja os capitalistas, seja a cobrança de impostos indiretos líquidos de subsídios pelo governo. Por fim, a despesa informa o destino daqueles cinco quilos, quanto foi absorvido para consumo final e quanto foi guardado para a semeadura do ano seguinte.
Em resumo, o produto P não encolhe quando é designado com o Y da renda ou aumenta, se for chamado de despesa D. Um exemplo ilustrativo desta incompreensão, e justificativa para estes esclarecimentos, é dado pelo segmento das classes empresariais e arautos emergentes das classes assalariadas. Eles consideram que o governo, ao ter seu tamanho mensurado pela ótica da renda (no caso a tributação indireta), é paquidérmico. Mas, ao medirem usando a ótica da despesa (gasto público), e se deparando com a falta de serviços públicos de qualidade, constatam um tamanho exíguo.
Pois então. Ao lado das drágeas da filosofia grega e seus corolários que acabamos de examinar, também estou citando em favor de meu teorema um dos mais sólidos pilares da formação da ciência econômica, David Ricardo. Para o consagrado economista britânico do século XIX, a economia política é a ciência devotada ao estudo da distribuição do excedente econômico entre as classes sociais. Com efeito, uma vez que o produto social representa 100% de si mesmo, temos bases sólidas para garantir sua coerência lógica, mas também para enfatizar que o problema central da economia política consiste em sua distribuição.
A distribuição dos resultados da ação econômica da sociedade, isto é, do valor adicionado, neste contexto, tem as regras que a condicionam e modificam ao longo do tempo. Assim, na sociedade primitiva, quem regulava a resposta à pergunta “para quem produzir” era o costume, com prioridade das necessidades dos guerreiros, por exemplo, sobre as dos escravos. Nas economias monetárias, consolidou-se o trio mercado-estado-comunidade como responsável pela criação de instituições mais ou menos adequadas ao enfrentamento das necessidades da sociedade. No mercado, entra em ação o mecanismo de preços, o estado é regido pela política, ao o que a comunidade ajusta-se a consensos e dissensos voltados a proclamar a paz ou convocar para a guerra. Mesmo nas sociedades pré-capitalistas, articula-se um ciclo em que a distribuição dos resultados do esforço produtivo de homens e do emprego de bens de capital molda padrões de consumo que influenciam a estrutura produtiva responsável pela distribuição do produto social, que alimenta a circulação. Vejamos, entre as oito principais questões enumeradas por Joan Robinson e John Eatwell cuja resposta é objeto da filosofia econômica, quais são, direta ou indiretamente, as conexões distributivas.
A primeira delas indaga de onde provém a riqueza material. Os primeiros economistas ingleses fizeram uma analogia antropomórfica ao afirmar que a terra é a mãe e o trabalho, o pai. Hoje em dia, a terra é importante, claro, sem terra não há agricultura, e nem mesmo as bases territoriais das cidades. Todavia, principalmente em resposta à diversidade de bens materiais produzidos pelas indústrias química, metal-mecânica e eletro-eletrônica e pelos serviços, a agropecuária cedeu espaço na estrutura da produção.
As duas próximas questões cujas respostas vamos procurar tangenciar dizem respeito à origem do excedente econômico e do lucro. Vamos endereçar-nos a ela com a retomada do exemplo que usamos para fixar aquela noção intuitiva de valor adicionado: colheita menos sementes. Dada a existência prévia das sementes, a origem do excedente certamente é o trabalho, pois aquelas sementes não foram parar dentro de sulcos especialmente preparados para acolhê-las por mero acaso. Houve mão humana que lá as depositou. Mas o trabalho não é o único fator de produção usado na atividade lavoura, pois arados, adubos e água são igualmente importantes. Assim, o excedente possui uma origem visível, nomeadamente, o trabalho. Quanto ao lucro, estamos falando novamente em distribuição: um indivíduo ou um grupo apropria-se do chamado resíduo entre o total colhido de sementes e aquela fração absorvida pelos trabalhadores. Podemos imaginar casos em que esta apropriação é feita sem sobressaltos, mas também por meio de confisco.
A quarta questão filosófica a que os economistas devem endereçar-se indaga se há algum princípio associado aos valores das mercadorias que expliquem as variações erráticas em seus preços. Todos nós observamos variações erráticas nos preços e nas quantidades das mercadorias. Lembremos os dias de chuva em que aparecem guarda-chuvas e sombrinhas e, mais recentemente, capas de plástico transparente, com preços bastante diversos dos vigentes nos dias ensolarados. Mas também volta e meia somos surpreendidos com um sobe-desce nos preços das hortaliças, um casaco de inverno vendido por R$ 400 em maio e por R$ 150 em novembro, e assim por diante. Todas as escolas do pensamento econômico parecem concordar que em geral o preço reflete os custos de produção das mercadorias acrescidos de uma margem de lucro, mas ele também pode variar se “está vendendo bem”. Mais ainda, todas as escolas item que o preço varia inversamente com a produtividade do trabalho. Há divergências apenas quanto ao nome a ser dado a estas regularidades. Uns atribuem-nos a maior disponibilidade do bem ou serviço por unidade de esforço, e outros falam na teoria do valor-trabalho, isto é, a convicção de que o valor das mercadorias reflete a quantidade média de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção.
Nossa quinta questão problematiza o papel do dinheiro numa economia. Esta questão encontra-se tão arraigada em nosso cotidiano que raramente relutamos em aceitar pedacinhos de papel impresso pelo governo como pagamento de dívidas, ou caderninhos emitidos pelos bancos. E, mais surpreendente, os outros indivíduos também aceitam nossas cédulas monetárias e cheques. Esta questão tem diferentes respostas, dependendo do período de tempo escolhido para a reflexão. Obviamente houve momentos na história da humanidade quando não existia dinheiro, ainda que existisse divisão do trabalho. Mas foram a crescente divisão e especialização do trabalho que ampliaram a obtenção de excedente e, com ele, o volume de trocas entre produtores individuais. Das trocas, surgiu um denominador comum de valor, que começou a receber a forma de moedas metálicas pouco mais de meio milênio antes da era cristã. O crescimento das trocas foi requerendo novas formas de agilizar as transações, levando o dinheiro a experimentar crescente desmaterialização. Depois da disseminação do crédito, já na idade média, o dinheiro ou a ser representado por signos de papel lastreados em ouro. Mesmo essa correspondência foi perdendo substância para chegar ao que hoje se chama de moeda fiduciária. Assim, o dinheiro é aceito em virtude da confiança que nele depositam os agentes econômicos. Neste sentido, a função do dinheiro na economia associa-se a três propriedades: meio de troca, instrumento de pagamento e reserva de valor. Mas, mais que estas funções operacionais, ele tem outro papel muito mais basal e abstrato, qual seja, o de selar os arranjos institucionais que permitem que a atividade econômica seja desenvolvida sem sobressaltos.
Ao discutirmos a sexta questão central da filosofia econômica, nomeadameante, qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade?, precisamos deixar clara a diferença entre renda (ou rendimento monetário) e riqueza. A renda é uma variável fluxo, ou seja, nasce e se desenvolve durante um período de tempo, ao o que a riqueza é um estoque criado por meio do trabalho em diversos períodos, sendo acumulada na forma de máquinas, equipamentos, instalações, joias, obras de arte, posse de metais preciosos, depósitos bancários em dinheiro, títulos, etc. Assim, infelizmente, uma sociedade rica pode não levar necessariamente ao bem-estar de todos os indivíduos, pois os rendimentos monetários de muitos deles chegam a ser muito baixos independentemente da riqueza do país. Alta riqueza pode produzir alta renda, mas alta renda não garante boa distribuição, e com isto, deixa à mostra visíveis diferenças nos padrões de consumo entre as famílias.
Nesta linha de argumentação, ressalte-se que o diferencial de renda entre pobres e ricos é o objeto da sétima questão formulada por Robinson e Eatwell: qual é a relação do rendimento monetário dos indivíduos com a riqueza total da sociedade? Trata-se do questionamento do grau de justiça social vigente em uma sociedade de enormes disparidades na riqueza e, principalmente, na renda. Neste caso, devemos retomar aquele brincalhão “primeiro teorema do PIB” de que falamos no início do artigo. O problema central que diferencia os indivíduos reside no processo de distribuição do produto social, o que ocorre anualmente, e qual será a fração destinada a aumentar o estoque de capital da economia, pela ampliação dos meios de produção ou mesmo retenção de metais preciosos, obras de arte, etc.
Esta questão sobre famílias ricas e pobres leva-nos a refletir sobre as unidades que não participam do aparato produtivo da sociedade, como os trabalhadores desempregados, os trabalhadores doentes ou deficientes, os jovens e os velhos. Parece meridiano que estes agentes não auferem rendimentos originários do mercado de trabalho e muitos deles tampouco recebem rendimentos do capital, na forma de juros sobre os montantes cedidos por empréstimo a outros agentes. Essa constatação evidencia a existência de outro nível de distribuição que não exclusivamente aquele associado aos mercados de fatores de produção. Ou seja, há pessoas – o número de ricos relativamente ao de pobres é muito maior – que não participam da geração do produto, mas o fazem na absorção da despesa.
Como oitava e última questão, a filosofia econômica, dada a constatação de crises periódicas que assolam o capitalismo desde pelo menos o início do século XIX, indaga se existe algum mecanismo endógeno ao funcionamento do sistema que garanta um nível de procura agregada capaz de manter homens e máquinas plenamente ocupados. Com ela, estamos problematizando a possibilidade de se evitar o desemprego dos trabalhadores. O que varia na forma de responder a oitava questão é o grau de aceitação por parte da sociedade da intervenção do governo na economia. Sem desconsiderar os desdobramentos políticos envolvidos, atemo-nos à visão dos economistas, destacando que uma parte considera que qualquer intervenção governamental no mercado é indesejável, por contraste a outro grupo que valoriza o planejamento econômico.
Na medida em que a questão do desemprego envolve um tema que pode fazer a diferença entre a autonomia e a subordinação do indivíduo ao status quo, vamos dedicar-lhe as reflexões finais deste artigo, ao considerar que a política econômica pode ser o instrumento de combatê-lo. Quando realizado com qualidade técnica e virtudes morais, o planejamento pode amenizar quedas no valor adicionado devidas às depressões, mas hoje sabemos que ele tem se mostrado incapaz de evitá-las completamente. A preocupação fundamental é se o capitalismo, em tendo sua autorregulação complementada pelo governo, pode oferecer um bom padrão de vida que resista a pressões descendentes. A questão central é desdobrada, levando-nos a indagar, primeiramente, se vale a pena nos preocuparmos em reduzir as flutuações cíclicas e, em tendo-a respondido afirmativamente, como “alisar” o ciclo econômico, impedindo que um vigoroso nível de emprego contamine os preços, ou seja, que não gere pressões inflacionárias.
Numa economia monetária, é evidente que as questões filosóficas que tratam da distribuição do valor adicionado rapidamente invadem o campo da política. E também há algumas verdades meridianas a elas associadas. A primeira indaga se, com a queda generalizada na produção durante as fases negativas do ciclo econômico, haverá algumas atividades que se dão melhor durante a crise, como os serviços de reparação e manutenção de equipamentos prestados às empresas. A segunda indaga o montante em que, caindo os lucros, haverá agentes que nele baseiam seu nível de consumo e que deverão reduzi-los. Por fim, a mais visível perdedora nestas circunstâncias é mesmo a classe trabalhadora que requer proteção especial que a compense pela sina de ser “livre de qualquer meio de produção”. Os mecanismos criados pelo estado voltados a defender seus rendimentos, como o seguro desemprego e, independente dele, a renda básica da cidadania, são indicadores do marco civilizatório que começou com a produção de excedentes alimentares, avançou para as economias monetárias e não pode terminar lugubremente sepultado pela ideologia neoliberal.
[1] Ao lembrarmos que a distância entre o olho do leitor e a tela pode ser avaliada do olho para a tela e desta para o olho – duas óticas –, não ficaremos incomodados com as três óticas colocadas a serviço da ciência econômica.
Senhor e Escravo/ Casa Grande e Senzala 194a4b
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
A crise política brasileira e o golpe na Presidente Dilma Rousseff podem ser lidos a partir de muitos vieses teóricos advindos da Filosofia, da Sociologia, da Economia, das Ciências Políticas e de outras áreas do saber. Podem ser lidos a partir de textos referenciais que a história do pensamento nos legou. O objeto do presente artigo é uma aproximação entre o texto da Dialética do Senhor e do Escravo, exposto por Hegel (1770-1831) no começo da Fenomenologia do Espírito, e a crise política vivida pelo Brasil na atualidade. Pensamos que este seja um viés teórico adequado para analisar criticamente o que está acontecendo no Brasil, principalmente no sentido de explicitar a lógica interna do processo e a articulação dos seus componentes.
A Fenomenologia do Espírito, uma obra que Hegel publicou no ano de 1807, expõe uma série de figuras que costuram o caminho pedagógico e racional entre a certeza sensível e conhecimento filosófico, entre a sensibilidade e o processo histórico. Uma das figuras de destaque muito conhecida e de decidida influência histórica nas lutas sociais e na formação da consciência histórica é a Dialética do Senhor e do Escravo. É uma figura que pode ser aplicada à composição teórica do círculo relacional entre o senhor capitalista e o empregado trabalhador, entre professor e aluno, entre mestre e discípulo, entre necessidade e liberdade, entre capital e trabalho, entre dominador e dominado, entre Casa Grande e Senzala etc.
Senhor e escravo são duas figuras verticalmente relacionadas numa situação de dominação do escravo pelo senhor. Nesta exposição, o senhor figura como o sujeito absolutamente livre, imediatamente relacionado consigo mesmo, autoconsciente de sua independência absoluta e alguém que usufrui de uma vida material de altíssimo nível. É sujeito de uma conta bancária gorda, dono de um apartamento luxuoso, carrão do ano na garagem e proprietário de uma grande fazenda. A sua independência e a sua capacidade de gerenciamento material lhe proporcionaram esta fortuna que adquiriu por merecimento próprio. Em razão disto, o senhor ostenta a consciência de liberdade e autonomia e despreza a sua negação absoluta, o escravo radicalmente incompatível com a sua condição.
O outro termo da relação é o escravo. Não possui nenhuma intuição de sua liberdade, rejeita a sua própria subjetividade e trabalha para o seu senhor. O trabalho dele lhe esgota fisicamente e somente recebe como recompensa de seu trabalho o suficiente para permanecer vivo, manter a sua força física de trabalho e continuar com a atividade de produzir para o seu senhor. Não se trata apenas de um duro trabalho executado no limite das suas forças físicas, mas esvazia a sua autoconsciência, a sua liberdade interior e interioriza a consciência do seu senhor como modelo que jamais conseguirá alcançar. No exercício do trabalho, o escravo não exerce a sua própria atividade, como se ela fosse uma materialização da subjetividade, mas exerce a atividade do senhor.
Entre o senhor e o escravo não se estabelece uma relação direta, pois entre eles está interposta a natureza. Ela aparece em dois momentos diferenciados. O primeiro, na condição positiva, é a natureza imediata tal como ela se estruturou como universo material; e o segundo, na condição negativa, enquanto transformada pelo trabalho humano e destinada ao consumo. Neste processo, o escravo se relaciona diretamente com a natureza positiva, pois com ela se confronta no ato do trabalho e de transformação. O escravo se depara com a dureza do objeto natural que necessita de muita força para ser superado. O senhor, em contrapartida, não se relaciona com a natureza imediata, mas apenas com a negativa porque a consome. O escravo não se relaciona com a natureza negativa porque ele não a consome, e quando ela está trabalhada escapa por completo de suas mãos.
Na Dialética do Senhor e do Escravo, o escravo reconhece e o senhor é o reconhecido. O senhor atribui a si mesmo a liberdade e a autonomia absolutas, enquanto nega o escravo e o rebaixa à condição de coisa. O escravo se nega a si mesmo através do esgotamento de suas forças físicas e o esvaziamento de sua liberdade ao confirmar a absoluticidade do senhor. Porém, nesta relação assimétrica, o escravo trabalha e o senhor apenas consome. O alto grau de vida material do senhor se deve ao trabalho do escravo, e não aos méritos do senhor.
Conforme afirmamos, entre o senhor e o escravo está a natureza, assinalada com os sinais do positivo e do negativo. Há um espaço não diretamente dominado pelo senhor, o ato sistêmico de enfrentamento da dureza da natureza pelo trabalho do escravo. Na sua dura atividade, o escravo a por um processo de aprendizagem no qual se dá conta de que a liberdade e o alto nível de vida material do senhor somente são possíveis mediante o seu reconhecimento e o seu trabalho. Nesta pedagogia da aprendizagem através do trabalho e da intuição da liberdade pessoal, o escravo a da heteronomia para a autonomia, da dependência para a liberdade. Ao conquistar a liberdade, o escravo desmistifica e dissolve a pretensa absoluticidade do senhor que recai na condição de escravo e é rebaixado à animalidade.
Para Hegel, o exercício do trabalho e a transformação da natureza constituem os fundamentais para a humanização. Como o senhor não trabalha, apenas recebe pronto e consome o resultado do trabalho de outrem, ele vira animal e não dispõe da mediação fundamental de humanização. O que absolutamente desprezou e jamais quis para si mesmo, agora a a ser a sua própria caracterização essencial. Neste nível, invertem-se as funções quando o senhor se torna escravo e o escravo se torna livre. Mas não é uma inversão simples na qual um assume a condição do outro e a relação social permanece exatamente a mesma, mas o senhor é desmistificado na sua posição de dominador absoluto e o escravo segue o seu caminho de humanização e libertação. É preciso destacar que o senhor aposta na incondicionalidade de seu domínio diante da qual o escravo não teria condições de esboçar qualquer caminho de liberdade e de consciência.
Parece-nos claro que o texto hegeliano aqui reconstruído em seus componentes fundamentais é um referencial para a leitura do cenário político atual. Na exposição dialética que aqui empreendemos, na História do Brasil identificamos a figura do Senhor com a Casa Grande e o Escravo com a Senzala. Na verdade, a Dialética do Senhor e do Escravo representa situações de relações historicamente situadas. Sob este viés, a História do Brasil é fortemente marcada pela presença de uma elite patriarcal, machista, patrimonialista, imperialista centrada no domínio e na acumulação capitalista. Por outro lado, temos uma massa de escravos impossibilitados de liberdade e excluídos das decisões, na condição de sujeitos sociais. Os escravos, atualmente os trabalhadores e o povo em geral, a massa de empobrecidos pelo sistema capitalista, sempre foram excluídos do processo político, das decisões e dos bens produzidos pela sociedade, e ainda rotulados de bagabundos, preguiçosos e objetos de assistencialismos por parte do Estado.
Ao longo da História do Brasil uma grande massa ficou excluída da fruição dos resultados econômicos e não participou dos rumos do país. A Economia, a Política, a Religião e o Direito estiveram voltados para a sustentação e a eternização de uma pequena elite patriarcal naturalmente considerada como dona do poder e das riquezas do país. O fenômeno que atravessa a História pode ser caracterizado a partir da oligarquia imperial que jamais abriu mão do domínio absoluto, invisivelmente sustentado por uma massa de escravos, trabalhadores e pela exclusão social. É toda uma base social que sustentou no topo da pirâmide uma elite dominadora, raivosa, autoritária, intolerante, ultraconservadora, branca e machista.
Dentro do grande contexto histórico de meio milênio houve um fenômeno no qual a grande maioria excluída e empobrecida se transformou em viés de políticas governamentais para tirá-las da miséria e incluí-las socialmente. Durante os governos de Lula e Dilma, talvez num fenômeno jamais visto na História da Humanidade, milhões de miseráveis foram resgatados e entraram na classe média. Diante desta constatação visível durante vários anos, a elite patriarcal não se conformou com os avanços e ficou furiosa e enraivecida diante dos desdobramentos deste fenômeno. Ela ficou incomodada como o aparecimento social de classes historicamente recalcadas à exclusão social porque começaram a ocupar os espaços exclusivamente deles, de sua propriedade. Ficaram brabos com a presença de negros e pobres nas Universidades, com os mais humildes que viajam de avião, com a necessidade de compartilhamento dos mesmos espaços como ruas, supermercados, bancos, praças públicas etc. A tradicional elite dominante, com diversas roupagens ao longo da História, raivosamente se posicionou diante de alguns acontecimentos estruturais que jamais se incluem em seus projetos e agendas temáticas. Com certeza, o golpe na Presidente Dilma Rousseff se deve muito mais em função dos avanços, das conquistas sociais e da nova posição do Brasil no cenário global das relações internacionais do que propriamente os erros.
O objeto do artigo é avaliar, dentro do contexto da crise e da atual configuração social brasileira, a relação entre a Casa Grande e a Senzala, entre a atual elite dominante e o povo da base à luz da Dialética do Senhor e do Escravo hegeliana, uma das fontes de inspiração de tantos movimentos sociais e de transformação social dos últimos dois séculos. Talvez, o problema maior dos governos petistas foi subir a rampa do Palácio do Planalto e afastar-se da grande base social e popular do país, cuja mobilização constitui a razão histórica de sua existência. Em palavras simples, substituiu-se a ligação política do Partido dos Trabalhadores com o povo pela governabilidade e pelo PMDB.
A ascensão social de milhões de seres humanos e o mergulho do Brasil na crise econômica e política revela um fenômeno diferente da estrutura lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, mas facilmente explicável a partir dela. O texto hegeliano aqui referido expõe a oposição radical entre duas figuras, a do Senhor e a do Escravo, em cuja lógica uma representa o inverso de si mesma, uma é a outra em si mesma e uma é ela mesma na outra. O fenômeno da ascensão social produziu um fenômeno contraditório cujo processo não foi acompanhado pela formação da consciência e desenvolvimento da inteligência. Com o ao consumo e ao conjunto de bens básicos, ao invés de formar uma visão crítica e uma consciência esclarecida, constituiu-se uma espécie de mentalidade burguesa afinada à lógica capitalista do consumo.
O notável fato do escravo de ter produzido a sua liberdade e quebrado a sua dependência em relação ao senhor, esta lógica não aconteceu desta forma na política brasileira. A ascensão social, as políticas públicas e a significativa participação dos mais pobres no processo de desenvolvimento econômico não produziu uma força política capaz de quebrar com a lógica da dominação imperial e com a classe dominante, mas a fortaleceu. Não aconteceu um processo de libertação social e um mergulho para dentro da consciência popular enquanto potencialidade transformadora, mas uma espécie de mentalidade burguesa generalizada que anestesiou a população diante dos ataques da mídia golpista, do judiciário, da classe dominante e do próprio congresso nacional. Não foi produzida uma força popular crítica capaz de superar o domínio imperial, mas emergiu uma grande massa popular alinhada aos interesses políticos da burguesia e com mentalidade capitalista, o que inviabiliza qualquer proposta de transformação social e histórica mais profunda. Pelo viés do senhor e do escravo, a Grande Senzala não foi politizada e conscientizada, mas massificada e aliada ao poder dominante. Ela, ao invés de politizar-se e fortalecer-se como um bloco histórico crítico e revolucionário, transformou-se numa massa indiferenciada que interiorizou a mentalidade da oligarquia colonial e engolida por esta.
A casa grande está viva e ativa. Reapareceu com toda a sua fúria dominadora, com a pose machista patriarcal, com uma organização absoluta e perfeita, com tudo incorporado à sua lógica. Todas as formas históricas de machismo, patriarcalismo, patrimonialismo, colonialismo e imperialismo estão integradas e plenamente atualizadas. As conversas entre as pessoas, a opinião pública de base, a lógica dos meios de comunicação, as forças políticas do congresso nacional, o grande capital, os alvos do judiciário e a criminalização dos movimentos sociais, o governo golpista, o criacionismo nas escolas, a escola sem partido, tudo concorre para o fortalecimento da casa grande. Estes componentes constituem gigantescos tentáculos do mesmo e único pandemônio que dissolveu a força transformadora do povo e tem como alvo direto devorar Lula e o PT. Quase não nos sobra nada além deste monstro que dos domina por todos os lados. Contra o monstro que se instalou, novos movimentos deverão ser construídos.
Uma crítica possível de ser formulada a partir da lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, no conhecido paradigma social da Fenomenologia do Espírito, é o desaparecimento da força de contradição e de articulação destas instâncias no cenário social e político brasileiros. Inclusive muitas das manifestações pró-golpe amplamente articuladas pelos meios de comunicação social foram favorecidas pela ascensão social e conquistaram significativa qualidade de vida com os governos de Lula e de Dilma. Tornaram-se inimigos dos governos que lhes proporcionaram uma situação econômica privilegiada, com ruptura política de base e com alinhamento à grande burguesia dominante. Ao invés da oportunidade histórica de superação da grande oligarquia patriarcal presente ao longo de toda a História do Brasil, os meios de comunicação conseguiram manipular de tal maneira a população que boa parte da população vincula a corrupção ao PT.
É visível que o momento atual é de reviravolta conservadora em âmbito mundial e nacional. Parece que andamos na contramão das potencialidades revolucionárias e transformadoras inscritas na Dialética do Senhor e do Escravo tecnicamente formulada por Hegel há um pouco mais de dois séculos atrás. Parece que as forças transformadoras recolheram e cederam amplo espaço para todas as formas possíveis de conservadorismo econômico, político, religioso e ideológico. Estamos num conservadorismo tal que falar do Senhor e do Escravo, e de todas as produções inspiradas nela, poderá ser ível de condenação e prisão. Mas a farsa do golpe aplicado contra a Presidente Dilma Rousseff não terá vida longa e duradoura. O golpe não esmagará definitivamente a Democracia, as forças de resistência e os movimentos populares. Em breve hão de eclodir novas forças de resistência capazes de contrapor à oligarquia patriarcal dominante. Com a destituição da Presidente Dilma Rousseff, as esquerdas deverão se rearticular, produzir novas forças políticas e novos caminhos de transformação.
Os efeitos danosos do golpe 2q1t35
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff pela oligarquia política do congresso nacional, pela mídia dos grandes meios de comunicação social, pelo judiciário direitista ultraconservador e por grandes corporações capitalistas evidencia os seus efeitos em todos os espaços e em todos os setores. O que acontece no epicentro do poder em Brasília, os interesses que se escondem e as forças de poder se disseminam por toda a sociedade. Abordaremos no artigo que segue alguns desdobramentos sistêmicos do golpe e que sentimos duramente em todas as esferas nas quais nos encontramos.
O golpe tem um viés econômico que tem tudo a ver com o capitalismo internacional e nacional. Os atores do golpe são grandes elites capitalistas nacionais e internacionais diretamente interessadas em nossas riquezas naturais, tais como a Amazônia, o Pré-sal, os minérios, as terras etc. O fundo do golpe é uma nova fase do imperialismo capitalista internacional que visa transformar o Brasil em uma das colônias privilegiadas da voracidade devoradora da imensa fome capitalista. Diante desta força devoradora das grandes corporações capitalistas, qualquer projeto nacionalista, que envolve algumas das políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma fogem aos interesses privatistas dos golpistas. Este é um dos motivos basilares pelos quais a elite dominante depõe a Presidente Dilma e deseja acabar como PT.
A crise econômica que o país atravessa nos últimos tempos tem as marcas da elite golpista. Como o Brasil estava emergindo como uma nova potência mundial, impulsionada por algumas políticas estatais estruturantes, desestabilizaram mundialmente os preços do petróleo, dos minérios, da soja e outros produtos agrícolas, o que inevitavelmente colocou o país em crise. Soma-se a isto a crise hídrica que causou uma profunda restrição no setor elétrico, provocando o aumento considerável do preço da energia elétrica. Uma significativa classe social, amplamente beneficiada por Lula e Dilma, sentiu profundamente os efeitos de contingenciamentos e os meios de comunicação aproveitaram o descontentamento destas classes e incendiaram um onda de protestos contra Dilma. Assim, a profunda crise política na qual o Brasil atualmente está mergulhado inviabiliza qualquer perspectiva de retomada da atividade econômica em curto prazo, com a qual o povo sofre profundamente.
O golpe em curso tem efeitos danosos na política. Definitivamente, a política deixou de ser o poder do povo para o povo. Como a ética e a política foram cindidos, a política se transformou numa estratégia de domínio de uma pequena classe de privilegiados que explora a grande massa da população. Vimos no golpe em curso a força em coro de um grupo elitista nacional e internacional, através de um processo parlamentar que envolve o congresso nacional, o judiciário, os meios de comunicação, para inviabilizar a efetivação de qualquer projeto democrático. Os poderes do Estado, constituídos para salvaguardar a Constituição e a Democracia, são os primeiros a violentá-las e dissolvê-las. Em função da cisão estabelecida entre estes poderes e o povo brasileiro, transformaram-se em articuladores do golpe, numa ação política de extrema direita. As vozes do povo que emanam dos mecanismos políticos legitimamente estabelecidos se perdem e a política se transforma na voz dos mais fortes, tudo na legitimidade parlamentar e jurídica.
O golpe em curso tem consequências doutrinais e ideológicas. Estamos assistindo a volta de formas de pensamento autoritárias e conservadoras. Elas estão vindo com toda a força e se destinam a legitimar um estado de coisas existente, inviabilizando qualquer tentativa de transformação social. São fundamentalismos econômicos, religiosos, políticos e sociais. São facilmente perceptíveis dogmatismos neoliberais ligados ao privatismo econômico, ao mercado absoluto e dominador, ao individualismo consumista etc. Os dogmatismos religiosos são visíveis nos muitos fiéis que ostentam práticas devocionais, concepções superadas como o criacionismo e práticas religiosas separadas da realidade. A leitura fundamentalista da bíblia é uma das facetas deste dogmatismo. A faceta mais conservadora do fundamentalismo é concentrada num significativo grupo de políticos que habita o congresso nacional, que carrega a bíblia embaixo do braço e representa uma das facetas mais conservadoras da política brasileira. É uma forma de encobrir com a santa religião e com discurso moralista um conjunto de interesses econômicos.
O golpe protagoniza tensões e enfrentamentos extremos. É a tensão entre a casa grande e a senzala, entre o povo e a oligarquia dominante, entre o patriarcalismo de direita e as esquerdas políticas etc. Mas as supremas tensões carregam em si mesmas o fenômeno da indiferenciação e da indistinção. Esta indiferença se manifesta na massificação da opinião pública amplamente dominada pelos grandes meios de comunicação social, na postura religiosa ultraconservadora, no discurso fascista contra o PT e contra Lula, na voz unívoca dos meios de comunicação, na generalização de um discurso que retrata apenas uma pequena fração da realidade, sem permitir que ela apareça de forma abrangente. O que circula nos meios de comunicação, nas mentes das pessoas e o que é comentado no dia a dia caracteriza uma aparência imediata que esconde uma realidade muito mais ampla e complexa. Trata-se do fenômeno do cinismo generalizado e universalizado, expresso principalmente na dogmatização de uma visão imediata e parcial da realidade. Em outras palavras, a realidade é encoberta por um discurso imediato, não raras vezes expresso numa linguagem de deboche. Vê-se um discurso uniformizado, extremamente superficial, imediato, parcial e fragmentado, que tomou conta de toda a sociedade e se manifesta numa opinião pública intensamente massificada.
A massificação da opinião pública, em forma de cinismo social, é um ambiente propício para que os golpistas possam impor o seu projeto. Diante da massificação da informação intensamente interiorizada pela população, as vozes democráticas e os discursos que apontam para outra interpretação da realidade ficam sem força. Neste contexto, uma iniciativa de desmistificação dos interesses ideológicos que se escondem por debaixo do golpe, não vai ter expressão na opinião pública e não terá força de transformação social. Em outras palavras, um discurso místico e parcial toma conta da realidade, enquanto que um discurso mais crítico e abrangente fica proibido de ser dito. Os meios de comunicação exercem um papel central para que a opinião pública se configure desta maneira. Talvez seja esta a intenção de fundo para a implantação da dita escola sem partido, para excluir da escola toda a tentativa de gestação de um pensamento crítico e sistemático.
O fenômeno social aqui indicado precisa produzir a sua negação, a sua oposição, a sua contradição interna em tensões sociais com posições e práticas diferentes e opostas. A imensa superficialidade da opinião pública e o cinismo social precisam ser quebrados e produzir uma nova configuração e correlação de forças. Para a quebra da indiferença e imediatez social precisam aparecer novas forças de informação, novas forças políticas, novas concepções sociais, novos discursos capazes de penetrar na estrutura social. E esta oposição deve configurar-se em nova síntese social, em nova estrutura social para redimensionar o Estado e os poderes constituídos. Estes fenômenos devem dar outra função ao congresso nacional e ao supremo tribunal federal, no sentido de recuperarem a vanguarda da Democracia e da vontade popular. Mas, considerando o cenário nacional de hoje, com quase certeza devem aparecer fenômenos sociais intensos opostos ao que hoje vivenciamos e interpretamos epistemologicamente.
Mas os efeitos do golpe não param por aí. Ele tem consequências locais, nacionais e internacionais. Representa a ruptura de uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente no que concerne à Democracia e à liberdade dos povos. Uma geografia complexa de relações internacionais na qual o Brasil figura como um dos atores fundamentais pode ser dissolvida. Neste cenário, corremos o risco de voltar a um modelo de relação de dependência diante das grandes potências do norte e perder a soberania nacional. A plataforma de fundo de um golpe como aquele que estamos assistindo, no qual o que não é dito e não aparece na telinha da televisão, são os interesses capitalistas internacionais que representam os motivos fundamentais. Todos os dias observamos a tendência de dissolução de importantes conquistas do povo resultantes de muita luta, suor e sangue de muitas gerações. A condição de importante ator internacional conquistada pelo Brasil nos últimos anos tende a desaparecer e a se transformar, em pouco tempo, numa republiqueta sem expressão internacional.
Com estas considerações, as consequências do golpe aparecem na totalidade da estrutura social, na economia, na política, na religião, na cultura e no conhecimento. Tem a sua faceta na padronização da informação e na consequente massificação da opinião pública, que repete em toda a sua abrangência um discurso superficial e imediato. Uma possível força de contradição de uma opinião mais crítica e sistemática, por ora, não tem muita força. O golpe se transformou num fenômeno de muitas dimensões, pois penetra no interior das relações interpessoais mais restritas, no interior das famílias, dos grupos, e se estende para o cenário nacional e internacional.
A economia política da desfaçatez w3y2f
Duilio de Ávila Berni – Professor de economia política aposentado (UFSC e PUCRS), co-autor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Desfaçatez, substantivo feminino, observada nos atuais escalões decisórios da política econômica brasileira, sotaque café-com-leite, isto é, pronuncia-se como a dupla Aécio-Temer. Além da propaganda em torno da qualidade técnica do novo Mãos-de-Tesoura, o banqueiro aposentado e com hobby na política Henrique Meireles, o que vemos é um pacotaço de decisões abalando os fundamentos do já combalido estado de bem-estar social brasileiro. Podemos falar em uma economia política neoliberal sem desfaçatez? Difícil, especialmente quando vemos o governo interino apelar quase ipsis litteris ao receituário da candidatura mal urdida dentro do PSDB em 2014 e derrotada nas urnas pela finada aliança PT-PMDB. Em que consiste a economia política da desfaçatez?
Iniciemos considerando as posições de contrariedade entre mundos possíveis. A primeira delas talvez tenha sido realizada apenas nos alvores da humanidade, configurando o estado natural num mundo de liberdade individual absoluta. Cada um dá a sua existência o destino que bem entende, mas, por isso mesmo, vive uma vidinha solitária, pobre, repugnante, bruta e curta. Nesta descrição de pesadelo de Thomas Hobbes, não há muito espaço para a atividade econômica, pois numa terra de desrespeito a qualquer propriedade privada, inclusive a vida, os incentivos para a produção de riquezas são quase tão escassos quanto… no Brasil XXI. Tão impossível e indesejável quanto esta posição é o elogio ao “ir jogo das livres forças do mercado”. Desfaçatez.
A segunda posição extrema é mais moderna e carrega em seu âmago um mundo real em que – no dizer de Marx – “tudo vira mercadoria, inclusive a honra”, posição esta que foi levada ao limite por meio do conceito criado por Kenneth Arrow de seguros generalizados. O medo que nutrimos sobre o futuro, aquele medo que congela a vida societária no estado da natureza, não existe, pois cada cidadão pode contratar um seguro que lhe permite ser indenizado contra o risco de cair em situações desagradáveis, perniciosas ou mortais. Nesse mundo, estaremos seguros contra tudo, incêndios, tempestades, frustração de casamento, quebra de safra na lavoura, derrota no jogo de pôquer, golpes de estado, corrupção de políticos. E quem gosta, por exemplo, de risco e montanhismo, poderá contratar até mesmo um seguro de ressarcimento contra escaladas monótonas.
Em resumo, uma das posições extremas é o elogio da supremacia política a todas as demais dimensões da vida social, ao o que a outra é um arranjo econômico (atuarial), com o resguardo absoluto a qualquer abalo ao ramerrão, que pode ser até a vida sob risco de ausência de riscos. Nesses casos extremos, ninguém de nosso tempo escolheria viver naquele mundo hobbesiano. Ao mesmo tempo, muita gente abdicaria da vida no ambiente arrowiano, por considerar que uma existência sem risco é tão insípida quanto… a dupla Aécio-Temer. Parece que a solução judiciosa é a existência de um ambiente intermediário que limite nossa liberdade de fazer o que queremos à custa da liberdade dos outros que também permita pensarmos que um número finito de seguros pode induzir à realização de maior bem-estar social. Por exemplo, a sociedade poderia criar um seguro contra o desemprego cujo mecanismo de implantação não seria outro que a renda básica universal.
Mas é precisamente neste ponto que se vê uma enorme expressão de desfaçatez por parte de muitos economistas conhecedores da história econômica. Entusiasmados com a tarefa de destruir o estado de bem-estar social, eles negam a socialização do risco de desemprego. Ao mesmo tempo evitam pronunciar-se sobre o caráter malévolo do capitalismo no que diz respeito às questões distributivas, ao trato ambiental, e ao resgate de recursos humanos que vêm sendo desperdiçados há gerações por não terem relevância funcional para a manutenção do sistema.
No mundo em que vivemos, homens e mulheres, tal como os vemos nas ruas e campos, nós mesmos e nossos ancestrais, não existiríamos sem o abrigo da sociedade. Moldados pela sociedade, homens e mulheres são condicionados/convocados a expressar preferências sobre uma enormidade de cursos de ação, desde sair da cama na manhã fria, tirar o leite do refrigerador, ir ao trabalho, comprar um par de sapatos à vista ou a prestação. Um conjunto igualmente gigantesco destas preferências e escolhas é semelhante às que determinam escolhas feitas por subconjuntos de integrantes da sociedade. Ao longo do tempo, a própria sociedade vem criando várias formas de agregar as preferências de seus agentes.
Nova manifestação de desfaçatez pode ser observada neste contexto, quando o trio agregador de preferências individuais encapsulado pelo mercado, pelo estado e pela comunidade cede espaço ao monocórdio elogio ao mercado. No livro texto convencional, aprendemos como fazê-lo para o caso das funções de procura e oferta de mercado, a partir de curvas dos consumidores e produtores individuais. A desfaçatez esconde que, nos livros de nível intermediário, discutem-se os problemas carreados à sociedade por meio de imperfeições no funcionamento do mercado, como é o caso do monopólio e da produção de bens públicos (saneamento, segurança) e insuficiente provisão de bens de mérito (educação, saúde). A omissão em falar nos demais integrantes do tripé não pode ser prova de ignorância, pois quando são forçados a fazê-lo, os arautos dos interesses vinculados à destruição do breve estado de bem-estar social do lulismo pulam imediatamente para denunciar as imperfeições no funcionamento do estado, como é o caso do nepotismo, da corrupção ou da troca de votos nas câmaras legislativas. No contexto, ou melhor, fora dele, omite-se qualquer referência à agregação de preferências sociais pela comunidade, como é o caso dos clubes, sindicatos e igrejas. Portanto nem chegam ao começo do entendimento sobre formas de combater suas imperfeições, como a segregação racial, sexual ou religiosa e… os linchamentos. Em resumo, há diferentes graus de combinação sobre o grau de imperfeição no funcionamento nas três formas citadas de agregação de preferências sociais. Que dizer da discussão sobre formas honestas de superá-las?
Mais uma desfaçatez consiste em dizer que o estado é grande, quando sabem que os serviços que ele presta na produção de bens públicos ou de mérito são deficientes, ao mesmo tempo em que há uma profusão de funcionários governamentais enviesando os gastos públicos para um rumo desigualitário de “salários” estratosféricos. Ou seja, alardeiam problemas no lado da receita pública, ou seja, no simples ato que leva o governo a arrecadar tributos para financiar o gasto público. É desfaçatez sugerir que o problema do setor público brasileiro reside nos impostos, deixando omissa a referência a sua composição, que poderia substituir a enorme carga indireta pela taxação sobre a renda, o patrimônio e a herança. Ainda nesta linha, além do enorme gasto no pagamento dos serviços da dívida pública, transparece a visão elitista dos arautos da privatização. Sendo o Brasil um país de espantoso grau de desigualdade na distribuição da renda, privatizar significa retirar a propriedade diluída sobre a população e transferi-la à elite econômica. Qual o grau de isenção no processo, quando se considera que o Brasil é um país classificado como de renda média, mas com menos de 10% da população detendo meios para adquirir o que quer que seja além das despesas do cotidiano? Sem desfaçatez, podemos sugerir que, se é para reduzir a participação do governo nos setores produtivos, mais vale recorrer-se à criação de um fundo nacional de desenvolvimento, distribuindo uma e apenas uma cota intransferível a cada brasileiro, ainda que autorizando-o a alugá-la.
Vejamos outra prova da desfaçatez dos arautos do conservadorismo. Ao confrontar a liberdade pré-hobbesiana com seu moderno oposto arrowiano, torna-se claro que nenhuma dessas configurações é interessante no mundo em que vivemos. Por isto, pensar em atribuir aos mercados o caráter soberano na regulação das relações sociais é, para cientistas sociais educados, manifestação de desfaçatez. Ao mesmo tempo, sabendo da existência de falhas de mercado, governo e comunidade, não é sensato à sociedade desejar apoiar-se centralmente em algum dos elementos do tripé. A sabedoria exibida em alguns países, e inível a outros, localiza-se precisamente em uma combinação entre eles.
Mais desfaçatez aparece quando vemos a argumentação dos arautos do estado mínimo, por desprezarem o papel da política econômica nas áreas fiscal (gasto e tributos) e monetária (crédito ao empreendedorismo). Mesmo que o estado servisse apenas para, digamos, promover a segurança nacional e a diplomacia, ingressaríamos no debate sobre como financiar esse gasto. Mas, já que existe inarredável necessidade de tributação, começa-se a pensar sobre a conveniência de usar impostos diretos ou, por contraste, indiretos. Além disso, também devemos cogitar da conveniência da expansão dos atributos do estado, provendo o consumo de bens de mérito (insulina) e reduzindo o dos bens de demérito (aguardente).
Haverá maior desfaçatez do que a ação do senado federal de tornar Dilma ré? Ré de um crime de ficção, um crime controverso, um crime não-crime, uma acusação que não resiste a foros da decência. E que mostrou novamente a troca de favores do governo interino com os senadores, a influência do executivo sobre as verbas orçamentárias a distribuir aos senadores, também exibindo o caráter de políticos que se acovardaram, impedidos de pronunciar a palavra golpe.
É por tudo isso que, ao vermos as sucessivas medidas adotadas pelo programa de governo de Aécio-Temer, somos forçados a pensar em desfaçatez, devendo – ato contínuo – pensar nas formas de desmascará-los. Precisamos contribuir para que o povo tome consciência de suas precárias condições de vida num país de tão severas desigualdades. Como proporções da população, há mais ricos do que pobres vivendo como nababos, contrastando com a multidão formada mais por pobres do que por ricos vegetando nas prisões nacionais. Não há saída: a partir de suas precárias condições de existência é que deve surgir a organização destinada a preservar o lulismo contra sua substituição conservadora e golpista.
Escola sem partido e doutrinação de ditadura 2g456f
João Alberto Wohlfart
Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
Está em discussão o projeto de transformar as escolas num espaço sem partidos políticos. Se a educação brasileira já não tem qualidade suficiente para assegurar a liberdade e a cidadania aos alunos e acadêmicos que a frequentam, essas prerrogativas educacionais tendem a desaparecer. Isto significa dizer que não se poderá mais falar em movimentos sociais, Direitos Humanos, Reforma Agrária, políticas para negros, integração social das minorias, políticas populares etc. Do ponto de vista teórico, isto significa proibir falar de Hegel, de Marx, de Paulo Freire, de Leonardo Boff, de Einstein e de tantos outros intelectuais progressistas e libertários. Paradoxalmente, os idealizadores do projeto pretendem introduzir o ensino do criacionismo nas escolas.
Uma escola sem partido não tem como objeto evitar nas escolas possíveis conflitos entre professores e entre alunos no que tange a posturas que envolvem partidos políticos de esquerda e de direita. Seria algo equivalente a chacotas e brigas entre torcedores do Grêmio e do Internacional, do Flamengo e do Fluminense, do Cruzeiro e do Atlético Mineiro etc. O objeto desta questão é muito mais radical no sentido de que exclui das escolas questões éticas, políticas e sociais para se transformar numa espécie de doutrinamento dogmático e conteudístico sem crítica social.
Uma escola sem partido retira dela o debate e a discussão de questões políticas e sociais. Nestas situações, não interessa a origem social do aluno e as suas condições de aprendizagem, mas o perigo é que os alunos se transformação numa massa indiferenciada destinada a receber puros conteúdos a serem interiorizados como verdades absolutas. Os conhecimentos a serem trabalhados nas escolas tendem a ser neutros, com ocultamento sistêmico da sua vinculação com a sociedade, com a política e com a cultura em diferentes níveis de expressão. Forma-se uma espécie de pensamento único, sem discussão e sem contradição, e sem o processo de mediação social do conhecimento e da aprendizagem. Na escola sem partido desaparece a implicação da origem social do aluno e a preocupação com os desdobramentos desta condição fundamental no conhecimento, na aprendizagem e nas relações entre sujeitos escolares.
Há um indicativo claro de ruptura da relação fundamental entre escola e sociedade. Em outras palavras, se partimos do pressuposto de que a escola deve estabelecer as condições para a efetiva transformação da sociedade, porque ela problematiza as estruturas sociais e põe as condições epistemológicas para pensá-las diferente, ela se transforma em ocultadora das relações sociais. Depois de um longo processo de discussão na perspectiva de uma escola problematizadora, transformadora e libertadora, através de uma epistemologia crítica e uma pedagogia libertadora, está de volta um modelo de escola que não se preocupa com as questões sociais. Ao se posicionar como neutra diante da sociedade e os seus conflitos, ela repõe a condição social ao ocultar a sua estrutura e os seus pressupostos e legitimar um sistema econômico e um modelo social hegemônico.
A alegação para um projeto de escola sem partido, sem dúvida, concentra-se na eliminação da ideologia. Mas neste raciocínio, a escola se transforma numa ideologia de excelência, sem conhecimento e sem subjetividade social. Sabe-se da pluriversalidade e interculturalidade social, como se sabe das múltiplas concepções filosóficas e pedagógicas que circulam na interioridade das relações e estruturas sociais. Aprendemos que estas questões devem aparecer estruturalmente na escola e se transformar nas relações entre os diferentes sujeitos educacionais e em componentes curriculares e epistemológicos. Na escola sem partido é ocultada a pluridimensionalidade social e ela será uma exclusiva instituição social de um pequeno grupo hegemônico e de sustentação de seus interesses. A escola sem partido e sem ideologia se transforma numa propriedade social de um único partido e de uma única ideologia, a da classe dominante.
Depois de conhecermos a Pedagogia Libertadora, de Paulo Freire, e as Pedagogias Histórico Críticas, destinadas a desenvolver uma educação eminentemente problematizadora e transformadora, a tendência é a volta de uma escola cuja finalidade é a mera transmissão de conhecimentos dogmaticamente estabelecidos e sem crítica social. Paulo Freire já chamou atenção acerca da educação bancária produzida pela mera ação de transmissão de conteúdos e de assimilação acrítica dos mesmos, como se a inteligência humana fosse uma depositária de conteúdos dogmáticos. A consequência desta epistemologia objetivista e desta pedagogia autoritária é a formação de sujeitos ivos e acríticos diante das estruturas sociais e econômicas, resultando inexoravelmente numa sociedade de dominadores e dominados, de ricos e de pobres, de sabedores e de muitos que não sabem, dos que têm méritos e dos que não têm.
A proposta da escola sem partido configura-se como uma das formas eficazes de pulverizar uma das missões fundamentais da escola. É o desenvolvimento do debate entre os profissionais da educação no sentido de evidenciar as posturas, as concepções de mundo, as concepções de educação, as concepções de conhecimento etc. Faz parte do processo educativo a confrontação de posições para que os profissionais da educação sejam capazes de fazer a sua autocrítica e entre eles produzir novas sínteses. Isto induz no docente a convicção da formação e da atualização permanente ao evidenciar novas perspectivas epistemológicas, capacidade de diálogo e de confrontação com posições diferentes e a construção da sistemática da interdisciplinaridade. A escola sem partido não considera a importância das posturas diferenciadas dos docentes e os transforma em especialistas em determinados conhecimentos a serem simplesmente reados.
Com quase certeza, a concepção de conhecimento implícita a tal projeto não será outra coisa que a sua pretensa neutralidade. Nesta acepção, conhecimento não combina com política, com questões sociais e com as posições dos diferentes sujeitos educacionais. Neste âmbito extremamente perigoso, não será mais possível pensar no conhecimento como uma estrutura epistemológica historicamente situada, socialmente mediada, economicamente crítica e construído a partir de uma situação social concreta. Para os golpistas, o conhecimento deve ser determinado como um mero dado, como um universo teórico que se basta a si mesmo e interiorizado acriticamente. Nisto, como o conhecimento não a pelo crivo da discussão e da problematização, se transforma num simples dado teórico a ser reado. Com esta postura, o aluno dificilmente aprende a pensar, desenvolver um raciocínio crítico próprio e a se posicionar teoricamente.
A escola sem partido é a faceta teórica da ditadura, com vistas à doutrinação ideológica que legitima um sistema político e econômico estabelecido. Como se não bastasse, a manipulação dos meios de comunicação social já desempenha o papel de catequizar as mentes e os corações dos fieis seguidores do modelo capitalista e da política que o legitima. O projeto aqui questionado é uma ferramenta que contribui na formação de formas de conservadorismos e fundamentalismos sociais, políticos, religiosos, doutrinais etc. Nestas condições, a educação não será mais o meio para a construção da liberdade dos cidadãos e da cultura de uma nação, mas retorna o velho adágio popular segundo o qual a educação tem como meta a adequação das massas aos interesses capitalistas de uma pequena elite.
A proposta da escola sem partido é uma contradição implosiva nela mesma. Os partidos desaparecem das escolas, mas nelas permanecerá um único partido hegemônico e sustentador dos interesses do grande capital. Do ponto de vista da cosmovisão, desaparece o debate e o diálogo entre diferentes visões de mundo e a possibilidade de constituição de novas sínteses teóricas, em nome de um pensamento único ao qual todos terão que se submeter. Desaparece a escola que desenvolve uma metodologia que visa à problematização e transformação social, para dar lugar a uma escola que encobre as estruturas sociais e legitima o modelo social estabelecido. Ao invés da aprendizagem no posicionamento pessoal, na argumentação, na problematização da realidade, na convivência com as diferenças, a escola será o lugar onde todos repetem os mesmos conteúdos dogmaticamente reados e timidamente assimilados. No lugar de reconstruir criticamente a história desde o olhar da periferia e da dominação, ela será narrada na ótica dos dominadores.
O Sentido do Igualitarismo 5z4959
Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Vivemos uma quadra peculiar na vida comunitária do Brasil, aliás, mais apropriado é falar naqueles dois brasis de Jacques Lambert. Num deles, o das lideranças empresariais e seus ventríloquos, há estado em excesso. No outro, veem-se ignorância, violência, corrupção, crime contra o pobre: óbvios indícios de estado escasso. No primeiro, paga-se muito imposto, enquanto que, no Brasil dos miseráveis e pobres, não se observa o princípio tributário de arrecadar conforme capacidade de pagar do indivíduo.
O igualitarismo, a rigor, é uma doutrina político-econômica que quer acabar com qualquer diferença, deseja uma população conformada por indivíduos de renda e atributos idênticos. Quer? Não, claro que não, pois a desigualdade é um fenômeno natural: gordos, possivelmente comem mais que magros, e baixinhos seguramente gastam menos tecido em uniformes escolares que jerivás. Ainda assim podemos defender a concepção de que o alisamento do consumo per capita, ou melhor, as sociedades que garantem a seus membros pequenas diferenças no consumo per capita têm melhor desempenho que as demais. Entretanto apresento dois avisos de alerta. Primeiramente, não defendo o igualitarismo da pobreza, em que todos são iguais perante uma ou duas magras refeições por dia. Além disso, tampouco penso em igualitarismo numa sociedade com baixo grau de cultivo à liberdade pessoal. O crescimento econômico permanente é um projeto de enorme número de simpatizantes, mas, claro, sem unanimidade, pois um crescente número de neomalthusianos considera que é ele que está levando o planeta aos desequilíbrios ambientais que – alegam – culminarão por arruiná-lo. Estes antagonistas do crescimento econômico não percebem que o desenvolvimento sustentado não é incompatível com o capitalismo, podendo servir-se de suas virtudes produtivas para garantir qualidade de vida, ou seja, maior consumo de bens e serviços, mais educação e cultura e, principalmente, maior longevidade.
Unindo o direito à liberdade com os cânones da igualdade, vemos a concepção da sociedade justa concebida por John Rawls (1971). O filósofo americano apresenta um resumo na seguinte listagem:
1. Todos têm igual direito à mais ampla liberdade compatível com a dos demais indivíduos.
2. A desigualdade social e econômica deve ser organizada de modo a:
a) permitir que as oportunidades de emprego sejam abertas a todos e
b) gerar o maior benefício aos detentores de menos posses.
Segue-se que, na sociedade justa, não posso ser dono de escravos nem – ainda bem – deixar-me predar, como uma fração da humanidade tem sido desde tempos imemoriais até o presente. Ponto positivo: não podemos ser escravizados. Mas que dizer de um indivíduo e sua família que gozam da liberdade de praticar um consumo conspícuo, de pompa e ostentação, contrastando com bilhões de pessoas que não transcendem mais que a existência bruta? Estarão eles gozando de um grau de liberdade compatível com as demais famílias? Além da falta de liberdade, a definição de Rawls fala diretamente na desigualdade como inimiga da sociedade justa, mostrando caminhos constitucionais para diminuí-la. O primeiro deles é o combate às sociedades de classes, castas ou estamentos poderosos, como ainda são a indiana e a chinesa, cabendo registrar o nepotismo brasileiro. Espraiando-se pelos três poderes da república, inclusive entrecruzam-se conluios entre juízes e deputados sobre empregos cruzados (parente de um no gabinete do outro, e vice-versa), entre governadores e senadores sobre como distribuir os “cargos em comissão”, e por aí vai.
Por fim, quando Rawls fala em manejo da desigualdade com o objetivo de beneficiar os menos aquinhoados, sou levado a crer que ele está falando numa legislação que contemple um imposto de renda progressivo: uma faixa de isenções para todos, sucedida por uma alíquota reduzida para ganhos reduzidos, mas superiores àquele mínimo que garante a isenção, sucedida por outra alíquota maior para os mais ricos, não incidindo sobre os rendimentos capitulados nas duas alíquotas anteriores, e assim sucessivamente. No tempo dos militares, alíquota máxima era de 50%, tendo caído no governo Sarney aos atuais 27,5%.
Ao refletirmos sobre os contornos rawlsianos da sociedade justa, tomo a liberdade (compatível com a dos leitores…) de apresentar a concepção de David Harvey (1980):
1. Desigualdade intrínseca: todos têm direito ao resultado do esforço produtivo, independentemente da contribuição.
2. Critério de avaliação dos bens e serviços: valorização em termos de oferta e demanda.
3. Necessidade: todos têm direito a igual benefício.
4. Direitos herdados: reivindicações relativas à propriedade herdada devem ser relativizadas, pois, por exemplo, o nascimento em uma família abastada pode ser atribuído apenas à sorte.
5. Mérito: a remuneração associa‑se ao mérito; por exemplo, estivador e cirurgião querem maior
recompensa do que ascensorista e açougueiro.
6. Contribuição ao bem comum: quem mais beneficia aos outros pode clamar por mais recompensa.
7. Contribuição produtiva efetiva: quem gera mais resultado ganha mais do que quem gera menos.
8. Esforços e sacrifícios: quanto maior o esforço, maior a recompensa.
Sem expor contradições quanto à concepção de Rawls, o geógrafo americano confronta-nos com o mecanismo da renda básica universal, estabelecida no Brasil por meio da lei 10.835/2004, muito adequada para substituir o Programa Bolsa Família criado no ano anterior. Com a renda básica, por exemplo, os pobres poderiam comprar alimentos e roupa, ao o que os ricos podem deixá-la diretamente nas mãos do tesouro nacional à espera do ajuste da declaração do imposto de renda.
Ainda assim, a verdadeira chave da manutenção do traço igualitário não é a renda básica, mas o emprego. Todavia, na sociedade capitalista, a chave do emprego localiza-se no nada livre mercado de trabalho, no jogo das forças da oferta e procura por trabalho. Pois é precisamente aí que reside a fábrica da desigualdade, pois há critérios díspares de remuneração entre as empresas e entre as pessoas. Além disso, os excedentes de oferta de trabalho são proverbiais, sendo raros os períodos em que se observam salários crescendo sob a impulsão de maior demanda por trabalho, e corriqueiros momentos em que alguém deseja um emprego e não encontra. Para este desequilíbrio fundamental na chamada distribuição primária da renda (entre trabalhadores, capitalistas e arrecadação de impostos indiretos pelo governo) criado pelo mercado, só há uma saída: tentar consertá-lo, atribuindo ao governo o papel de empregador de última instância, ou seja, com ações alheias ao mercado de trabalho.
A primeira, mais moderna e necessária, é a criação do Serviço Municipal proposto pelos estudiosos das finanças públicas. Não se trata de “emprego”, no sentido tradicional de trabalho assalariado, salários e ordenados. Sua existência torna-se necessária nos países com tradicionais excedentes de mão de obra, a fim de organizar a vida em sociedade em torno das dimensões econômica e solidária. Não que estas sejam as mais importantes, mas por serem elas dirigidas às necessidades materiais cujo atendimento como resultado da livre ação do mercado é insuficiente. Por exemplo, cuidados sociais (não necessariamente dos familiares) para com jovens e velhos. Além deles, a jardinagem urbana, nas margens de avenidas, estradas e rodovias, etc., são fontes inesgotáveis de ocupação de mão de obra. Ilustra a carência desse encaminhamento do igualitarismo a proliferação do mosquito Aedes Aegyptii, retratando a irresponsabilidade do setor público na coleta e processamento do lixo (perversamente “terceirizado” pelas prefeituras a detentores de empregos precários), do esgoto e da mata ciliar. Seu enquadramento requer trabalho para lixeiros, pessoal de manutenção e jardineiros.
Mesmo neste exemplo ilustrativo, o círculo virtuoso aparece altaneiro: o filho do lixeiro pode estudar violino e o professor de violino pode comprar no açougue do bairro, cujo proprietário está juntando um dinheirinho, contratando uma agência de viagens a fim de enviar sua filha a um eio no Beto Carreiro (ou na Disneylândia, por quê não?). O despachante da agência de viagem também se beneficiará por ter um emprego, impulsionando o fluxo da renda com a que ele próprio gera, apropria e absorve.
Ainda que idílico, este mundo urdido pelas políticas igualitárias é complementar ao funcionamento do mercado de recursos, em particular, o de trabalho. Mas não precisamos ir muito longe para entender que a distribuição da renda nele engendrada não é capaz de eliminar a desigualdade. Resta, em menor grau, a ação comunitária. E ao estado, além do papel de empregador de última instância, a ação em três frentes: a tributação, o gasto público e o crédito ao emprego autônomo de pequenos empresários. Mas que temos visto durante esses meses de interinidade de Michel Temer e seu governo?
Políticos. São esses os homens que, enquanto estamento, têm uma vida fácil de gravata e ar condicionado no país tropical, que terão régias aposentadorias autoconcedidas e outros privilégios inconcebíveis, disfarçados em direitos. São eles que avalizam as iniciativas de nulo conteúdo fraterno, tratando os pobres, a classe trabalhadora despossuída, como se fosse o inimigo de guerra. São esses homens que estabelecem os “salários” dos juízes e, ao fazê-lo, têm os ganhos destes automaticamente escorrendo sobre si.
Controle reacionário do gasto público por 20 anos? Homens que foram ungidos ao comando com grande ilegitimidade alardeiam o desejo de permanecer por mais de dois anos à frente do poder usurpado. Eles expressam a intenção de condicionar uma geração inteira com reformas malévolas que retiram um bom grau de autonomia decisória dos pilares da despesa pública, a forma regressiva de combater a desigualdade. E no front da redistribuição da renda na linha de John Rawls? Precisamente o oposto: anúncios frequentes de impostos regressivos, como a MF, manutenção das isenções fiscais, e uma taxa de juros sobre o crédito à pequena empresa verdadeiramente proibitiva, Ou seja, nem uma palavra sobre uma reforma tributária que substitua os impostos regressivos pelo imposto de renda, sistemáticos anúncios de redução nos gastos públicos, promessas de combate à inflação com a contração da oferta monetária e corte nos direitos trabalhistas e previdenciários.
Com um perturbador índice de desigualdade de Gini, superior aos já elevadíssimos 0,50 de 1959, o Brasil permanece um campeão da falta de oportunidades à maioria da população de todas as idades. Durante os governos Lula e Dilma, houve algumas medidas tíbias na linha de reduzi-la, sendo gradualmente revertidas pelo movimento político que ufana-se de pregar liberdade e democracia, mas permitindo prever mais desigualdade, maus tratos e morte. Recorrem à velha quimera de que o emprego e a renda serão gerados com o crescimento econômico, milagre que nem os vigorosos crescimentos da China ou da Índia têm sido capazes de garantir. Não se dão conta de que a única forma de resgatar as populações carentes é por meio da renda básica, além de emprego publico que seja um colchão voltado à produção de bens públicos (segurança, saneamento) e de mérito (educação, saúde).
Com a saída temporária da presidenta Dilma, o que estamos testemunhando é uma colossal reversão daqueles padrões ameaçados de cortes nos gastos em educação e saúde, na moradia popular e na previdência. Pelo lado da receita, não se profere uma única palavra sobre a transformação de sua estrutura trocando os impostos regressivos por progressivos. Ao contrário, a necessidade de usar impostos regressivos para combater o déficit público. Nada se fala sobre o trio igualitário: imposto sobre a renda, sobre a riqueza e sobre a herança. A matança de pobres especialmente negros tende a continuar, a covarde e sistemática agressão de homens sem caráter à mulher brasileira é uma realidade, a moralidade rançosa no trato da questão do aborto é criminosa e o abatedouro humano em que se transformaram os transportes é formidável. As perspectivas são tristes, o futuro provável é amargo e nossa tarefa na contestação ao golpe é hercúlea.
Ditadura golpista e criacionismo 5o6z2a
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O regime ditatorial ao qual o Brasil atualmente está submetido tenta trazer de volta a antiga e obsoleta doutrina do criacionismo. Aliás, o que facilmente se vê por aí é o retorno de questões há muito tempo superadas e radicalmente antagônicas ao contexto histórico atual. O que há de tradicionalismo, conservadorismo, patriarcalismo e posturas reacionárias retorna com muito mais força em relação às suas manifestações históricas em tempo real. Em instâncias oficiais dos poderes da república é proposto o ensino do criacionismo nas escolas, seguramente com o propósito de dar sustentabilidade religiosa aos interesses econômicos e políticos em jogo.
Partimos da estruturação da sociedade, onde a infraestrutura é ocupada pela economia e o seu sistema de organização, e a superestrutura é ocupada pelo sistema político, pelas leis, pelo sistema judiciário, pelo sistema de ideias e pela religião. No momento atual, a proposta do criacionismo tem relação direta com a significativa bancada religiosa do congresso nacional, de natureza neopentecostal e ultraconservador que precisa impor uma doutrina religiosa conservadora para legitimar os seus interesses. O criacionismo é uma espécie de névoa espiritual para assegurar a benção divina a um determinado projeto econômico que serve às elites conservadoras do país.
Dentre os múltiplos retrocessos existentes neste governo golpista, a proposta do criacionismo é expressão doutrinal do conservadorismo político. Trata-se de uma antiga doutrina religiosa segundo a qual a natureza e o mundo foram criados por Deus. Antes do mundo, este Deus é absoluto, imaterial, eterno e intemporal, decidiu criar o mundo como uma esfera rebaixada, contingente e finita. Este mundo saiu de acordo com a mente divina, imprimiu nele uma lei que é imutável e não cabe ao homem a mudança desta trajetória. O homem e a sociedade obedecem a um curso inexorável ao qual simplesmente devem reverência. Para o criacionismo, a estrutura social está estabelecida de acordo com a vontade de Deus, razão pela qual as relações sociais estão divinamente regradas e teologicamente estabelecidas. De acordo com o criacionismo tradicional, as coisas simplesmente são e não podem ser transformadas.
O criacionismo está ultraado do ponto de vista sistemático, histórico e conceitual. Do ponto de vista sistemático, a realidade e os conhecimentos da atualidade são muito mais amplos e complexos que o criacionismo não dá mais conta. Do ponto de vista histórico, está ultraado porque temos outras concepções muito mais avançadas e mais adequadas para um mundo em constante transformação, tais como as Teorias da Evolução, as Teorias da Complexidade e dos Sistemas, as Teorias Dialéticas da História, as Cosmologias contemporâneas, apenas para citar algumas. Do ponto de vista conceitual, o criacionismo não dá conta dos conceitos e argumentos requeridos pelos conhecimentos atuais, pois não é capaz de incorporar argumentos que expressam a dinamicidade e complexidade do mundo. De tudo isto, contra um Deus que age externamente em relação ao mundo, as ciências contemporâneas pensam um mundo articulado a partir da imanência de sua própria interioridade cuja força o articula em círculos sistemáticos como a Natureza, a Sociedade, a História e o Universo.
O criacionismo somente sobrevive nas religiões neopentecostais, nos setores mais conservadores da Igreja Católica e nas mentes dos fiéis mais ortodoxos. Este dogma religioso tem um viés claramente ideológico porque é destinado a encobrir e mistificar a realidade para que ela permaneça intocada, segundo a vontade eterna de Deus. Isto é fundamental para o encobrimento ideológico de interesses econômicos, pois as elites dominantes usam da religião para evitar o despertar da consciência do povo. Uma religião conservadora é tudo o que o sistema econômico precisa para adequar as consciências à realidade estabelecida. No Brasil, muitas religiões catequizam massivamente o povo com um objetivo claramente político, integram a bancada religiosa do congresso nacional e representam os interesses econômicos de uma minoria.
No contexto de uma onda ultraconservadora, com retrocessos na economia, na religião, na política, na sociedade e no pensamento, chama a atenção o retorno dos fundamentalismos. Trata-se de concepções dogmáticas e autoritárias, verticalmente impostas, com a proibição categórica de manifestações de pensamentos críticos, libertadores e emancipadores. Para que isto seja socializado, pensadores progressistas são objeto de ódio e de preconceitos, tais como Hegel, Marx, Paulo Freire, Einstein etc. Os fundamentalismos se manifestam em vários campos, especialmente no universo intelectual, econômico e religioso. Na dimensão intelectual, a sociedade e as pessoas são cada vez mais impregnadas por visões tradicionais. No campo econômico, retorna uma economia de mercado com as suas regras absolutas e restrição do poder regulador do Estado, que apenas serve aos interesses dominantes. Com uma profunda sensibilidade religiosa, e facilmente manipulado por uma onda religiosa conservadora, o povo facilmente acolhe velhas ortodoxias religiosas nas quais e através das quais sustentam a classe dominante.
No contexto atual, os fundamentalismos são amplamente apoiados e incentivados pelos Estados Unidos. O fundamentalismo religioso, com apoio forte no criacionismo, forma uma “consciência social” conservadora segundo a qual a base social incorpora uma visão de mundo adequada ao modelo econômico estabelecido. Nunca se viu, como atualmente, a manifestação em conversas espontâneas e em espaços oficiais a expressão de concepções econômicas e políticas ultraconservadoras. A ideologia do golpe estabelecido e os interesses econômicos que se escondem na imanência do mesmo, estão fortemente respaldados pela visão conservadora de mundo e de sociedade, principalmente induzidos pelos meios de comunicação social e pelo fundamentalismo religioso baseado no criacionismo. Com forte repressão ao pensamento crítico e inovador, estabelece-se uma mística social que reproduz os interesses dominantes.
O fundamentalismo religioso do criacionismo tem incidência na religião. Esta corrente sustenta uma religião que proporciona uma visão estática de mundo, onde tudo está definitivamente dado, diante do qual as pessoas interiorizam o mundo como pronto e acabado. O criacionismo tem incidência forte na política, com representantes que justificam as suas ações a partir de um dogmatismo religioso. Em outras palavras, a corrupção política é escondida embaixo do manto sagrado da religião devocionista e fundamentalista. Disto resulta um Estado teocrático guiado pelos princípios de uma determinada religião, o que facilmente resulta na transformação da economia em religião econômica. A determinante incidência da economia na vida das pessoas e da sociedade, na condição do fenômeno do fetichismo da mercadoria, se transforma numa religião dominadora e mistificadora. E o criacionismo tem incidência forte na dimensão do conhecimento e da cosmovisão. Dela resulta uma visão vertical, estática, autoritária e essencialista do mundo, tudo o que é necessário para dominar as massas.
O criacionismo proporciona o espetáculo de uma visão vertical de mundo. É o Deus sábio, absoluto e imóvel lá em cima no céu, e nós e o mundo finito e imperfeito cá embaixo. Trata-se de uma estrutura vertical e incomunicável, na qual o mundo é estruturado em estruturas justapostas e irredutíveis entre si. Esta teologia ultraconservadora, traduzida para o universo político e social, resulta num pequeno grupo que manda e dita as regras, e os outros simplesmente precisam acatar e obedecer. Os golpistas têm uma mentalidade autoritária e eles impõem os seus interesses ao povo, odiando a democracia. Do ponto de vista econômico, seguindo os caminhos do criacionismo, o grande capital impõe os seus interesses, independente das regras democráticas e dos anseios do povo.
O criacionismo que as classes políticas ultraconservadoras querem nos impor é obsoleto, autoritário e ultraado, assim como o projeto dos golpistas. Em nome daquele deus representado de barba branca, no melhor estilo de um senhor feudal medieval, querem impor uma moralidade dos bons com a condenação de uma grande população formada por negros, mulheres, jovens, agricultores familiares e índios. Trata-se de uma espécie de maniqueísmo social onde Deus abençoa os “bons” e castiga os “maus”, e encobre os caprichos dos golpistas.
O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil 4e5f2y
José Carlos Moreira da Silva Filho
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Brasil
Por mais frágeis que os movimentos de resistência política possam parecer, eles sempre estão alimentados pela memória e pelos sonhos daqueles que no ado tiveram a coragem e a ousadia de nadarem contra a maré, de afirmarem as liberdades públicas, o respeito à diversidade e à pluralidade e os projetos de sociedades mais justas, igualitárias e fraternas.
O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, ocorrido nos dias 19 e 20 de julho de 2016 no Teatro Casagrande em pleno Leblon, alimenta-se da memória dos célebres Tribunais Russell. O primeiro deles foi instalado em 1966 a partir de uma iniciativa do Nobel da Paz Bertrand Russell e do filósofo Jean Paul Sartre que reunindo um invejável time de intelectuais e notáveis do mundo todo colocou a Guerra do Vietnã e os crimes internacionais praticados pelos Estados Unidos da América no banco dos réus.
Quase uma década depois, nos anos de 1974, 1975 e 1976, por iniciativa e protagonismo dos exilados brasileiros e chilenos e do humanista italiano Lelio Basso, que também havia participado ativamente do primeiro Tribunal Russell, aconteceram em Roma e em Bruxelas os Tribunais Russell II para a América Latina, que com a presidência de Jean Paul Sartre e a participação de um outro igualmente invejável time de jurados, colocou as ditaduras latino-americanas no seu devido lugar: o banco dos réus ¹.
Tais tribunais integram um tipo de evento internacional chamado de “Tribunais de Opinião”, que atuam à margem da institucionalidade, organizados e realizados pela própria sociedade civil organizada. O que se julga é um evento de grandes proporções que tenha implicado na violação de direitos básicos da sociedade, frequentemente comandado e executado pelo Estado, que atua de modo ilegítimo, irregular ou ilegal em ações massivas de violações de direitos.
Os participantes do Tribunal de Opinião têm um lado, pois já partem do pressuposto da inexistência de paridade de armas e da completa instrumentalização das instituições públicas e da violação das cláusulas mais elementares do Direito Internacional dos Direitos Humanos ou do Direito Internacional Humanitário. Se os Tribunais de Opinião acontecem é justamente por não existirem espaços justos, isentos e democráticos na institucionalidade dos Estados violadores para o conhecimento amplo dos fatos e das violações que estão sendo praticadas, como ocorre por exemplo quando se tem um Supremo Tribunal Federal que procura atribuir um verniz de legalidade a um golpe de Estado parlamentar e abre mão do seu papel de limitar o poder desvirtuado em benefício da soberania popular e da cláusula democrática.
De todo modo, não se elimina a possibilidade de que o Tribunal de Opinião apresente a defesa de quem está sendo julgado. Esta defesa se apresenta com a exposição da narrativa oficial adotada pelos governos e grupos que estão praticando as violações em questão na tentativa de negá-las, explicá-las ou justifica-las, evidenciando as razões jurídicas, políticas e econômicas que estão sendo arguidas pelos violadores.
Neste Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, coube a mim, juntamente com @s grandios@s juristas Luis Moreira, Magda Barros Biavaschi e João Ricardo Dornelles, tod@s testemunhas de defesa do impeachment da Presidenta Dilma Roussef e conduzid@s e orientad@s pela advogada de defesa, a magnífica Margarida Maria Lacombe Camargo, fazer o papel de Advogado do Diabo.
Ao encarnar a canhestra lógica jurídica dos golpistas, tendo lido todas as peças de acusação que tramitam no Congresso Nacional, beneficiei-me duplamente. Permiti a mim mesmo um exercício de desprendimento e compreensão do outro , mesmo que ele me ameace e me violente. E ao fim e ao cabo me deparei com uma miragem, com uma farsa jurídica insustentável, raciocínios mirabolantes, uma completa perversão e vilipêndio da legalidade democrática e das mais elementares regras do Direito.
A denúncia e as alegações finais escritas por Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr, além do relatório do Senador Antonio Anastasia, constroem uma doutrina absolutamente permissiva do impeachment no Direito brasileiro, que abre espaço a uma indevida fiscalização ordinária dos atos d@ President@ eleit@, quando deveria ser um processo excepcionalíssimo e rigoroso, adstrito às hipóteses constitucionais.
Como bem frisou a Dra. Margarida em sua manifestação no Tribunal, o próprio ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que quanto à Lei 1.079 de 1950, que trata dos impedimentos por crime de responsabilidade, “cabia tudo ali”, que ela poderia servir de pretexto para criminalizar qualquer ato d@ President@ da República se assim o Congresso Nacional o desejasse.
Margarida também lembrou que esta lei de 1950 foi redigida pelo gaúcho Raul Pilla, conhecido por ser o “papa do parlamentarismo”, e que havia sido previamente derrotado em sua campanha para que a Constituição de 1946 adotasse o sistema parlamentarista. Interessante notar que foi Raul Pilla quem redigiu a emenda que adotou o sistema parlamentarista pra retirar os poderes presidenciais de João Goulart em 1961 diante da pressão dos inumeráveis grupos golpistas daquela época, militares e civis.
Vê-se que o espírito que animou esta lei foi o parlamentarista. É curioso notar que sempre que quando algum governo no Brasil começa a desenvolver políticas populares voltadas ao combate da desigualdade social ele sofre golpes adornados por propostas parlamentaristas. Dada a história do nosso sistema político, é fato que o nível de representatividade popular no Poder Legislativo não condiz com a realidade da sociedade, e que é muito mais factível a vitória representativa do voto popular para eleger os chefes do Executivo no sistema presidencialista.
Ora, submeter @ President@ da República a dispositivos de constante fiscalização dos seus atos de gestão com poderes de interromper o seu mandato é perverter por completo o valor da soberania democrática resultante do voto direto, universal e periódico. É diminuir o valor do voto justamente onde ele é mais forte e poderoso: nas eleições para President@ da República. Não é à toa que esta foi a bandeira que unificou todo o país no período da redemocratização durante as Diretas Já.
Anular esse poder desfazendo o seu resultado em favor dos parlamentares ou de outros agentes públicos que nem sequer são eleitos, como é o caso de procuradores e juízes, significa simplesmente perverter a cláusula democrática, verdadeira pedra de toque do Estado Democrático de Direito, significa favorecer os interesses oligárquicos, plutocráticos, elitistas, gananciosos e autoritários, historicamente hábeis em manipular esses espaços institucionais.
O jurista mexicano Jaime Cárdenas Garcia, um dos jurados no Tribunal, observou em sua manifestação que o golpe no Brasil é a terceira etapa de uma nova estratégia do imperialismo na América Latina, já testada em Honduras e no Paraguai, o de interromper o processo soberano popular de construção de projetos sociais de igualdade, justiça social e aprofundamento democrático fazendo uso dos mecanismos jurídicos formais instrumentalizados pela exacerbação da esfera dos poderes institucionais em desfavor do princípio da soberania democrática. É a prevalência autoritária do projeto elitista, segregador e predatório do capitalismo neoliberal, que por razões óbvias encontra maiores dificuldade em chegar ao poder pelo voto.
Cárdenas também assinalou que na América Latina o impedimento não deveria estar previsto nas Constituições, pois ele se presta às manipulações institucionais da soberania popular. Deveríamos ter apenas a possibilidade de revogação do mandato, operada pelo mesmo princípio : o voto popular, de que tal decisão não deveria jamais ser terceirizada aos funcionários do Estado.
Em vez disso, o Brasil alarga ainda mais a brecha sabotadora da soberania popular ao submeter a Constituição de 1988 à lógica parlamentarista de uma Lei editada em 1950, e mesmo após o sistema parlamentarista ter sido rejeitado no plebiscito de 1993 por quase 70% da população. Como se não bastasse isto, mesmo considerando a existência da Lei de 1950, o processo ora em curso não consegue de modo consistente identificar qualquer crime de responsabilidade. Ter lido as peças da acusação de modo detalhado mostrou isto de maneira inconteste.
No caso das célebres “pedaladas fiscais” o malabarismo é bisonho: o inciso VI do Art.85 da CF de 1988 afirma que são crimes de responsabilidade atos que atentem contra a “lei orçamentária”. As peças da acusação no processo de impeachment afirmam que nesta expressão dever-se-ia incluir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ora, a questão fiscal é uma coisa, a orçamentária é outra, ainda que estejam relacionadas. Querer incluir uma lei que não é orçamentária em um dispositivo excepcional e com consequências drásticas para o mandato presidencial é dar uma amplitude que o constituinte não quis dar.
Mas não para por aí o alargamento. Indo além, o Senador Anastasia afirma que como a Lei de Responsabilidade Fiscal diz no seu Art.73 que as infrações a esta lei serão punidas com base, entre outras leis, na Lei de 1950, daí ele opera um mortal triplo carpado para afirmar que violar qualquer dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal implica em crime de responsabilidade. É quando surge resplandecente o Art.36, que veda a realização de empréstimo entre o ente da federação e instituição financeira por ele controlada. No entanto, em nenhum lugar da lei se diz que a infração a este artigo é um crime de responsabilidade! Ah! E outro salto triplo carpado: atrasar o pagamento de recursos aplicados para subvenção de programas que garantem direitos sociais, como ocorreu no Plano Safra, transformou-se magicamente em uma operação de crédito. Digo magicamente porque até então no Brasil nenhum livro de Direito Financeiro ou jurisprudência havia assim considerado.
Com base na fantasia criada, partiu-se para a identificação do que seria outro crime de responsabilidade: a edição de decretos de crédito suplementar fora da meta fiscal, já que se a fantasia fosse considerada realidade não haveria superávit a autorizar os créditos, condição prevista na Lei de Orçamento de 2015. Deixando a fantasia de lado, a edição desses decretos seguiu rigorosamente as condições exigidas em lei, e é recurso comum utilizado costumeiramente pelos governos anteriores.
Pra agravar ainda mais esta farsa, é estarrecedor notar que todos os atrasos de pagamentos do tesouro às instituições financeiras federais foram quitados em janeiro de 2016 e que 2015 fechou com a meta compatível aos gastos realizados, tendo a meta sido alterada em dezembro diante dos efeitos recessivos da crise econômica mundial. No entanto, isso parece não ter qualquer relevância para os denunciantes do impeachment e os que os apóiam, sob o pretexto de que se a Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei que protege a precaução, então qualquer ato considerado temerário vira um crime de responsabilidade, ainda que não tenha havido prejuízo aos cofres públicos e os ivos tenham sido saldados. É um “crime formal de mera conduta”, dizem eles, não interessa o resultado.
Então vejamos, amplia-se o que não deve ser ampliado, transforma-se orçamento em fiscal, qualquer violação ao fiscal a a ensejar impedimento, atraso no pagamento de subvenção operada por bancos vira operação de crédito e resultado sem violação ao orçamento do ano dá lugar à crime de mera conduta. Como registrou no Tribunal Internacional o jurado Carlos Augusto Galvez Argote, especialista em Direito Penal e ex-juiz da Corte Suprema de Justiça na Colômbia, em homenagem aos princípios mais elementares do Direito Penal e da cláusula democrática, exige-se que o crime ensejador da perda do mandato presidencial popular seja estritamente previsto na Constituição ou a partir dela, restando vedado qualquer juízo de analogia ou alargamento. Querer afastar essa condição para que o Parlamento decida o que quiser, com a desculpa de que se trata de um juízo eminentemente político é violar a lógica e rasgar a Constituição. Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe.
Não só o crime identificado é fruto de um verdadeiro estupro hermenêutico à Constituição e à legislação financeira como também não se consegue apontar sua autoria com clareza e coerência. A Presidenta Dilma é ao mesmo tempo acusada por ato omissivo e comissivo. Ora, ou alguém praticou um crime por ter agido ou por ter se omitido. Como afirmou o advogado de acusação no Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil ², o magistral Geraldo Prado, um dos maiores penalistas brasileiros, os autores da peça inicial do impeachment teriam sido reprovados sumariamente caso fossem seus alunos. Somente restou aos defensores do impeachment invocar a “personalidade enérgica e controladora” da Presidenta para afirmar que ela foi autora dos crimes criados, ou atestar que a Presidenta era “íntima” do Secretário do Tesouro, a ponto de não se saber “onde começava um e terminava o outro”.
O processo de impeachment da Presidenta Dilma é, portanto, uma rotunda farsa, desnudada em detalhes por este Tribunal Internacional, disponível a quem assistir o vídeo ou ler a já divulgada sentença, da lavra do inigualável Juarez Tavares, juiz do tribunal. Esta sentença é seguramente a peça escrita mais forte até o momento em demonstrar que, na verdade, não temos um processo constitucional de impedimento da Presidenta, mas sim um golpe de Estado. Os jurados internacionais (da França, Espanha, Estados Unidos, Colômbia, México, Itália, Argentina, Costa Rica, todos pessoas respeitadas e reconhecidas por seu trabalho acadêmico e institucional) foram unânimes e suas manifestações foram verdadeiras aulas de Direito e conjuntura internacional, reveladoras do crescimento ameaçador da sombra neoliberal que mais uma vez assombra o nosso continente, comprometida em golpear a soberania popular, extinguir direitos, aumentar os fossos da desigualdade e submeter nossas sociedades às vontades de um capitalismo predatório e excludente.
Parabenizo a todos os que se envolveram nesse importante ato de resistência democrática, em especial à Carol Proner e ao Ney Strozake, também Conselheiros da Comissão de Anistia como eu, e que de modo incansável e competente foram decisivos para que este evento histórico ocorresse, com o apoio de inúmeros movimentos sociais, em especial a Via Campesina e o Movimento de Trabalhadores Sem-Terra.
Participar do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil foi uma experiência que me deu ainda mais forças e ganas de resistir e lutar sempre pela democracia e um projeto popular para o Brasil. Temos que resistir sempre, continuar lutando pelo retorno da democracia. Não importa quanto tempo leve. Guardem bem as pessoas que hoje resistem, mas ainda mais aos que se omitiram e aos que estão patrocinando esse golpe. Não surpreendem os autoritários de sempre, mas não nos enganemos novamente com esses golpistas que imaginávamos serem democratas. A história não esquecerá o papel ao qual cada um se prestou.
Referências:
- A editora da Universidade Federal da Paraíba em parceria com a Comissão de Anistia traduziu e publicou em 2014 os três livros sínteses produzidos nos Tribunais Russell II, intitulados: “Brasil, violação dos direitos humanos”, “As multinacionais na América Latina”, “Contrarrevolução na América Latina”.
- As testemunhas de acusação que apoiaram o trabalho do Geraldo Prado foram excepcionais: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Ricardo Lodi , Tania Oliveira e Marcia Tiburi.
Assista a integra do julgamento 1z3060
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Imprensa e jornalismo em transição: a contradição das Agendas 6p26t
Agemir Bavaresco – Filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós Graduação da PUCRS.
A movimentação dos cenários da imprensa e do jornalismo nos últimos anos registrou contradições e mudanças que apontam para a transição de modelos de empreendimento, causados pelo avanço da tecnologia que tem implicações na teoria da Agenda.
1 – Concentração empresarial em tempo digital
A primeira constatação é a convergência digital que permitiu a reunião de grupos jornalísticos, mídia, telecomunicações e Internet. Estes grupos am a intervir no mercado oferecendo vendas virtuais, montando portais, explorando nichos de o à Internet, criando provedores de serviços, num emergente shopping digital. Somado a esses fatos, as novas tecnologias desencadearam um processo de concentração global de empresas e a consequente desnacionalização do setor.
a) Mídia Global X Mídia local: Uma cadeia produtiva de mídia é formada, grosso modo, por anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação. O que tivemos no Brasil, nos últimos anos, foi uma desnacionalização de empresas anunciantes, porque as empresas estrangeiras além de adquirirem as agências de publicidade trocaram o comando de tomada de decisões, focado na matriz e com alinhamento de interesses. Junto com essa concentração empresarial global está o enfraquecimento da mídia nacional. Há, de um lado, o modelo de jornal impresso de faturamento tradicional a custos elevados e, de outro, o modelo de negócios incipiente de edição digital que não conseguiu ainda se implementar.
b) Modelo de negócio tradicional X Modelo de negócio digital: O modelo de negócios da imprensa tradicional entrou em crise com a entrada no mercado brasileiro do Google e do Facebook, absorvendo o faturamento publicitário através da interação direta com o usuário pelo preenchimento de dados, perfil e ouvindo suas opiniões e interesses. A publicidade tradicional funcionava com as seguintes estratégias: a publicidade popular usava as redes de televisão nacional para estimular o consumo de bens de massa; e a publicidade segmentada usava os jornais e revistas para atingir um público mais homogêneo e mais refinado nos hábitos de consumo de produtos e de opiniões. Este modelo dissolveu-se com a emergência da Internet e as redes sociais, sobretudo com o ingresso, por exemplo, do Google e do Facebook que articularam um modelo de negócio digital, ágil e versátil, baseado na segmentação e o o online do banco de dados instantâneo.
c) Empresas jornalísticas X Jornalismo: A rigor na origem das sociedades democráticas a liberdade de imprensa e de opinião são qualificadas de públicas, isto é, trata-se de um serviço público, independentemente, de ser estatal ou privado. A transição de modelos em curso atingiu, especialmente, o jornalismo. Cabe distinguir entre as empresas jornalísticas de imprensa da atividade jornalística, pois, isto explicita um conflito histórico entre os objetivos públicos do jornalismo e os interesses comerciais dos grupos de imprensa. O que se constata é uma perda do papel do jornalismo, pois este torna-se subordinado aos interesses privados das empresas jornalísticas, por exemplo, os jornais não expressam mais ideias, mas tornam-se instrumento de propaganda dos interesses corporativos das elites financeiras ou industriais em nível nacional ou internacional (Esta parte baseia-se em matéria de Luis Nassif. Xadrez da crise da imprensa e do jornalismo. GGN, 12/07/16). Face a estes cenários de transição da imprensa e do jornalismo coloca-se o problema da teoria da Agenda.
2 – Agenda da Mídia Tradicional X Agenda das Redes Sociais
O que faz com que as pessoas pensem determinados temas e deixem de lado outros? O que influencia ou forma a opinião pública? Conforme a Agenda Setting, teoria elaborada por Maxwell McCombs, a pauta das conversas e debates é provocada pelos jornais, televisão e rádio (meios tradicionais). Esses meios têm a força de mudar a realidade social, ou seja, informam os fatos a serem pensados ou debatidos pelo público. Eles estabelecem a pauta dos assuntos e o seu conteúdo em nível local, nacional e internacional.
Porém, em face da agenda da mídia tradicional surge a agenda das redes sociais: A internet e as redes sociais permitem que os cidadãos expressem opiniões e interesses, sem o filtro dos meios de comunicação tradicionais. Através das redes sociais muitas pautas foram estabelecidas, protestos e insurreições foram organizados. A esfera pública encontrou nas novas tecnologias uma forma de expressão direta de sua opinião, a tal ponto que alguns especialistas constatam um novo fenômeno: a formação de uma nova opinião pública.
De um lado, temos a opinião pública tradicional, agendada pelos meios de comunicação tradicionais e controlada por interesses privados e pelas regulações e poderes estatais. De outro, a nova opinião pública diferenciada pela participação inclusiva, pela autonomia, velocidade e transparência, que tem como agentes os cidadãos protagonistas e descentralizados, com mobilidade instantânea e articulados em redes sociais.
A esfera pública foi transformada pela internet que alterou o ecossistema comunicacional, criando uma nova opinião pública. O sociólogo Manuel Castells chama este fenômeno de autocomunicação de massas. Às ações coletivas em rede, como a construção colaborativa da Wikipédia, juntam-se milhares de pequenas comunidades que desenvolvem expressões de inteligência coletiva, articulando uma esfera pública autônoma e em rede.
Por isso, o controle da opinião pública, pautado pela agenda tradicional está sendo mudado pela agenda das redes sociais. As grandes corporações e agências internacionais de comunicação que detêm o poder de disseminar sua versão dos fatos e de estabelecer a agenda pública confronta-se com a agenda das redes sociais que expressam opiniões opostas, instaurando uma opinião pública contraditória com força de expressão plural e ação democrática.