Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014). Se tinha gente insatisfeita com as moderadas conquistas de posições igualitárias alcançadas pelo lulismo, só posso imaginar como estes falantes “estar-se-ão” sentindo com o temível governo Temer. Mas é precisamente esta a questão que desencadeou inúmeros golpes na ordem democrática alcançada no Brasil depois do impeachment do presidente Collor de Mello. Mais ou menos consensual, o impeachment de Collor nutriu-se precisamente da carência de capital político do presidente vencedor das primeiras eleições diretas depois do movimento político-militar que rompeu com a ordem institucional em 1964. Com pouco mais de 50 anos de deflagração da primeira, vemos agora a terceira ruptura na ordem institucional no país. Visualizo um diagrama de árvore (dendograma) em que o nó inicial é o golpismo que, rapidamente, bifurca-se em dois troncos contendo atentados às liberdades políticas e socioeconômicas, ambas ramificando-se em variadas combinações. Sem falar nos atropelos já praticados na política externa, o primeiro tronco diz respeito às motivações políticas do golpe, cabendo ao Brasil a vivência de inúmeras variantes e, agora, uma tentativa de golpe parlamentar com a proposta do impeachment do mandato de Dilma Rousseff. No Brasil contemporâneo, uma forma disfarçada de golpe consiste na chamada judicialização das ações legislativas e impugnação judicial de medidas do poder executivo. Como foi referido por estes dias nas redes sociais, o Brasil não tem um poder judiciário, mas 17 mil juízes fazendo pelo menos 17 mil tipos de justiça… Um dos troncos secundários é o chamado complô do quarteto promotores-juízes-polícia-imprensa. Novo tronco associa-se a uma tosca visão de neoliberalismo, ou melhor, a visão rasteira de libertarianismo, quando seus arautos, no final, esquecem a liberdade política e enfatizam apenas “a soberania dos mercados”. Estes golpes não são de hoje, como atestam as ações progressistas e a reação a elas que antecederam o golpe militar. Depois da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república em 1961, uma junta militar vetou a posse de seu sucessor e negociou com o congresso nacional a instituição do parlamentarismo no Brasil. Depois de alguns meses da manutenção da instabilidade política, um plebiscito restaurou o presidencialismo, quando João Goulart lançou seu programa de “reformas de base”, despontando – e despertando furores de parte das referidas classes empresariais – a reforma agrária. Mas, além dela, falava-se na promoção de uma reforma na istração pública, da política tributária e do sistema bancário. Não é de surpreender que as forças conservadoras, em plenos tempos de guerra fria e emergência do regime revolucionário cubano, invocaram o apoio dos militares, os quais, afinal, tornaram-se os protagonistas do lamentável espetáculo. Com duas décadas de duração, aos poucos, a ditadura militar foi vendo sua aceitação pela maioria da classe política corroer-se, culminando com a assembleia constituinte que determinou a realização de eleições diretas para a presidência da república em 1989. No ínterim entre as eleições que levaram Collor ao poder e às que dele afastaram os militares, vimos a eleição indireta de Tancredo Neves, carregando como candidato a vice-presidente o nome de José Sarney. Sarney veio a avalizar novo golpe ao livre exercício do poder popular, pois nunca foi empossado como vice-presidente. A nomeação do titular de sua chapa nunca ocorreu, uma vez que Tancredo Neves adoeceu antes da posse e, como tal, não foi ungido ao cargo. Sarney, que estava destinado a acompanhar Tancredo por um período de quatro anos, mas que – se Tancredo tivesse tomado posse por um minuto – seu vice teria apenas dois anos de mandato, devendo encaminhar a convocação de novas eleições. Pois ele conseguiu estender seu mandato para um quinquênio, sendo o único presidente civil a fazê-lo: os mandatos quadrienais voltaram, cabendo a Fernando Henrique mudar a constituição, dando-se guarida ao direito a uma reeleição. Antecessor de FHC, a quem Sarney – mal-humorado – não deu posse, Fernando Collor venceu uma eleição em que não faltaram de lado a lado manifestações de despreparo e prática da mentira. Aclamado no segundo turno eleitoral por uma frágil coalizão de partidos, o que chega a surpreender é que este arranjo tenha durado um par de anos. Em seu governo, a corrupção endêmica grassava em muitos segmentos do governo federal e contribuiu para que a norma institucional fosse rompida com um pedido de impeachment aprovado sem a participação do voto popular, eis que todo espetáculo ocorreu no congresso nacional. Durante os governos que o sucederam, houve relativa calma, pelo menos no que diz respeito à sanha de golpes ou impeachment. Seguiu-se à surpreendente conversão de Fernando Henrique ao ideário neoliberal a triunfal entrada em cena de Lula, que governou na relativa paz compatível com a realidade de uma enorme população pobre e desassistida sequer de direitos civis. Tal foi o sucesso econômico do governo Lula que, em escolha idiossincrática, lançou como candidata a sucedê-lo e, como tal, preservação do lulismo, a Dilma Rousseff. A presidenta – o substantivo feminino foi incorporado desde que Dilma sucedeu Wrana Panizzi na presidência da Fundação de Economia e Estatística – fez um governo que amargou sérios tropeços econômicos, acarretando-lhe a corrosão do controle da máquina pública e o otimismo da população. De estonteantes índices de popularidade alcançados em pesquisas de opinião, este indicador ou a registrar queda, mergulhando a níveis baixíssimos, certamente auxiliados pela histriônica reação de Aécio Neves à própria derrota nas eleições de 2014. Abalado com a contundência do ódio de Aécio e sua ascenção a arauto das classes conservadoras, o governo Dilma ou a fazer-lhes concessões, contribuindo crescentemente para a perda de apoio por parte das classes populares. A tragédia prosseguiu, na eleição de 2014, com a sagração, nas duas casas, de um congresso nacional reacionário em termos políticos e econômicos, insatisfeito com a forma como o governo estava financiando medidas de efeito redutor da desigualdade econômica. Não surpreende que um político oportunista do porte de Eduardo Cunha tenha sido eleito presidente da câmara e desencadeado um pedido de impeachment do mandato de Dilma com raso conteúdo lógico, mas de agudo apelo ideológico. Na mesma linha do golpe de Sarney, que não estava credenciado a assumir a presidência, Michel Temer carrega a ilegitimidade de, mesmo no período em que responde interinamente pela presidência, tenta impingir à economia um programa de governo de manifesto corte antipopular, eivado de tentativas de cortes de direitos sociais e econômicos. Precisamente sobre essa dimensão econômica é que assenta o segundo tronco do mundo golpista. Nesta região da árvore, os golpes são ainda mais frequentes, pois são perpetrados em resposta às pressões exercidas sobre os poderes executivo e legislativo por representantes da chamadas classes empresariais. Entusiasma-as, por exemplo, o sequestro de algumas conquistas sociais e econômicas alcançadas pela classe trabalhadora durante o lulismo. Mas esta, alquebrada por inúmeras derrotas, não deveria esquecer que um momento dramático a agitar este tronco ocorreu no pós-1964, quando a estabilidade no emprego conquistada durante a ditadura varguista, foi varrida e substituída pelo instituto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O FGTS é um fundo de poupança que assegurava direitos econômicos sobre a desvalorização do dinheiro, mas pagava um juro de modestos 3% a. a., quando as cadernetas de poupança pagavam 6% e os empréstimos habitacionais corriam a juros de 12% a. a. Bons tempos, infelizmente… Pois novos golpes foram-lhe assestados durante o governo FHC, mudando regras da aposentadoria para praticamente a mesma expectativa de vida ao nascer, isto é, criou-se direito à aposentadoria por idade para 75 anos, quando o brasileiro médio deverá estar… morto. Mas esta derrota para o trabalhador médio resultou ainda no golpe misto que foi assestado contra, digamos, a “jovialidade” da composição do supremo tribunal de justiça do país, ao também a eles reformarem a tradicional aposentadoria do funcionário público de 70 anos. Com isto, naturalmente, os desígnios dessa suprema corte devem tornar-se mais conservadores, ainda que desalinhados dos interesses políticos imediatos. Nos dias que correm, anunciam-se intenções de cortes abruptos nas despesas públicas, talvez recitados como nos teatros de marionetes, pois as reações e a própria “base aliada” levaram o governo provisório a rever o ímpeto das medidas anunciadas. Este foi o caso dos cortes e recomposição do programa de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”, do financiamento à educação superior pelos programas Pro-Uni, FIES e as mais infames propostas de reformulação do SUS. As próprias críticas endereçadas ao déficit público do governo afastado foram substituídas por uma espécie de reformulação imóvel, pois aceitou e até ampliou seu volume, já anunciando que os próximos anos também terão que conviver com esse promotor de um hiato inflacionário. No Brasil do “andar superior” tornou-se tabu falar em combate ao déficit com a ampliação da tributação. Descarta-se liminarmente com este tipo de reação que se daria por meio da adoção dos impostos diretos, como o imposto de renda progressivo, o imposto sobre grandes fortunas e de transmissão de bens por herança. Nesse andar superior, meter o ombro na porta é, como observamos, ação rotineira. E nada o ilustra com cores mais vivas que a tragicomédia da tentativa de impeachment que hoje vemos contra o mandato de Dilma Rousseff. A acusação original, emergindo da iniciativa pessoal de três advogados, dois dos quais foram, no ado, figuras de proa, comprometidos com a cruzada antilulismo, com uma acusação de “operações de crédito indevidas” concernentes ao ano de 2014. A esta percepção enviesada, associou-se um crescente grupo de inconformados com os resultados da eleição desse ano. Constatada a improcedência do pedido, rapidamente esses defensores de uma ordem legal conveniente, reciclaram seu pedido para as contas de 2015. Especialmente na preparação do julgamento do mérito da tese da prática de crime de responsabilidade ora em andamento no senado federal. por contraste a julgamentos semelhantes de todos os governos anteriores, inclusive dos estados, cuja recomendação era de “aprovar com ressalvas”, agora o exame ganha foros de discussão entre o lobo e o cordeiro: “Se não foi pedalada fiscal, foi algum outro ilícito ainda mais revoltante. E não se discute mais.” Diferentemente de Michel Temer, outro paulista não se encantou com a tentação do poder: Amador Bueno. Com efeito, ao encerrar-se o Domínio Espanhol sobre Portugal, em 1640, a colônia de súditos da Espanha residente em São Paulo rebelou-se contra a assunção de Dom João IV ao trono português e intimou Amador Bueno a assumir o reinado da região que, desta forma, se tornaria independente do restante do Brasil Colônia. O incorruptível paulista recusou a honraria e, ao contrário do esperado, saudou de espada em riste a ordem institucional portuguesa. No presente momento, Temer faz um prejulgamento espetacular do julgamento a que Dilma Rousseff será submetida pelo Senado da república. Alardeia-se que ele sonha-se capaz de reestabilizar o Brasil nos dois anos e meio de mandato que talvez o aguardem. Aécio iniciou a desestabilização política. Temer conta com a desestabilização institucional. Amador Bueno está sepultado. 4b6o3e
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Ditadura golpista e apartheid social 702773
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE.
O regime político ditatorial que o Brasil vive atualmente tem gravíssimas consequências sociais. Não restam dúvidas de que a chegada dos golpistas ao poder representa a ruptura da Constituição, a dissolução da Democracia e o fim do Estado de Direito. Está instalada uma ditadura jurídico/parlamentar/midiática com a finalidade de impor ao Brasil um projeto econômico que segue rigorosamente a cartilha neoliberal. Como consequência desta nova ditadura, é visível que se estabeleceu no Brasil uma cisão social radical a que podemos denominar de apartheid social.
Como ainda somos um modelo econômico capitalista, há em nossa sociedade uma elite dominante profundamente egoísta e concentradora de renda. Enquanto perdura o sistema capitalista de produção, o mundo estará cindido entre ricos e pobres, uma assimetria social distribuída em nível global e no interior dos países, particularmente de terceiro mundo. A elite burguesa capitalista não ite que os mais pobres ascendam socialmente e integrem os mais variados espaços da sociedade. A elite burguesa se considera dona do mundo diante da qual os mais pobres e as classes sociais excluídas são odiadas.
Durante os anos do governo Lula e o primeiro de Dilma houve o fenômeno jamais visto e imaginado no Brasil da ascensão social, quando milhões de miseráveis saíram da miséria e outros milhões entraram na classe média. Esta gigantesca massa historicamente excluída começou a aparecer nas praças, nas lojas e supermercados, nas Universidades, nos aviões, nas ruas das cidades, nos espaços de trabalho etc. Começaram a ocupar os mesmos espaços da elite dominante e concorrer com os seus privilégios.
Isto se torna ainda mais acentuado quando se trata de classes historicamente excluídas como os negros, os índios, as mulheres e grupos de outras opções sexuais. Além da divisão social provocada pelo modelo econômico capitalista, isto vem acrescido do racismo, como expressão de ódio e preconceito contra os negros e índios, do machismo, como o tradicional domínio do homem sobre a mulher. Estas formas de exclusão e rebaixamento ficam evidenciadas na configuração do governo golpista, que não tem mulheres e negros nos mais elevados escalões do governo.
O apartheid social brasileiro é protagonizado pela elite burguesa dominante. Isto fica visível quando, por exemplo, pais ricos ficam enfurecidos quando seus filhos são obrigados a estudar nas escolas e Universidades nas mesmas salas onde se encontram negros. Os ricos ficam enfurecidos quando se deparam com a infelicidade de sentar ao lado de um pobre no avião, que jamais deveria pisar nestes espaços. A burguesia dominante fica furiosa quando são antecipados pelos mais pobres nas filas dos bancos e atrasam os seus compromissos em função dos vagabundos que só atrapalham. A classe rica branca fica enfurecida porque espaços como o trabalho, o protagonismo social, a posse da riqueza são ameaçados de divisão em relação àqueles que mais são odiados. A classe dominante vive o ódio porque as “riquezas produzidas pelo suor de seu trabalho e pela sua capacidade de gerenciamento são destinadas a uma massa vagabunda que não trabalha”.
O apartheid social brasileiro fica visível em várias esferas, em várias áreas do saber e em múltiplas instâncias. Ainda não conseguimos avançar historicamente para que as distintas classes sociais tenham condições de convivência e de solidariedade. Em tempos de profunda crise econômica e política estas questões ficam explicitadas e se tornam claras como o dia. Para a sistêmica cisão social constituem forças determinantes a economia, a política e o judiciário. A economia capitalista é concentradora de renda com a cisão do mundo em ricos e pobres; a política atende aos interesses de uma minoria e o judiciário legitima o sistema econômico estabelecido. A atuação do judiciário é escandalosa porque se mostra seletiva, protege a direita política e criminaliza sistematicamente os movimentos sociais.
Nos últimos tempos assistimos fatos e eventos que apontam para os interesses de uma pequena elite, em detrimento da grande população que tende a ser reduzida a uma massa informe e a uma força indiferenciada de trabalho. Quando em Universidades públicas é discutida a Democracia, as Instituições de Ensino Superior são objeto de repressões e de restrições jurídicas, quando uma sociedade democrática proporciona plena autonomia para realizar este tipo de discussão. Práticas radicalmente antidemocráticas de divisão social dizem respeito à criminalização dos movimentos sociais e à condenação de suas lideranças. Nas periferias de nossas cidades os negros e pobres ainda são objeto direto de perseguição policial, de cassetete, de prisão e de fuzilamento seletivo. Um modelo político ditatorial como o nosso não tolera manifestações democráticas, reprime movimentos sociais e enche as cadeias de gente oriunda do universo da exclusão social.
A recente ocupação das escolas pelos alunos reforça a constatação da cisão social. Percebem o descalabro e o descaso com a educação, ocupam as escolas e o que lhes espera é a punição policial. A justiça pune e prende as lideranças populares, as lideranças de forças políticas de esquerda e inviabilizam o aprofundamento da Democracia. A justiça sustenta e protege um pequeno mundo social altamente elitizado, em detrimento da população que lhe foi negada a Democracia e rasgada a Constituição.
O governo ilegítimo erigido pelo golpe branco é uma síntese de todas as expressões históricas de machismo, racismo, patriarcalismo, patrimonialismo, criacionismo, sexismo, autoritarismo, xenofobismo etc. Estes preconceitos sociais que atravessam a história brasileira retornaram com toda a força e estão presentes em todos os recantos da sociedade, quando teriam que ter sido superados com o advento do novo milênio. A sociedade está sistematicamente dominada por estas expressões protagonizadas por homens de bem, por brancos ricos, pela burguesia capitalista, por moralizadores do bem e por visões ultraconservadoras de mundo, de política e de religião. Vivemos um momento histórico no qual os ismos aqui citados ressuscitam com toda a força e são amplamente suscitados pela ditadura golpista, pelo judiciário, pela mídia e pela grande elite econômica.
O apartheid social que vivemos atualmente é expresso no ódio social. Vivemos numa cultura de ódio e de intolerância radical. São objeto de ódio os negros que totalizam mais da metade da população brasileira. São objeto de ódio os índios outrora considerados pelos mesmos brancos religiosos homens de bem como selvagens e sem alma. São objeto de ódio as classes mais pobres rotuladas de vagabundos. Expressão de ódio sistêmico é o preconceito seletivo contra os nordestinos simplesmente rotulados de “vagabundos”. A pretensão de separar a Região Sul do resto do país é consequência da pretendida supremacia cultural e machismo. São objeto de ódio os estudantes e as suas organizações são reprimidas em meios judiciais simplesmente porque lutam por uma educação mais qualificada. São objeto de ódio os partidos políticos de esquerda e as suas lideranças, simplesmente porque proporcionaram uma sociedade mais democrática e porque promoveram uma inclusão social mínima. Os ataques midiáticos e judiciários são muito conhecidos.
O governo golpista que usurpou o poder por meio do golpe legitimado pelo judiciário, pelo legislativo federal, pela grande mídia, pelo grande empresariado e por grandes corporações transnacionais tem como consequência uma cisão social jamais vista. O golpismo não tem nenhuma sintonia com os negros, índios, mulheres, trabalhadores, movimentos sociais, movimentos estudantis etc. A tendência atual é de que o ódio, a xenofobia e a mixofobia se intensificam e se disseminam pela sociedade inteira. O resultado disto seria uma estrutura social formada pela burguesia isolada nas instâncias políticas, nas propriedades particulares, nos negócios econômicos e a grande ralé objeto de ódio e exclusão social.
A classe especialmente treinada para disseminar ódio na sociedade não está apenas em Brasília ou nos grandes centros de atividade econômica. Não são apenas os brancos, ricos, machos e barrigudos que integram as três esferas da república, mas estão presentes na base social. Eles vêm revestidos da condição de homens de bem, moralmente corretos, fiéis à bíblia e aos preceitos religiosos, são ricos pela graça de Deus e por seus próprios méritos, mas profundamente odiosos ao condenar os de outra cor e condição como criminosos, vagabundos, baderneiros, etc.
Crônica da Resistência ao Golpe de 2016 611m9
* José Carlos Moreira da Silva Filho
Dia 03/06 foi um dia histórico para Porto Alegre! No Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, mesmo palco no qual no dia 25 de agosto de 1961 Leonel de Moura Brizola iniciou a Campanha da Legalidade! Tive a honra de ser um dos autores do livro que estava sendo lançado, intitulado “A Resistência ao Golpe de 2016”, juntamente com Tarso Genro e Magda Biavaschi, a realizar uma fala antes do belo e inspirado discurso da Presidenta Dilma.
No mesmo palco estavam inúmeros Movimentos Sociais, Deputados Federais da esquerda, O ex-Governador Olívio Dutra (que me prestigiou com um cumprimento após minha fala), representações dos diversos Comitês pela Democracia e Resistência que se espalham pelo Estado. Na plateia também outros autores do livro: Guto Pedrollo, Katarina Peixoto, Paulo Pimenta e a Maria Tereza (que me ajudou a escrever o meu artigo). Ao final entregamos um exemplar autografado por tod@s à Dilma.
O evento foi comandado pela Katia Suman, sempre ótima, e particularmente linda foi a performance do Nei Lisboa. Cantou duas músicas: uma composição em homenagem à Dilma (música belíssima) e a clássica “E a Revolução”. Nesta hora foi difícil segurar a emoção. Aqui compartilho além das fotos desse momentaço um vídeo feito de parte da minha fala.
Após a homenagem que eu fiz ao Ico Lisboa (parte em que o vídeo foi cortado – já perdoei a patroa por não ter gravado tudo, he he he), fiz uma homenagem aos que lutaram antes e agora lutam de novo ao nosso lado, personificando na Dilma, exemplo de altivez, dignidade, coragem e, sobretudo, generosidade, por estar mais uma vez lutando e colocando a cara à tapa
Também lembrei da memória do lugar, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul na Campanha da Legalidade. Registrei ainda o a falácia e o vazio que é o combate à corrupção divorciado de qualquer preocupação quanto a um projeto político popular para o país. Como é falso derrubar um governo em nome do combate à corrupção sem se preocupar com o principal problema que temos e que é o verdadeiro gerador de toda a corrupção: a desigualdade social. Finalizei com um #ForaTemer e um #VoltaDilma.
Depois todos saíram para a Esquina Democrática, onde já estava montado um palco no qual Dilma repetiu o seu discurso, seguido de falas de uma parlamentar do PSOL (não consegui ver quem era) e da nossa querida Jussara Cony. E para finalizar mais uma bela performance do meu querido amigo e grande artista da nossa cidade e do nosso país Raul Ellwanger.
Dali iniciou-se uma caminhada pela cidade que reuniu dezenas de milhares de pessoas, com palavras de ordem, batucadas, muita animação. Pena que na Independência, para homenagear a ocupação do IPHAN, eu já estava sem bateria no celular. A Independência foi tomada pela multidão. Lindo de se ver. Andamos em lugares mais populares como o terminal de ônibus do Mercado Público e a Rodoviária (não pude deixar de perceber o contraste do povo mobilizado pelas ruas e o povo esperando ônibus, que me pareceu apático, bovino, indiferente e alguns até de cara amarrada – foi quando eu disse: “Acordem! São os direitos de vocês também que estão destroçados e atacados por este desgoverno ilegítimo!”).
Em frente a uma Igreja Universal na Farrapos o povaréu se ajoelhou e simulou uma reza, para depois cantar em coro: “Eu beijo homem, beijo mulher, tenho direito de beijar quem eu quiser!” Na altura da Fernandes Vieira eu dispersei, mas soube que o povo desfilou na Padre Chagas, coração da burguesada porto-alegrense, e que diante de algumas as que se insurgiram gritaram algo assim: “Mas que vergonha, bate a, mas quem lava é a empregada!”
Enfim, dia histórico, orgulhoso de ter feito parte. Teremos algo bem concreto e significativo para mostrar pras nossas filhas no futuro, mostrar que fizemos parte da resistência democrática diante de um golpe sórdido, espúrio e que ameaça as conquistas populares!
* Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (mestrado e doutorado) http://lattes.cnpq.br/0410429186457225
Nova Ditadura e Direito 5ef69
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João Alberto Wohlfart*
O que tem a ver a nova ditadura brasileira com o Direito? A ditadura parlamentar/jurídico/midiática que se desenha aos nossos olhos mergulha diretamente no universo do Direito e nas suas Instituições. Até o presente contexto histórico, a Democracia brasileira sempre durou muito pouco tempo e inúmeras vezes foi interrompida por golpes de Estado e por ditaduras orquestradas pela estrutura patriarcal do poder. De regra, o Direito é o sistema de liberdade social estruturado nas suas Instituições e organizações típicas, para eliminar qualquer forma de domínio de uma pequena minoria sobre uma maioria, para evitar que uma classe social dite os seus interesses e para assegurar a todos os cidadãos as condições de vida digna, de convívio social e de livre manifestação da opinião em meios de comunicação democráticos e plurais, numa sociedade plural.
Na contramão da sua incumbência e finalidade, o Direito se transformou sistematicamente num golpe de Estado e numa ditadura legitimada legalmente. A lógica ditatorial do Direito começa embaixo e nos recantos mais longínquos e invisíveis das periferias onde os pobres e os negros constituem alvos diretos de perseguição policial e de prisão. Somente pelo fato de serem pretos e negros, os grupos são objeto de cassetete e de duríssimos castigos policiais. Numa esfera mais ampla e mais sistemática, isto se manifesta na criminalização dos movimentos sociais, com a desarticulação jurídica das lideranças e com aplicação de penalidades judiciais aos seus organizadores. Como a ditadura jurídica é completada pela ditadura midiática e seus mecanismos, os movimentos sociais são alvo dos mais variados preconceitos e facilmente rotulados de baderneiros, vagabundos e perturbadores da ordem pública.
A criminalização sistemática dos movimentos sociais transforma o Direito na essência da ditadura. O sistema do Direito, que já rasgou e enterrou a Constituição Federal ainda em idade juvenil, desde a esfera mais elevada do Supremo Tribunal Federal, ando pela ciência do Direito, até a base das comarcas e varas, se transformou num golpe de Estado. Em instâncias mais elevadas, isto ficou evidenciado e visibilizado com a condução coercitiva do ex-Presidente Lula ao depoimento junto à Polícia Federal, com a perseguição sistêmica da sua liderança e por prisões de lideranças de esquerda. Por que o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu bem outro tratamento quando fez o seu depoimento à Polícia Federal? O Direito se transformou na instância legitimadora da perseguição aos movimentos sociais que nada mais fazem que a proposição de projetos democráticos de participação popular e de justiça social capazes de incluir socialmente todos os grupos sociais numa pluralidade democrática.
Sabe-se que a função do Direito é a construção de relações sociais equilibradas e a integração de todos os seres humanos e grupos sociais ao grande sistema do convívio social, numa sociedade democrática erigida em Estado de Direito. Os espetáculos jurídico-midiáticos dos últimos tempos e fatos evidenciam que o Direito, de forma sistemática, se opõe a esta condição fundamental. Aliás, na História do Brasil isto nunca foi diferente, apenas nos últimos tempos o casamento entre Direito e a classe dominante ficou mais agressivo, cínico, perverso, covarde e hipócrita. O Direito mostrou todos os seus tentáculos que constituem desdobramentos de um sistema repressivo, de um pandemônio que visa exclusivamente à implantação de um sistema econômico excluidor e o silenciamento de todas as vozes que buscam a construção de uma sociedade justa e fraterna.
Os sinais da presença da ditadura do Direito na estrutura social não são nada animadores. Este estado social tem múltiplas manifestações na área jurídica, social, cultural, política e econômica. A expressão jurídica da ditadura do Direito é objeto deste escrito, na criminalização dos movimentos sociais, na perseguição seletiva contra a esquerda popular e na perseguição constante ao ex-Presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores. Como se o absurdo não bastasse nestas manifestações, fala-se na criminalização do comunismo, o que implica no processamento e prisão das pessoas e movimentos com ideias socialistas, das causas que têm no bem comum e na solidariedade universal, acima do interesse privado capitalista, a concretização maior da existência. Daqui a pouco vão para a cadeia as pessoas que falam de Hegel, de Marx, de Engels, de Paulo Freire e do Papa Francisco, porque o pensamento político-social de todos eles é antinômico ao privatismo neoliberal do governo ilegítimo e fascista que se constituiu. Do ponto de vista cultural, escuta-se da obrigatoriedade do ensino do criacionismo divino nas escolas, numa fiel obediência ao fundamentalismo norteamericano . Isto é compreensível porque o congresso nacional está habitado por líderes religiosos neopentecostais ultraconservadores e reacionários. Isto proporciona a volta de doutrinas religiosas dogmáticas fossilizadas pela História e destinadas a dar a benção divina aos caprichos da nova ditadura.
A benção divina da nova ditadura, dos procedimentos típicos do universo jurídico e do modelo político empresarial nos proporcionaram o espetáculo da organização de bandidos políticos que habitam o Supremo Tribunal Federal, as duas esferas do legislativo federal e o governo Temer que usurpou o governo de Dilma Rousseff. Esta bandidagem política que habita os três supremos poderes da República não apenas assaltou o governo Dilma legitimamente constituído, mas está promovendo um assalto dos direitos fundamentais historicamente conquistados pelo povo brasileiro, está assaltando a República pela privatização neoliberal e promete um assalto ao Brasil pela entrega de suas riquezas ao grande capital internacional. Tudo isto representa um assalto jurídico à Constituição Federal, ao Estado de Direito e à Democracia, porque o povo brasileiro, causa e finalidade da Política, sujeito político de um sistema de Direitos e senhor das riquezas nacionais, é substituído por outro senhor que é a mão invisível do capital privado internacional.
Nesta prostituição do Direito, que tem na imparcialidade o seu procedimento fundamental, transformou-se numa ferramenta de parcialidade ao legitimar juridicamente a bandidagem política de direita e o neoliberalismo privatista e capitalista. A perseguição midiática aos líderes populares e aos políticos de espírito nacionalista é a faceta mais diabólica do Direito. Neste contexto precisa ser evocada a presença do Estado como agente de socialização e de promoção da justiça social. A bandidagem política de todas as esferas da República está promovendo um enfraquecimento do Estado ao privatizar tudo o que é possível, tirando dele a capacidade de socialização e de regulação da atividade econômica. Neste cenário, o povo não será senhor de sua história e de seus destinos, não será representado pelos seus representantes legítimos que habitam os três poderes da República, mas será inexoravelmente comandado pela mão invisível do grande capital que explora a força trabalhadora e a rebaixa à condição coisa, e promove uma total coisificação e fragmentação social.
Está de volta, com as bênçãos divinas e do Supremo Tribunal Federal, o projeto econômico que faliu o mundo em 2008, e que está definitivamente falido. Está de volta o projeto da privataria tucana da década de 1990 que rendeu o Brasil junto ao FMI e ao capital internacional a grande e impagável dívida externa, os vergonhosos empréstimos ao FMI que excluíram mais de cem milhões de brasileiros do desenvolvimento econômico e social. Visibilizado no esquema de bandidos políticos de Brasília, está em cima de nós o bandido invisível, o deus invisível e absoluto do capital internacional, para explorar um dos últimos santuários de riquezas naturais do Planeta Terra, como o Pré-sal, a Amazônia, os rios, as riquezas minerais, as terras, restando para nós as migalhas de uma massa de trabalho em condições de semiescravidão e mal pago. Da separação entre povo e política, pois os políticos não estão preocupados com o povo, conclui-se que o judiciário é uma superestrutura social destinado a legitimar o sistema econômico neoliberal estabelecido, mesmo com a prostituição da Constituição, do Estado de Direito e da Democracia.
* Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia.
O que explica a crise? 3yt71
Giovane Martins*
Ainda não chegamos à metade de 2016 e, me arriscaria a dizer, já poderíamos calcular mais notícias sobre escândalos políticos nesta primeira metade do semestre do que em vários momentos parecidos da nossa história. O Brasil, que até pouco tempo era visto como o país do Carnaval e do futebol, agora ocupa as manchetes políticas do Brasil e do mundo quase que diariamente, com novas revelações em escândalos de corrupção – revelações que já foram capazes de levar para a cadeia alguns dos empresários mais ricos do país e de declarar a “quase morte” política (pois no fim das contas só a população tem o poder de declarar a morte política de alguém de forma definitiva) de vários envolvidos nos esquemas.
A crise política que estamos vivendo não começou ontem e provavelmente não terminará amanhã. Provavelmente também não começou em 2013, embora tenha sido neste ano que os primeiros protestos populares de grande magnitude tenham ocorrido durante o período frequentemente denominado de “lulismo”. Uma crise política desta magnitude não surge do nada. Embora na superfície esteja tudo correndo aparentemente bem, é perfeitamente possível que uma profunda sensação de desgosto e um crescente desejo de mudança estejam presentes nas consciências individuais.
Por isso seria um trabalho duro especificar onde começa a crise política que nos afeta, e é um tiro no escuro saber o que virá depois. Qualquer tentativa de se apontar uma causa para explicar o que está ocorrendo agora acabaria com o status de meia-verdade: talvez por isso as correntes ideológicas tradicionais tenham tanta dificuldade para justificar seus diagnósticos. Ao contrário de outros eventos históricos em que era possível delinear claramente onde uma revolta começa e quais são seus pontos de transição, fazer isso hoje é correr o risco de se cair na ideologia, na resposta que já estava engatilhada a priori.
Mas o que torna nossos tempos tão diferentes de outros eventos políticos históricos?
A filosofia, as ciências sociais, a comunicação social e outras áreas que frequentemente se comprometem com o debate político vêm desenvolvendo nos últimos anos uma boa gama de trabalhos a respeito de um novo mundo (ou de uma nova forma de se relacionar com ele) que ainda não entendemos bem – embora nosso contato seja permanente. Estamos na era do ciberespaço, das novas tecnologias da comunicação que a cada dia trazem novos recursos, que mudam a forma como nos relacionamos e tornam a atividade política ível a qualquer um que tenha um computador ou um smartphone com internet. A clássica relação causa-efeito se torna completamente incerta em um mundo em que vários eventos significativos ocorrem simultaneamente, em que causas que desconhecíamos podem ganhar força em minutos e em que a informação ganha autonomia em relação aos sujeitos – quem precisa procurar informações quando elas aparecem na sua timeline inesperadamente?
Nossa imprensa tradicional, nossa democracia e as nossas instituições estão tendo que lidar com esse conjunto de novos fatores. A liberdade que a democracia nos proporciona, por sinal, é fundamental para que saiamos da crise sem qualquer violência ou derramamento de sangue, como já ocorreu antes nesses 30 anos de democracia. É essa liberdade que permitiu a cultura de participação política que estamos assistindo diariamente. Por mais que se pense o contrário, cada vez mais parece ser o povo o motor político principal, e não as classes médias e políticas.
Meu objetivo nesta coluna será trazer para o debate político alguns desses temas que nos ajudam a entender o momento político que ocorre no Brasil e em outros países do mundo, mas que ao mesmo tempo quase que nos impossibilitam de fazer análises sistemáticas que apontem causas e efeitos claros e distintos sem se cair em respostas velhas para problemas novos. Para isso, conto com a participação do leitor. O debate político, agora, é de todos!
* Giovane Martins é estudante de filosofia da PUCRS, pesquisador bolsista do CNPq e do CEFA – Centro de Estudos em Filosofia Americana.
A embriaguez midiática das massas, a omissão do STF e a orquestração do golpe no Brasil 60695e
Francisco Jozivan Guedes de Lima*
Antes de tudo, quero advertir que não usarei a terminologia “golpe político” porque, de um ponto de vista normativo e de sociedades democráticas bem-ordenadas que respeitam as instituições, golpe é algo infame, vil e de natureza apolítica; ele anda justamente na contramão da política: percorre caminhos abjetos, criminosos, ilegítimos do ponto de vista moral e jurídico.
O status de legitimidade do impeachment no seu cerne normativo está respaldado pela Lei nº 1.079/1950 que foi recepcionada pela CF/1988. No Art. 4º da Lei nº 1.079/1950, há um rol de oito crimes de responsabilidade presidenciais tais como atentar contra (i) a existência da União, (ii) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados, (iii) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, (iv) a segurança interna do país, (v) a probidade na istração, (vi) a lei orçamentária, (vii) a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos, (viii) o cumprimento das decisões judiciárias.
O impeachment em si não é golpe; é uma ferramenta democrática que tem na sua base a pretensão de se opor a regimes despóticos. Dentro de sociedades liberais modernas, sua gênese histórica remete à desestabilização dos Estados nacionais absolutistas, desarticulação esta protagonizada pela burguesia – categoria que ainda não tinha no dado período uma conotação capitalista pós-Revolução Industrial. Tratava-se, dentro do referido cenário, de uma queda de braço entre as monarquias absolutistas versus os liberais, especialmente, como se observou a partir do século XVII na culminância da Revolução Inglesa e o consequente estabelecimento do parlamentarismo.
Se o impeachment em si não é um golpe, então qual o seu problema? No caso específico deste processo que vivenciamos no Brasil, ele é um golpe porque está sendo orquestrado mediante estratagemas de exceção; dizer que o impeachment atual é legítimo porque respeita um rito do Supremo Tribunal Federal é uma afirmação extremamente superficial e ritualística que não adentra às questões de fato relevantes para a sua legitimidade como o cumprimento do devido processo legal, o instrumento da ampla defesa, a imparcialidade dos relatórios eivados de tendenciosidades cujo relatores são declaradamente inimigos da figura em julgamento, contaminação partidarista da comissão ad hoc e do judiciário, desde juízes de instâncias mediadoras até o STF enquanto guardião da Constituição. Afinal, cabe aqui uma questão normativa: como entender o porquê do STF – sendo o responsável máximo pela Constituição – diante deste conflito se autoimpôs a incumbência de simplesmente traçar ritos ao invés de gerir o processo já que o impeachment constitui um instituto a fim de zelar pelos princípios constitucionais? Não há sentido em abandonar tal status decisório nas mãos de políticos inaptos do ponto de vista ético e/ou intelectual que instanciam suas decisões a partir de justificativas risíveis obliterando todo o potencial normativo de esfera público-democrática.
A obscuridade do processo com manipulações midiáticas com liberação de grampos telefônicos para dada emissora, o processo de votação dominical forjado como uma espécie de show que culminou no desmascaramento e na demonstração da realidade de parlamentares sem mínimas condições para o exercício do poder público, o fato de orquestradores do golpe serem réus em processos como Lava-Jato, os fortes interesses econômicos que injetaram e financiaram o afastamento da Presidenta Dilma, o atropelamento do processo e o voto-pronto independente da contra-argumentação da Advocacia-Geral da União, e todo um demais conjunto de fragilidades expostas, fortalecem a obviedade do Estado de exceção no qual foi forjado o processo de afastamento. Diante disso, o STF agiu como Pôncio Pilatos: “lavou as mãos”; atirou o rito no plenário e observou confortavelmente o seu desfecho. Num país com seriedade e harmonia institucionais, diante de processos parciais e suspeitos, os guardiões da Carta Magna não se isentam, mas assumem o ônus de zelar pela normatividade. Eis aí a sua máxima razão de ser.
E o que dizer da embriaguez das massas? Por “massa” entende-se aqui o “vulgus”, aquela “massa de manobra”, isto é, aquela parcela da população que é facilmente cooptável, manipulável, que bate as, vai às ruas, põe camisa patriótica impulsionada por um discurso de anticorrupção ironicamente patrocinado por corruptos, ou seja, uma contradição explícita. Ela constitui, numa expressão nietzscheana, “o homem rebanho”. Ela não tem ciência de como o processo está sendo forjado, quem o forja, quem o financia nacional e internacionalmente, e como as informações são milimetricamente lhe endereçadas pela mídia que sedimenta a indústria cultural do golpe. Aí está a embriaguez.
Tudo é orquestrado a fim de que a grande massa – seja ela de camada social subalterna, alta ou mediana – acredite que o processo está sendo imparcial, justo e que com a deposição de uma dada figura, a corrupção será banida e tudo voltará à normalidade. Foi justamente em cima deste discurso de “higienização” que o nazismo ganhou força e chegou ao poder e se tornou o monstro tal qual sabemos. Dentro dessa ideologia massificadora, tipifica-se e encontra-se um bode expiatório para culpabilizar pela instabilidade e pela desordem. E a lavagem cerebral funciona sorrateiramente em tal direção. Isso gera uma despolitização da esfera pública forte e, ipso facto, os potenciais atores políticos são intencionalmente rotulados mediante uma luta desgastante e sem sentido sob os cognomes de “coxinhas” e “petralhas”, resultando daí discursos e ações de ódio, uma infantilização do processo democrático bem-vinda para aqueles que os manipula como meros fantoches.
Aos que defendem que tal massificação não aconteceu, cabem aqui algumas questões: por que este mesmo povo que foi às ruas, que bateu as no horário nobre, não o faz agora, neste exato momento em que a Operação Lava-Jato se recolhe do seu ímpeto voraz depois de ter cumprido seu papel estratégico de fulminar um partido político em específico? Por que as investigações não têm continuidade com o mesmo peso e rigor para os demais partidos e suspeitos? Por que não se bate as perante vazamentos de vídeos desmascarando o golpe? De um modo amplo, por que não ele não vai às ruas contra as injustiças que continuam a acontecer?
As doses funcionaram exitosamente: para a grande massa – manipulada pelas instâncias de poder – o momento é oportuno, tudo é apenas uma questão de tempo para a “perfect life” se instaurar no Brasil: “não vem ao caso” julgar, a Lava-Jato cumpriu sua tarefa, a economia irá crescer, nossos direitos estão preservados, em especial os sociais conquistados a dura penas, a previdência social e os mais velhos não serão atingidos pelas reformas, os remédios serão amargos, porém provisórios e necessários para equilibrar as finanças, não há mais corrupção e todos os partidos são julgados como o mesmo rigor. Trata-se simplesmente de uma ilusão, mera embriaguez ideológica verticalmente imposta, aceita e reproduzida acriticamente por indivíduos de várias regiões do país, sem polarizações se é somente em região X ou Y.
* Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do PPG e da Graduação em Filosofia na UFPI.
Ditadura outra vez q5w37
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João Alberto Wohlfart*
Como se não bastasse, o Brasil ou por um longo e obscuro período de ditadura militar entre os anos de 1964 e 1985. As experiências mais horrorosas a que foi submetido o povo durante este período, como torturas, prisões, mortes, desaparecimento de familiares e neutralização da consciência histórica, fez ecoar o grito: ditadura nunca mais. Com a retomada da Democracia em 1985 e outros eventos democráticos posteriores afastaria para sempre qualquer possibilidade de nova ditadura. Para as gerações mais jovens, qualquer noção de ditadura apenas no imaginário da experiência de um ado mais ou menos longínquo ou a partir da memória mais viva das gerações adas. A realidade da Democracia foi conquistada com muito suor, sacrifício, sangue e morte de tantos heróis do ado.
De forma quase inesperada e muito rápida, eclodiu uma nova ditadura no Brasil, com indicações de que esta é pior que aquela vivida nestes anos sombrios. Arquitetada por uma mídia oligárquica que serve aos interesses do grande capital, por setores ultraconservadores do judiciário e do ministério público federal, por partidos políticos de direita e por uma classe de bandidos políticos espalhados por todos os poderes da república. Inconformados com os avanços sociais dos últimos anos, por múltiplas formas de manifestações democráticas e pela ascensão social de milhões de brasileiros historicamente excluídos, de pobres que começaram a viajar de avião e de negros que chegaram às Universidades, as elites conservadoras da sociedade se enfureceram porque viram os seus espaços de domínio absoluto “invadidos” por uma massa de “vagabundos”.
A nova ditadura brasileira é oriunda do refluxo do neoliberalismo ultraconservador que tem na privatização das empresas e das riquezas, o domínio vertical norte/sul, a especulação financeira, o domínio do grande capital estrangeiro das riquezas nacionais, a monopolização do empresariado do agronegócio e dos grandes monopólios produtivos os seus dogmas mais absolutos. O grande capital internacional está de olho no Brasil porque ainda possuímos riquezas naturais inexistentes no primeiro mundo de que o sistema capitalista necessita para o giro do lucro, comprometido pela atual grande crise do capitalismo internacional. Os representantes internos deste sistema, apoiados por grandes monopólios econômicos nacionais e transnacionais, formados pelo judiciário, pelos partidos de direita e pela grande mídia, orquestraram derrubar a Presidente Dilma Rousseff para impor ao país os seus espúrios interesses, completamente alheios à vida e às necessidades do povo.
Internamente este espetáculo foi orquestrado nos constantes ataques da mídia conservadora ao Partido dos Trabalhadores e ao ex-Presidente Lula como se fossem os culpados da corrupção e nos ataques do judiciário às lideranças de esquerda especialmente dirigidos para prender as suas principais lideranças. Nesta investida, os próprios meios de comunicação e o corrompido judiciário conseguiram ocultar a grande corrupção que gira neles próprios e nas tendências políticas de direita ultraconservadora que fazem da política uma legitimação dos grandes interesses econômicos do empresariado e das corporações capitalistas. Com a furiosa articulação de ataques ao povo, à Democracia, às forças políticas de esquerda e às conquistas sociais, estão impondo o seu poderio absoluto para privatizar a sociedade em função de seus interesses.
A presença intensa da nova ditadura parlamentar/jurídico/midiática, fica cada vez mais visível diante dos olhos. O julgamento promovido pela câmara dos deputados e pelo senado federal pareceu um verdadeiro tribunal de inquisição e de exceção, com expressões de patriarcalismo, coronelismo, machismo, fascismo e com homenagem aos torturadores da ditadura militar. Aos promotores destes sentimentos antipatrióticos e antidemocráticos não pesa nenhuma punição e se transformam em heróis do golpe. Aos líderes populares e defensores da Democracia pesa o estereótipo de agitadores do povo e baderneiros da ordem pública.
Com o processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, além de uma violação cínica e hipócrita do Estado de Direito, da Constituição e da Democracia, há um clima sistemático de ditadura disseminado por toda a sociedade. Quando nas Universidades públicas se discute golpe e Democracia, as Instituições de Ensino Superior são duramente reprimidas por câmaras de vereadores e pelo ministério público, quando a sua plena autonomia dá a liberdade para realizarem estes atos. O clima de ódio e intolerância seletivamente orientado para determinadas pessoas e grupos da sociedade constitui um indício claro de ditadura, algo impensável numa sociedade livre e democrática.
Os golpistas que usurparam ditatorialmente o poder central, estão promovendo um desmonte dos direitos sociais conquistados com muita luta, sangue e mortes de tantos heróis da Democracia. Em lugar das conquistas sociais estamos vendo um espetáculo de privatizações destinadas a atender aos interesses de uma pequena elite política e econômica que sempre mandou no país e que nunca permitiu que os seus privilégios fosses minimizados. Há claras promessas de repressão contra manifestações populares e contra expressões da opinião pública que sustentam uma visão diferente da oficial protagonizada pela oligarquia do neoliberalismo nacional. Há indícios claros de repressão policial aos movimentos sociais que se organizam para barrar o golpe e assegurar a Democracia tão duramente conquistada.
Além da precarização do trabalho e dos direitos sociais, o que fica evidente é a subordinação das riquezas nacionais aos interesses do grande capital internacional. A entrega do pré-sal, a última grande descoberta do Brasil de um futuro promissor para o nosso povo, está ameaçado escapar de nossas mãos. As riquezas naturais, a imensa biodiversidade e os grandes ecossistemas estão ameaçados pela mentalidade privatizadora dos golpistas. Este ataque à soberania nacional e à liberdade do povo caracteriza um golpe porque implanta um projeto não almejado pelo povo brasileiro.
* Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de filosofia.