Morreu neste domingo em Pelotas o jornalista Jota Pinho, pioneiro na formação acadêmica de jornalistas pela Uel, a Universidade Católica de Pelotas.
Sem curso superior, deu aulas de técnica de jornal por mais de 20 anos. Formou várias gerações de repórteres. Também trabalhou como secretário de redação do Diário Popular, fundado em 1895, até hoje controlado pela familia Fetter.
Joaquim Salvador Coelho Pinho, seu nome completo, tinha 84 anos.
A seguir, o perfil de Jota Pinho, publicado no livro coletivo “50 Tons de Rosa –
Pelotas no Tempo da Ditadura” (Artes e Ofícios, 2016)
O ator que foi Mestre em jornalismo
Geraldo Hasse
Jornalista, professor de jornalismo e publicitário, Joaquim Salvador Coelho Pinho foi um dos mais notáveis profissionais da comunicação social de Pelotas na segunda metade do século XX.
Nascido em 23/02/1936 em uma família de classe média – pai comerciário, mãe do lar – já antes dos 30 anos era um multimidiaman que trabalhava em três turnos de quatro a cinco horas cada um, deslocando-se pela cidade ao volante de um Renault Dauphine, o menor dos carros fabricados no Brasil nos anos 1960. Nas raras horas vagas, dedicava-se ao teatro.
Em seus três turnos de trabalho, Pinho praticava a comunicação social em três diferentes dimensões: pela manhã, tocava seu próprio negócio, uma agência chamada Domus Propaganda, pela qual assinava artigos de jornal e comentários de rádio em nome de Salvador Coelho.
À tarde era, simplesmente, Joaquim Pinho, secretário de redação do Diário Popular, o jornal mais antigo da cidade (1895), dirigido então pelo advogado Clayr Lobo Rochefort (1928-2012.
À noite, finalmente, era o professor-âncora do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pelotas, fundada e dirigida pelo bispo dom Antônio Zattera (1899-1987). Foi na faculdade que ganhou dos seus alunos o título que o acompanharia pela vida toda: Mestre, Mestre Pinho.
De qual trabalho J. Pinho gostava mais? Onde se deu melhor? Minha impressão é que a manhã era para ele um sacrifício; a tarde, uma penitência; e a noite, a jornada mais prazerosa, pois era na sala de aula que se sentia mais livre.
Mas essa é uma simples impressão baseada na convivência que mantivemos no final dos anos 1960, quando fui seu aluno por três anos e, no último ano (1968), seu subordinado na redação do Diário Popular.
Infelizmente, não houve tempo para uma entrevista. Quando liguei para o mestre, em fevereiro de 2016, não rolou a comunicação desejada. The time is over, disse a máquina do tempo.
Foi então que me dei conta: fora a profunda iração e o respeito reverencial aos mestres, eu tinha poucos dados sobre a figura mais lembrada e querida pelos ex-alunos do jornalismo da Uel.
Como escrever o perfil de um estranho? Sim, estranho, pois nunca tive intimidade com o Mestre. Nunca fui à sua casa. Não sei onde morava quando éramos colegas de imprensa. Não conheci seus pais. Nunca soube se tinha irmãos, ignoro como foi sua infância e adolescência. O único parente seu que conheci em Pelotas foi seu primo Hamilton de Pinho, publicitário até debaixo d’água, mas os dois não se bicavam.
Enfim, Jota Pinho era um cara muito ocupado, não sobrou tempo para uma aproximação. Menos ainda depois que deixei Pelotas para me aventurar na imprensa do centro do Brasil. Mas vamos por partes, respeitando a cronologia dos dados.
Rádio
No início deste texto, mencionei o Dauphine de Pinho. É uma lembrança de 51 anos atrás. Eu me recordo da Figura assomando o topo da longa escadaria da Rádio Tupanci, na rua XV, defronte ao Diário Popular.
Ele chegava com uma pastinha embaixo do braço e, com uma mesura, entregava ao sonoplasta de plantão uma fita cassete contendo um comentário de cinco minutos (ou seriam dois minutos apenas?) a ser veiculado pouco antes do Jornal do Meio Dia. Qual o conteúdo?
Era uma crônica de utilidade pública sobre o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), o principal cliente da Domus Propaganda. Quem a lia e assinava era Salvador Coelho, a versão publicitária de Joaquim Pinho.
Confesso que nunca prestei atenção ao conteúdo das mensagens levadas ao ar por Salvador Coelho; o que me impressionava era o jeitão do sisudo mensageiro do SAAE. Ele se inspirava, provavelmente, nos locutores do serviço em português da BBC de Londres ou, quem sabe, nos caras da Voz da América – aquele timbre impávido, impecável, impoluto, impagável.
– Gosto muito dos comentários desse Salvador Coelho, parece ser um homem muito sério.
Era minha tia Elma se declarando fã dele e perguntando se eu o conhecia. Ela se preocupava com o saneamento, um dos temas de Salvador Coelho, porque morava nas Terras Altas, bairro onde os resíduos líquidos de matadouros e indústrias de conservas corriam em valas a céu aberto.
Num tempo em que poucos tinham aparelho de televisão era comum encontrar fãs de radialistas. O rádio tinha uma força extraordinária, era formador de profissionais de imprensa. Foi no meio radiofônico que Pinho começou. Na escola do rádio. Fazendo rádio-teatro…
Na casa das minhas tias, nas Terras Altas, havia uma caixa de fotos de artistas do rádio de outrora. Orlando Silva. Emilinha Borba. E outros mais. Para minha surpresa, havia lá um retrato (P&B 6×8) autografado de Gilberto Gomes, ex-Rádio Tupi, diretor da Tupanci e, mais tarde, professor do curso de comunicação social da Uel. Tudo a ver e ouvir. GG bem jovem fazendo pose de galã. O rádio era (ainda é) veículo que mesclava realidade e fantasias.
Eu ainda cursava o terceiro ano colegial quando comecei a trabalhar no departamento de jornalismo da Tupanci. Sabia o essencial sobre o ofício de informar porque havia frequentado um cursinho básico de jornalismo ministrado num final de semana pela Associação Riograndense de Imprensa.
E prestava atenção nos macetes usados pelas raposas do rádio, cuja programação misturava uma série de práticas como animação de auditório, divulgação musical, jornalismo e publicidade – não necessariamente nessa ordem de importância.
Na Tupanci, Gilberto Gomes jogava em todas as posições, mas deixava claro: quem comanda o espetáculo são os anunciantes. Ali, como em outros lugares, prevalecia a máxima expressa na frase “O cliente sempre tem razão”.
Pelo jeito, Salvador Coelho pensava a mesma coisa, mas sem o fanatismo da maioria dos publicistas da cidade. Em nossos encontros fortuitos dentro da rádio nunca fomos além dos cumprimentos formais. “Bom dia, tudo bem?” Por incrível que pareça, somente no início do ano seguinte eu descobriria que, além de trabalhar no Diário Popular, aquele careca meio esquisito era professor de jornalismo. Mas na Uel ele não era o Salvador do SAAE. Nem o tocador da redação do DP. Era uma terceira pessoa. Mais risonho e expansivo. Sem dúvida, era nesse terceiro papel que ele se sentia mais à vontade.
Paradoxo
”Professor de jornalismo que não teve a oportunidade de diplomar-se em curso superior (concluiu o colegial no Gonzaga e começou a trabalhar, batendo perna no comércio), J. Pinho se constituiu num paradoxo dentro da primeira universidade pelotense.
Quando a Uel abriu o curso de Comunicação Social (na Universidade de Brasília, o mesmo curso foi denominado Meios de Comunicação de Massa), ele se inscreveu como aluno mas logo, pela escassez de docentes, foi convidado a dar aulas. Natural, pois sabia mais do que qualquer um dos frequentadores do prédio da Gonçalves Chaves, onde tudo começou.
Entre pagar para estudar e receber um salário como professor, ele não teve dúvida. Naquela época, a universidade não fazia questão de títulos. Bastava o saber. Muito tempo depois, quando as regras mudaram e se tornou necessário possuir mestrado e/ou doutorado para ser professor universitário, Pinho foi obrigado a desocupar a cadeira. Mas aí o Mestre já estava careca de tanto lutar contra a burocracia.
“Tenho poucas anotações das aulas de Mestre Pinho na agenda de 1970 que me serviu de caderno para os quatro anos de estudo de Jornalismo (1972/1975). Sei que começamos por Roma. Anotei então: “Acta diurna popoli romana. Publicação diária dos acontecimentos no Senado. ‘Fofoca política’, periódica e atual, variedade, só lhe faltava circulação”.
Por essa rara lembrança de Lourenço Cazarré, vemos o quanto Pinho foi um autodidata erudito.
É pertinente lembrar que, no curso de jornalismo, Mestre Pinho nos apresentou apenas dois bons autores didáticos: o brasileiro Luiz Beltrão (1918-1986), que foi professor em Recife e Brasília; e o norte-americano F. Fraser Bond, que versava sobre o padrão jornalístico dos EUA.
Ambos editados pela Agir no início dos anos 1960, a Introdução ao Jornalismo (de Fraser Bond) e a Iniciação à Filosofia do Jornalismo (de Beltrão) eram praticamente os únicos alfarrábios disponíveis na época para o estudo deste ofício. O resto, no curso, eram ensinamentos práticos, obtidos no exercício da profissão e por meio de leituras. E foi aí que Pinho fez a diferença. Entre outras coisas, ele nos ensinou a regra básica do jornalismo norte-americano, segundo o qual o primeiro parágrafo de uma notícia (o lead) deve responder a cinco perguntas – o que, quem, quando, onde e como. Nós acrescentamos mais uma: por quê.
Na década de 1960, muitos professores de Pelotas desfrutavam de uma aura de prestígio que, certamente, começou a ser construída lá atrás por sábios como o francês Guilherme Minssen (anos 1910) e o polonês Ceslaw Maria Biezanko (anos 1930), profetas do cultivo da soja décadas antes que essa leguminosa chinesa se tornasse o carro-chefe da agricultura brasileira.
Depois da escola de Agronomia (1883), tivemos mais: Farmácia e Odontologia, 1911; Direito, 1912; Música, 1918; Ciências Contábeis, 1937; Belas Artes, 1949; Filosofia, 1953. Medicina e Jornalismo, anos 60. Com duas universidades, Pelotas se tornou um dos maiores pólos de ensino e pesquisa da América Latina. A base disso? Um baita elenco de escolas secundárias, entre as quais se destacam: Assis Brasil, Gonzaga, Pelotense, Monsenhor Queiroz, Santa Margarida, São José, Escola Técnica Federal, Visconde da Graça…
Poderíamos lembrar aqui os nomes de professores que deixaram rastros notórios na história educacional de Pelotas – alguns até se destacaram em cargos públicos, enquanto outros ficaram mal vistos por dedurar colegas aos órgãos de segurança da ditadura militar de 1964/85 –, mas não percamos o rumo: o único professor pelotense a operar em 3D foi J. Pinho.
Sendo assim tridimensional, não ira que tenha virado uma lenda entre alunos e repórteres, duas categorias que frequentemente viravam uma só nas mãos dele.
Mestre Pinho tinha olhos e ouvidos para a diversidade dos talentos rolantes nas ruas de Pelotas. A propósito, leiamos o depoimento de Ayrton Centeno (Pelotas, 1949):
O mestre Joaquim Salvador foi o cara que, para o bem ou para o mal, me inventou jornalista. Eu estava ali, na condição de revisor do nosso DP, e ia levando. Era, na carteira profissional, jornalista, por conta da legislação que assim considerou aqueles que exerciam o ofício até então, mas era um mero transeunte da coisa toda.
Meu destino era outro. Cursava direito e seria um causídico, faria concurso para promotor ou juiz. Na verdade não tinha muita convicção mas era algo por aí. Então o JP me convidou — acho que estimulado pelo Luiz Lanzetta — para trocar a revisão pela redação. Foi o que acabou mudando a minha vida.
Depois do Diário Popular, Centeno trabalhou como repórter e editor em vários veículos, terminando por se dedicar à produção de livros como Os Vencedores (Geração Editorial, 2014), que conta a história de militantes de esquerda que sofreram na pele a repressão da ditadura militar brasileira. Um excelente trabalho de um jornalista que não precisou do curso para se tornar uma referência profissional. Mas teve a ajuda providencial do Mestre num momento decisivo.
O espírito da época
Por um ano trabalhei nos fundos da redação do Diário Popular, onde haviam alojado o equipamento inédito na cidade: o teletipo, que despejava notícias nacionais (Agência JB) e internacionais ( Presse). Naquele ano, a salinha do fundo era mostrada com orgulho aos visitantes. E a mim, guardião do noticiário nacional/internacional, cabia resumir as matérias e á-las ao chefe. Mal sobrava tempo para ler um livro ou escrever uma crônica.
Lembro bem do dia 14 de dezembro de 1968, o day after do AI-5, que sacramentou a ditadura militar. No início da tarde, quando chegou o exemplar do JB, Pinho vibrou – braços para o alto, como um torcedor de futebol diante de um gol – ao perceber que o editor-chefe do jornal carioca, Alberto Dines, havia driblado a censura ao publicar no quadrinho da previsão do tempo, no alto da capa, uma nota dizendo que o país fora “varrido por um vendaval”, metáfora inaugural de um tempo em que os jornalistas precisariam usar de elipses, hipérboles e parábolas para tentar contar o que se ava. Também coloquei nas mãos do chefe Pinho grandes reportagens internacionais escritas por cobras da AFP sobre a guerra do Vietnã e a Primavera de Praga, a qual foi seguida pela invasão da Tchecoslováquia pelos tanques da URSS – tudo isso em 1968, o ano que até hoje inspira jornalistas, escritores e cineastas.
Quando deixei Pelotas para me aventurar na imprensa de São Paulo, indiquei para o meu lugar, como redator do Diário Popular, um ex-colega do secundário que estudava Direito. Goleiro campeão do citadino pelotense de 1967 pelo Esporte Clube Camponês, onde eu também jogava, Newton Peter tinha duas credenciais para trabalhar em jornal: escrevia bem e, além de ler escritores como Morris West (As Sandálias do Pescador), recitava Goethe em deutsche. De fato, ele se deu bem na cozinha do Diário Popular, tanto que se tornou editor e, mais tarde, secretário de redação, função que combinou com o exercício da advocacia.
Ao contrário de Centeno, bacharel que ficou no jornalismo para sempre, Peter optou finalmente pela carreira de advogado, mesmo depois de ter trabalhado por alguns anos na imprensa de Porto Alegre.
Como saí de Pelotas em 1969 e fiquei quase uma década sem voltar, não acompanhei as mudanças no jornalismo e na Uel. Hora de recorrer a outros ex-alunos para descrever melhor nosso personagem principal. Lourenço Cazarré (Pelotas, 1953), que se alçou do jornalismo para a literatura:
Aos 35 anos, o mestre Pinho tinha a parte central do crânio raspada por uma reluzente calvície. Na lateral, porém, exibia uma notável cabeleira de cacheados cabelos negros. Talvez para vingar-se da calvície que certamente o acometera muito cedo, ele exibia um formidável bigode. Um senhor bigode, para ser justo. Dois centímetros de altura e uns dez ou doze de extensão.
emos ao rosto. Mestre Pinho tinha uma cara redonda, um queixo fino, uma testa obviamente larga e uns olhos espertos. Espertíssimos. O mestre ria com os olhos. E ele ria muito. Às vezes eu tinha impressão de que ele mais se divertia do que ensinava. Ria sempre quando nos dirigíamos a ele.
O mais impressionante no Mestre era o gestual. Ele vinha do teatro, sabíamos. Movimentava-se muito pela sala. Obedecia cegamente a uma marcação, sem dúvida estabelecida por um bom diretor de cena. Assim que acabava de escrever algo no quadro, voltava-se imediatamente para nós, brusco, como se temesse uma punhalada pelas costas. E, a seguir, caminhava de um lado a outro, nervoso, falante, empolgado pelo discurso. Mas, de repente, freava. Essas paradas eram sensacionais. Ele se detinha subitamente, jogava o tronco para trás, cruzava os braços diante do peito, enterrava as mãos nos sovacos e exibia os ombros largos.
– E você, aí, rapaz, o que pensa disso?
– Bem, eu acredito que, na verdade, de certo modo, o senhor estava querendo nos dizer que…
– Muito bem, rapaz, obrigado.
Os olhos luzindo, gargalhando por dentro, sarcástico, o Mestre alisava o bigode. O dedão afagando o lado direito do gigantesco marandová, o fura-bolo, o esquerdo.
O Mestre também se divertia, e muito, com as moças que sentavam nas primeiras cadeiras e copiavam tudo o que ele dizia, vírgulas inclusive.
Quando alguém lhe fazia uma pergunta completamente imbecil, o que não era raro, ele não perdia o ensejo. Brecava, espantado, olhos esgazeados, sobrancelhas levantadas, testa enrugada.
– Como assim?
O Mestre achava que toda asneira, para melhor ser apreciada, tinha de ser repetida.
Pinho era respeitado pelos jornalistas e, mais ainda, pelos estudantes de jornalismo. Alguns o temiam e mitificavam.
Em minha última conversa com o professor Pinho, eu lhe contei das minhas intenções.
– Vou embora de Pelotas!
Sentado por trás da sua mesa, ele reprovou meu plano:
– Nem todos os jornalistas devem deixar a sua cidade natal, pois nós necessitamos de um bom jornalismo feito aqui, na nossa terra, por gente nossa.
Mas de todas essas agens que me vêm à memória, nunca me esquecerei de um episódio muito triste, quando perdemos dois colegas de turma – um rapaz e uma moça – que, aliás, eram notoriamente os preferidos do Mestre.
Um dia depois da perda daqueles dois estudantes, esperávamos pelo professor em sala. Surpeendentemente, ele não nos cumprimentou. Atirou com violência a sua pasta preta em cima da mesa, reclinou a cabeça sobre o móvel, ou as mãos no rosto suado. Em seguida, rumou aos janelões, jogando cada uma das suas partes para um lado, fazendo com que batessem na parede e produzissem um estrondo. E por ali permaneceu por alguns minutos, não sei se meditando, recompondo-se ou se maldizendo, até que conseguiu se voltar para nós. Caminhou, então, até o centro do quadro-negro, e firmou-se no chão como um pranchão que sustentasse bandeiras hasteadas a meio pau.
E nos falou:
– Se alguém, aqui nessa sala de aula, puder me dar uma explicação para o que aconteceu com estes dois jovens, colegas de vocês, tão cheios de vida e de planos, estes que, com certeza, seriam ótimos profissionais, por favor, me diga!
Depois, sem mais poder ocultar o que sentia, entregou-se a um pranto convulsivo.
Falta saber como atuava o mestre na redação. Era um gentleman, mas não dava mole para ninguém. Escutem mais um depoimento de Ayrton Centeno, o bacharel que abdicou do direito em favor do jornalismo:
Acho que o Jota Pinho, de uma maneira discreta, foi a principal força renovadora do Diário Popular num momento de sua história, que inclui os anos 60 e metade dos 70, justamente uma época em que o mundo — e o jornalismo — vivia em efervescência. Pinho e sua gestão compreenderam o espírito da época.
Afinal foi ele quem começou a colocar na redação gente que pensava jornalismo de uma maneira diferente do que sempre havia sido na história do jornal. Trouxe os seus alunos, rejuvenesceu a redação, até então entregue à geração anterior, de jornalistas feitos na própria lida diária. Lembro que, como revisor (comecei lá pelos 12 anos, ajudando, de graça, o então revisor da noite, o Vilas-Boas), recebia originais que eram simplesmente recortes do Estadão. Com uma emenda-foguete o, digamos, redator só trocava a data e tocava o barco. Brincava-se que o jornal não tinha reportagem e sim recortagem. E que no dia que roubassem as tesouras e giletes da redação não haveria jornal…
Essas coisas começaram a mudar com a aposentadoria dos mais velhos, a chegada dos mais novos e a adoção de outras práticas. Pinho não era o jornalista mais conhecido do DP — o que cabia ao Irajá Nunes e ao Clayr Lobo Rochefort — mas era quem estava mudando cara e conteúdo do Diário. Abriu espaço para os novos. Me colocou, primeiro, como editor de internacional e, logo, como secretário de redação.
Eu e o Lanzetta inventamos uma coluna de cinema. Pinho nos deu liberdade e incentivou. Ganhamos meia página por semana. Animados, criamos outra meia página semanal com dicas de gastronomia. Eu, com meu ex-comparsa de revisão, João Pedro Lobo da Costa, ei a uma terceira coluna sobre música popular. Eu, o Lanzetta, o fotógrafo Paulo Lanzetta (primo do Lanza) e o próprio Pinho lançamos pelo jornal um concurso de fotografia que teve uma carrada de inscrições e o DP, claro, publicou numa página os premiados.
Mas houve um momento em que a barra pesou no jornal e Pinho teve de sair. Junto com ele saiu a metade da redação, inclusive sua mulher Maria Clara Michels. Alguns foram trabalhar na Domus Propaganda, outros buscaram saídas fora de Pelotas.
O próprio Pinho saiu para o jornal Agora, de Rio Grande. Até que assumiu o cargo de diretor da Biblioteca Pública e também coordenou por largo tempo as atividades artísticas na Secretaria de Cultura do município. Mais uma vez estava no seu chão. Sobre o lado livresco do Mestre temos o depoimento de Klécio Santos, que fez de Pinho uma fonte rica em dicas e furos.
“Conheci Joaquim Salvador Pinho no começo dos anos 1990, quando ingressei na Católica. Era meu professor em três disciplinas: Teatro, Técnica de Redação em Jornalismo e Técnica de Edição em Jornalismo Gráfico.
Já sabia de sua fama como ativista cultural junto com a Maria Clara Michels à frente da retomada dos festivais de teatro em Pelotas a partir de 1985 ou como ator de peças de John Steinbeck, como Amor Ardente, pelo Teatro Escola, nos anos 1960, quando era conhecido como Jota Pinho, agens essas retratadas no meu livro Sete de Abril, o Teatro do Imperador.
À época em que ingressei no curso de Jornalismo, Pinho liderava a reconstrução da Bibliotheca Pública Pelotense após enxotar os vereadores que ocupavam o segundo piso do prédio, depois de uma longa ação judicial. Ainda lembro dele em meio aos escombros e andaimes. Comecei a trabalhar, no segundo semestre do curso, como estagiário na Rádio Pelotense. Depois ei a editor de Cultura do Diário da Manhã.
Ao final do curso, já como correspondente de Zero Hora, me encontrava com Pinho não só na faculdade, mas por conta das pautas. Invariavelmente, também avistava o Mestre em frente ao Campus II da Católica, onde ele podia ser encontrado dormindo dentro do seu carro (não recordo se era um Chevette). Pinho era das antigas, fazia questão de cultuar o estereótipo do jornalista boêmio. Eu o achava o máximo.
Às vezes, cruzava com ele no Laranjal onde eu também morava. Pinho estava sempre na frente do sobrado de tijolos, no jardim ou deitado na rede. Juntos, fomos jurados de concursos nas áreas de Teatro e Literatura. Fizemos várias matérias sobre a BPP para ZH como a retomada do Museu Histórico ou quando Pinho criou uma sala com obras raras com livros como Espinhos D’Alma, de Lobo da Costa, editado em 1872. Ainda me lembro em detalhes quando me chamou para anunciar a incorporação de duas obras de François Rabelais, escritas em 1546 e 1552, doadas pelos herdeiros do ex-ministro Adriano Cassiano do Nascimento. Ele sabia o que rendia notícia, tinha faro. “Pelotas consegue livro raro”, foi o título.
Embora eu fosse estudante, Pinho sempre me tratava como se eu já fosse um profissional. Jamais deu ouvido aos sindicalistas de plantão que buscavam seu apoio para denunciar a prática do jornalismo – no caso, a minha – antes de ser formado. Naqueles anos, não havia outro jeito. O alto custo das mensalidades obrigava os alunos menos abastados – no caso, eu – a terem uma renda.
Por tudo isso jamais me recusei a participar de suas empreitadas, até mesmo quando quis retomar o jornal laboratório Atuação. A ideia era “furar” os jornais da cidade com matérias mais elaboradas. Na verdade, Pinho queria mostrar que era possível fazer um bom jornalismo, mesmo através de um veículo universitário de oito ou 12 páginas. Lembro quando nos convocou. Éramos apenas oito alunos. Se topássemos, ele ia atrás de recursos para impressão (tudo naquela época era difícil). Lógico que aceitamos. Guardo até hoje o exemplar, confeccionado em papel jornal como manda o figurino, em formato tablete. Escrevi sobre a luta dos estudantes para retomar a meia-entrada nos cinemas em Pelotas. Nunca tinha visto Pinho com tanta motivação, quase um adolescente, orientando as entrevistas e revisando os textos, um verdadeiro editor como se estivéssemos no NYT. Nunca aprendi tanto.
Aliás, foram dele as principais dicas que recebi no jornalismo. “Jamais usar gravador”. Aquilo me invocava. Mas como? E ele sempre dizia que o gravador fazia com o entrevistador perdesse o foco. Sempre que possível, segui à risca essa orientação e, confesso, que os melhores textos, foram aqueles em que dispensei o instrumento.
Quando fiz uma pós em Patrimônio Cultural, precisava de uma carta de recomendação e Pinho me rotulou como “um dos seus melhores alunos”. Na época, vaidoso, não dei bola, mas hoje o saudosismo fala mais alto. Nunca tive tempo de agradecer. Então, faço aqui. Obrigado, mestre!”
Por fim, não percam o depoimento de Carlos Eduardo Behrensdorf, o Garça, outro autodidata que, só pra variar, se mandou para Brasília nos anos 1970:
“No Diário Popular fui repórter de “geral”. Cobria de tudo um pouco, ou seja, era pau pra toda obra. Acumulava cobertura de esportes e, depois, polícia. Virei chefe de reportagem e secretário de redação. Este foi o meu trajeto percorrido no jornal de novembro de 1968 a fevereiro 1973.
Diariamente, me encontrava com o Pinho para o fechamento. Quando eu pisava na redação, ele levantava a cabeça, olhava firme e perguntava: ”E aí, meu rapaz”? Era chegada a hora da prestação de contas sobre pautas cumpridas ou não.
Com ele aprendi a respeitar a profissão e, mais do que isso, a entender um jornal por dentro, da primeira à última página, numa fase de mutação: era a chegada do “lead” e da diagramação.
Os espaços ficaram valorizados. Notícias na primeira e na última página aram a ter um crivo de valor de conteúdo e estética. Uma pergunta detonava a discussão: “Vale primeira página”? A primeira página do Diário Popular era seu cartão de apresentação.
Com Jota Pinho também aprendi a fazer legendas. Quem não é do ramo não sabe o que é escrever com espaço limitado, sem computador. Tenho um recorde: reduzir 18 linhas para quatro.
Quando entreguei ao Pinho, ele sacudiu a cabeça, afirmativamente, grafou a fonte dos tipos e abriu a janelinha para a oficina. Lá se foi minha legenda, intacta.
Fiquei parado na frente dele, esperando um elogio. Ele levantou a cabeça, me olhou, sorriu e disse: “Tá me olhando por quê? Te manda, meu rapaz… Amanhã tem mais”.
Ousado mas sem rompantes, Pinho se pautava pela discrição. Em aula ou na redação, não há registro de que alguma vez tenha levantado a voz para qualquer uma das centenas de pessoas que estiveram diante de suas mesas de trabalho na faculdade, no jornal, na publicidade, na biblioteca pública ou no departamento de cultura.
Aparentemente incapaz de dar uma bronca nos subordinados, tratava alunos e repórteres por um genérico “meu rapaz”, expressão amistosa e professoral que não causava estranheza, pelo menos nos meios universitários e jornalísticos. Na Pelotas sesquicentenária, a absoluta maioria dos praticantes de jornalismo era do sexo masculino. As mulheres ainda eram minoria nas salas de aula. Nas redações, menos ainda.
Ouçamos o que nos diz Núbia Ferro, a primeira ex-aluna do Jornalismo da Uel contratada para trabalhar na redação do Diário Popular:
Não tenho dúvidas de que o professor Joaquim Pinho foi o grande responsável pela minha formação profissional para um jornalismo sério, isento e investigativo. De todos os professores que tive durante o curso de Comunicação Social na Uel, Pinho foi o mais capaz de transmitir a seus alunos como se faz um bom jornalismo. Sem deixar de lado a teoria necessária, ele nos levou à prática, apontando nossos erros e acertos, nos orientando como sempre buscar o aperfeiçoamento. Tenho especial gratidão a esse grande mestre, que me proporcionou trabalhar e ser requisitada para grandes jornais nacionais, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo,O Globo e Correio Braziliense, entre outros.
Quarta dimensão: o teatro
O cabelo só na volta da cabeça produzia uma imagem marcante, próxima dos retratos de William Shakespeare. Contribuía para a semelhança o nariz aquilino do mestre pelotense. Permitam que o chame de ShakesPinho.
E aqui chego ao ponto que pode dar origem a 1001 divergências: nosso Mestre possuía uma quarta dimensão – a paixão pelo teatro. Sim, nosso multimidiaman amava o teatro mais do que a cátedra, o jornal ou a propaganda.
A imprensa, as aulas e a agência de reclames foram seus ofícios de sobrevivência numa cidade que sempre se destacou na arte de representar papéis idealizados – a Atenas Riograndense, a Princesa do Sul… –, oscilando entre os extremos da carolice e do pernosticismo.
No início de sua vida profissional, Pinho fez rádio-teatro, ofício que o ensinou a empostar a voz, a dosar a respiração e a istrar o tempo das falas. Ele não era um grande orador, às vezes se deixava levar pela ansiedade, mas sabia conduzir-se diante de quaisquer plateias. Claramente não gostava de aparecer, mas a vida o colocou em posições de evidência. Contradições da existência, diria ele, à maneira de Shakespeare.
Sentindo-se talvez sem espaço para ser ator numa cidade onde só havia lugar para o brilho da estrela solitária do professor-ator Luiz Carlos Correa da Silva (pelo menos uma vez por ano ele lotava um auditório com o monólogo As Mãos de Eurídice, de Pedro Bloch), Pinho criou o Teatro Experimental do Jornalismo de Pelotas (TEJOP), ao qual dedicava suas horas de lazer, sem remuneração, com ensaios nos sábados à tarde ou em aulas noturnas. Era um hobby intelectual, quase um exercício terapêutico. Nada mais romanticamente shakespeareano no fog pelotense, mais conhecido como cerração.
Em 1967, na flor dos seus 31 anos, lá estava ele encenando O Amante, do inglês Harold Pinter, um dos principais nomes do teatro do absurdo. O papel-título era de José Luiz Mendonça, ator escolado que também representava o marido da personagem principal, vivida por Zaida Guterres; o elenco era completado por José Cruz, escalado para uma aparição-relâmpago, como o leiteiro da história.
Os três atores eram alunos do Jornalismo. E de quem era o cenário? Da genial Lenir de Miranda, artista plástica que, além de trabalhar na Domus Propaganda, cursaria jornalismo – mais para ilustrar-se do que visando tornar-se profissional – na primeira metade dos anos 1970.
A peça estreou com casa cheia no palco-auditório do Colégio Gonzaga, berço do aprendizado teatral do nosso ShakesPinho. No intervalo da peça, uma surpresa: abriu-se uma cortina no fundo do palco e lá estava o conjunto musical Os Lobos, que fazia sucesso na cidade e na região.
O público, pouco familiarizado com o teatro, recebeu o show como parte do sofisticado enredo de Harold Pinter. Absurdo por absurdo, foi J. Pinho quem apresentou a Pelotas um conteúdo teatral até então conhecido apenas em Londres, Nova York e Rio-São Paulo. Cabe inserir aqui uma conclusão algo tardia de Lourenço Cazarré:
Décadas depois, acho hoje que Pinho nunca foi um professor. Era um rapaz já maduro que representava, e como representava bem, o papel de Mestre numa peça de um só ator, ele, diante de uma displicente platéia de uns trinta gatos pingados.
Antes tarde do que nunca
A combinação de rádio+jornalismo+magistério+teatro levou Pinho a esticar a corda tanto nas atividades profissionais quanto na vida pessoal. Depois do primeiro casamento com Maria Nanci, com quem teve um filho (Marcelo), nosso Mestre se apaixonou por uma aluna chamada Maria Clara Michels, com quem casou para sempre (tiveram dois filhos, Juliana e Joaquim Filho). Tudo isso sem a bênção do bispo, sem perder o cargo no jornal do prefeito, sem renunciar ao posto de professor e sem precisar fugir da cidade de Glória Menezes, a gloriosa atriz que fez como a lagunense Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos.
Para encerrar, leiamos o email-resposta de Maria Clara Michels Pinho, a eterna Macacha, enviado em 26 de fevereiro de 2016, três dias depois de Sal, seu apelido na intimidade familiar) ter completado 80 anos:
“Estamos juntos há 43 anos, ele foi meu professor também e acabamos com nossos casamentos para ficarmos juntos. Foi bem escandaloso na época, principalmente por ser meu professor e pela diferença de idade. Ele quase foi expulso da Católica”.