Inês Etienne Romeu ou pelo inferno e viveu —até os 72 anos, quando faleceu em 2015— para contá-lo. Historiadora e ex-integrante de grupos revolucionários na ditadura militar, ela foi a única pessoa a ser libertada da chamada Casa da Morte, um centro clandestino de tortura utilizado pelos militares e localizado em Petrópolis (RJ). Pelo 20 pessoas teriam morrido no local. Nesta quarta-feira, TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) resolveu aceitar a denúncia dela de sequestro e estupro contra o sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro de Lima, conhecido como Camarão. Trata-se do primeiro processo criminal de estupro aberto contra militares por crimes cometidos durante a ditadura. Inês foi sequestrada em São Paulo em 5 de maio de 1971, aos 28 anos, e levada à Casa da Morte, onde, de acordo com seu relato, foi torturada e estuprada pelo sargento reformado. Em depoimento, Lima disse que era apenas o caseiro do imóvel e que esteve com Inês —que ficou detida durante três meses—, mas negou o crime. Ao acatar a denúncia, o TRF-2 reformou uma decisão da 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis que, por meio do juiz Alcir Luiz Lopes Neto, arquivou o caso no dia 8 de março de 2017, invocando a Lei de Anistia e a prescrição de crimes. “Além de ser caso de desrespeito ao direito adquirido em razão da Anistia de 1979 [do STF], o caso também é de evidente desrespeito a outro direito adquirido do acusado, tendo em vista a verificação da prescrição: o de tentar fazer retroagir uma ‘norma’ de caráter penal com a finalidade de prejudicar o acusado”, afirmou Lopes Neto na decisão. O desembargador Paulo Espírito Santo seguiu o mesmo entendimento, mas os desembargadores Simone Schreiber, que pediu vista em julho, e Gustavo Arruda acolheram o entendimento do MPF (Ministério Público Federal) de que o caso de Inês é um crime de lesa-humanidade imprescritível e não ível de anistia, sob a ótica do Estatuto de Roma —ratificado pelo Brasil e que constitui a Corte Penal Internacional, que julga crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídios—. Para o MPF, a palavra de Inês devia ser considerada, ainda mais em crime sexual como o estupro, também considerado tortura pelo órgão. “(…) As torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados cometidos por agentes de Estado no âmbito da repressão política constituem graves violações a direitos humanos”, afirmaram os procuradores ao recorrer da decisão da primeira instância. Trajetória Nascida em 1942 em Pouso Alegre, Minas Gerais, Inês Etienne integrou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), organização de extrema esquerda que sequestrou o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, em 1970, no Rio de Janeiro, da qual também fez parte a ex-presidenta Dilma Rousseff. A militante foi detida em maio de 1971 em São Paulo e trasladada para a Casa da Morte, no Rio, mas não sem resistência de sua parte: chegou a se jogar diante de um ônibus quando a transferiam de uma cidade para outra. Depois de 96 dias de torturas, estupros e humilhações, “estava destroçada, doente, reduzida a um verme, obedecia como uma autômata”, contou Inês depois. Durante o sequestro, tentou suicidar-se outras duas vezes. Os torturadores liberaram-na depois de três meses, acreditando que, após as sessões de tortura e o cativeiro, ela abandonaria a luta armada e chegaria, inclusive, a colaborar com o regime militar —Inês fingiu que aceitaria tornar-se informante de seus captores. As anotações que ela fez ao sair da Casa da Morte também ajudaram a identificar nove militantes revolucionários assassinados no local. Inês fez um registro detalhadíssimo e apresentou os relatos à Ordem dos Advogados do Brasil em 1979. Sabia até o número do telefone da casa para onde a levaram “com os olhos vendados” porque escutou quando um dos torturadores respondeu a um telefonema. Identificou um médico que ajudava os torturadores, Amílcar Lobo, e o proprietário da casa: “Visitava o lugar e mantinha relações cordiais com seus ocupantes. É estrangeiro, provavelmente alemão. Tem um cão dinamarquês cujo nome é Kill. Embora não participe pessoalmente das atividades e atrocidades cometidas ali, tem pleno conhecimento delas”. Inês Etienne Romeu morreu em 2015 – Divulgação / Comissão Nacional da Verdade Em 2003, aos 61 anos, Inês Etienne sofreu um misterioso percalço. Um marceneiro foi até a sua casa realizar um serviço. Uma faxineira a descobriu no dia seguinte no chão, ferida na cabeça. A polícia qualificou o caso como acidente doméstico, mas um relatório médico garantia que havia “sinais de traumatismo craniano devido a múltiplos golpes”. O suspeito nunca foi identificado e depois disso ela teve dificuldades para falar e se movimentar. Por conta disso, a ex-guerrilheira não pode depor na Comissão Nacional da Verdade (CNV), devido a um problema na fala, mas sua participação nas reuniões do grupo possibilitou a identificação, por meio de fotos, de seis torturadores. Arquivamento Ao arquivar a denúncia de Inês contra o sargento reformado em março de 2017, o juiz Alcir Luiz Lopes Neto justificou que, independente da quantidade de reportagens e entrevistas que foram apresentadas, estas “não se caracterizam como documentos que possam servir como prova de fatos no juízo penal“. Para negar o pedido, o juiz ainda fundamentou a decisão em processos e condenações de Inês pela Justiça Militar na época da Ditadura, como, por exemplo, o “agrupamento que, sob orientação de Governo estrangeiro ou organização internacional, exerce atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional”. A decisão da primeira instância chegou a mencionar Olavo de Carvalho, para argumentar que a proteção ao estupro sofrido por presos políticos durante o regime militar seria uma espécie de “vantagem a minorias selecionadas”. “Como escreveu Olavo de Carvalho, ninguém é contra os ‘direitos humanos’, desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”, registrou o magistrado. Depois de deixar a Casa da Morte, Inês Etienne Romeu ainda cumpriu oito anos de prisão. Inicialmente, sua condenação era à prisão perpétua, mas a Lei da Anistia limitou-a aos oito anos já cumpridos pela participação no sequestro do embaixador suíço. Inês faleceu aos 72 anos, em abril de 2015, por insuficiência respiratória. A ex-presa política dedicou a vida a esclarecer os crimes da ditadura e direitos humanos, auxiliando os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e do Ministério Público Federal, e recebeu em 2009 o Prêmio de Diretos Humanos, na categoria Direito à Memória e à Verdade. (Com informações do El Pais) 5w4215
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Bolsonaro vai receber viúva de torturador da ditadura nesta quinta d6b54
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) programa-se para receber, nesta quinta (8) ao meio-dia no Palácio do Planalto, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra, viúva do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra — torturador da ditadura militar, cujos crimes foram reconhecidos pela Justiça. Ustra morreu em 15 de outubro de 2015 por falência múltipla dos órgãos. O encontro entrou ontem à noite na agenda oficial do presidente da República. Questionado sobre o encontro nesta manhã, Bolsonaro disse que a viúva “tem histórias maravilhosas para contar” e chamou Ustra de “herói nacional”.
“Tem um coração enorme, sou apaixonado por ela. Não tive muito contato, mas tive alguns contatos com o marido dela enquanto estava vivo. Um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”, afirmou o presidente. Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra estará com o presidente poucos dias após Bolsonaro contrariar documentos históricos e afirmar que Fernando Augusto Santa Cruz, desaparecido durante o regime militar, foi assassinado por militantes de esquerda.
A Comissão Nacional da Verdade, grupo criado pelo governo federal, apurou que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro”. Segundo a comissão, Santa Cruz “permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”. O reconhecimento dessa situação foi oficializado por meio de retificação do atestado de óbito, realizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, também vinculada ao governo federal, apenas cinco dias antes de Bolsonaro se referir ao caso.
Simpatia por Ustra
Ao longo de sua carreira em cargos públicos, Bolsonaro nunca escondeu sua simpatia pela ditadura e por Ustra. Durante votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, Bolsonaro dedicou seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma.”
A despeito da Justiça de São Paulo ter extinguido, em 2018, a condenação de Ustra para pagar indenização de R$ 100 mil à família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado em 1971 durante a ditadura, o militar já havia sido responsabilizado pelo Superior Tribunal de Justiça no final 2014 pela prática de tortura. À época, a corte negou um recurso de Ustra que se amparava na Lei de Anistia e decidiu que ex-presos políticos que foram torturados podem entrar com ações de indenização por danos morais. O STJ seguiu a interpretação das instâncias anteriores, que reconheceram que os autores da ação foram torturados por Ustra. (Com informações do UOL)